DONA CELESTE

É manhã, como sempre Zé Neves, com um palito entre os dentes, pega seu táxi e ouvindo uma música popular, sai à espera de clientes. O dia está bonito, céu azul como num típico dia de outono. Zé Neves passa a mão na testa em frente ao retrovisor ajeitando seu cabelo. Está animado.

-Hoje eu vou me dar bem, sinto isso. Nem começou o dia e a dona Celeste me chamou pra ela ir ver o finado, esse negócio de cemitério é que pega, mas é uma corrida. Além disso, num tem nada a ver, eu fico lá fora a véia vai lá levar as flores, fazer suas rezas e o taxímetro rodando! TOCA O CELULAR, ZÉ NEVES ATENTE.

Toca o celular e ele atende, já imagina que é dona Celeste sempre preocupada. Afinal seus oitenta e poucos anos a fazem um pouco desocupada e o pouco que tem a fazer tem que ser na hora, sem atraso.

- Oi dona Celeste já ‘to chegando... madame... Não, não, fique tranqüila que as flor vão ‘ta tudo frescas, qualquer coisa eu falo com o Mário da banca... É... Isso mesmo, ‘to, ‘to chegando!

Desliga o aparelho e coloca em um suporte no painel do carro, muda de estação para ouvir as notícias. Continua a falar consigo mesmo.

-Como se o finado fosse ver se as flor é fresca ou não. Se bobear o pessoal pega e vende de novo, isso sim. Tenho certeza que os moleque da banca já ficam só na espera dela ir embora, já sabem que toda sexta ela vai lá, um dia algum ainda se abre comigo, eu tenho as manha. Negoção cara, se vende pra viúva, dá uma meia hora ‘ta de novo na banca. E lá vem outra comprar! É, tem sempre um jeitinho de faturar um extra. Podia entrar no esquema, tem dia que é fraco. Falava com os meninos, fazia um acordo com o Mário. De repente rolava.

Chegando à casa de dona Esmeralda, Zé Neves vai reduzindo a velocidade. Como sempre lá está ela esperando no portão segurando sua bolsa. Para sua surpresa vê que ela está usando uma bengala. Sai do carro, e vai abrir a porta para ela.

-Bom dia, dona Celeste!

-Bom dia, seu José. Acho que hoje, além de tudo, a minha atrite está atacada, me ajude aqui filho. Não sei quanto tempo vou agüentar assim.

Com muita dificuldade entra no carro apoiada no braço de Zé Neves

-Que é isso dona Celeste, a senhora é muito nova pra falar essas coisas. Nem sei pra que essa bengala.

-É meu jovem, recomendação do médico. Na segunda feira escorreguei na calçada quando voltava da padaria.

-E a senhora vai ao cemitério assim?

-Meu filho, jurei ao meu velho que o resto de meus dias iria visitá-lo. Se há algo que eu cumpro é uma promessa, custe o que custar.

Zé Neves fecha a porta e se encaminha para o banco do motorista, liga o carro e se põe a caminho do cemitério. Ao mesmo tempo vai pensando com seus botões “Cada promessa besta, essa gente faz. Vê se tem cabimento prometer visitar o velho até fim da vida, como se o sujeito ‘tivesse lá ou estivesse vendo. Reza em casa, muito mais prático e seguro, essa coisa de cemitério não é comigo. Bem, mas ‘to ganhando minha corrida e até uma gorjetinha. Isso que importa".

Seus pensamentos são cortados pó dona Celeste.

-Senhor José, será que o senhor poderia me fazer um grande favor hoje?

-Pois não dona Celeste?

-Sabe o que é, o senhor viu que eu estou com muita dificuldade hoje...

Zé das Neves interrompe dona Celeste.

-Que é isso dona Celeste, a semana que vem a senhora já está inteira. Não desanima que é pior. Eu tinha uma tia, pra senhora ter idéia, bem mais nova que a senhora, não que queira dizer que a senhora seja velha, mas, então, aí um dia ela estava lavando a calçada com água e sabão e adivinha? Escorregou e quebrou as duas bacias...

Agora é dona Celeste que interrompe Zé das Neves, pois sabe que quando ele se põe a contar seus casos não termina mais. E ela precisava falar antes de chegar ao cemitério

-Senhor José, ela quebrou uma bacia, pois nós temos apenas uma bacia. Eu sei...

Zé das Neves interrompe novamente.

-Eu sei dona celeste, é que ela quebrou mesmo duas: a dela e a que estava com a água e sabão, pois ela caiu em cima dela. E aí...

Dona Celeste agora fala de forma firme, pois percebe que aquela estória não vai acabar.

-Senhor José, por favor, não me interrompa. Será que o

senhor poderia, chegando ao cemitério, ir à banca do seu Mário e comprar as minhas flores, os meninos já sabem como eu gosto...

Na verdade Zé das Neves estava preocupado com a possibilidade de ter que acompanhar a senhora até o túmulo, quando ela falou sobre comprar flores ele sentiu um alívio imenso.

-Mas dona Celeste, isso lá é favor! Faço com o maior prazer, eu mesmo escolho se senhora quiser, mando colocar um arranjo bem caprichado...

-Senhor José, os meninos já sabem como eu gosto! O que eu preciso é que o senhor me acompanhe, pois hoje eu não estou em condições de ir sozinha.

Era o que ele temia, nunca gostou dessas coisas. No enterro de sua tia Justina prometera nunca mais pisar num cemitério, aquilo lhe dava arrepios, ficou uma semana inteira tendo pesadelos. “Como saio desta, agora? E a dona Celeste é uma cliente boa dá sempre uma gorjeta, putz ‘to ferrado!” Pensou.

-Então seu José, o senhor sabe, é coisa de 10 minutos. É só eu dar uma limpada na campa e fazer umas orações, tudo bem?

Apesar do embaraço e enquanto pensava, de pronto respondeu.

-Claro dona Celeste. Do jeito que a senhora está nem deve ir sozinha. Bem eu já ouvi tanta estória de cemitério que sei lá... Além das almas penadas e coisas do gênero ainda tem ladrão que assalta as pessoas, as campas, tudo atrás de ouro. Eu acho uma coisa terrível, eu lembro de uma vizinha minha, há uns dois ou três anos, que diz que sentiu que tinha gente atrás dela dentro do cemitério, olhava e não via ninguém. Lá pela tantas deu em disparada, largando flores, pacote de velas tudo pelo caminho. Ela nunca soube dizer se era fantasma ou só impressão.

-Senhor José, a gente tem que ter medo dos vivos, não dos mortos. E o que o senhor acha dessa estória de sua vizinha?

Mais embaraçado ainda, começando a suar. Pensava consigo “Ai meu Deus, eu não acho nada! Quero é sair dessa enrascada, o pior é que se eu convencer ela que é perigoso das duas, uma: ou ela deixa de vir ao cemitério e eu perco essa boquinha ou vou ter que começar a acompanhar ela sempre. Acho que ‘to me enrascando cada vez mais.”.

-Bem, acho que ela é impressionada!

Dona Celeste percebendo o mal estar dele, começou a puxar assunto.

-E o senhor?

Zé das Neves retira um palito do bolso e coloca dentre os dentes, começa a mastigá-lo.

-Eu o quê?

-O senhor é impressionado?

-‘Magina! Tenho disso não, dona Celeste.

-Então o senhor acha que era um ladrão?

-Qual nada, devia ser um coveiro ou alguém que cuida do cemitério. A dona Clara é cheia de estória, adora ficar contando coisas, pra senhora ter uma idéia ela foi até um centro de macumba naquele final de semana! Disse que o pai de santo falou que ela precisa trabalhar lá, coisas de receber gente morta, sei lá.

Dona Celeste falando séria.

-O senhor sabe que essas coisas existem, pode ser que ela seja médium. Eu, quando era mais nova, participava de um centro e tinha minhas entidades.

Cada vez mais a conversa estava ficando difícil. Ele mascava o palito com mais vontade e nervoso.

-Bem, eu respeito essas coisa sabe? Mas prefiro rezar em casa e não do dinheiro pra entidade nenhuma, não. A senhora não viu aquela reportagem que o dinheiro...

Mais uma vez Dona Celeste interrompeu Zé das Neves de forma incisiva e séria.

-Senhor José não são essas entidades que estou falando, são, como vou explicar? Eu recebia alguns “santos”, digamos assim.

-Quer dizer que baixava o santo na senhora? Cruz credo essas coisas me dão calafrio!

-O senhor, quando me levar ao cemitério, verá que eu acendo algumas velas para algumas imagens. Essas coisas dependem de fé.

Desesperado, Zé das Neves só pensava. “Ai, ela voltou ao assunto! Como vou me sair dessa? Mais agora que descobri que a velha é macumbeira, e dentro do cemitério!”

-Seu José, o senhor passou a entrada!

Estava tão preocupado e pensativo que passara a entrada do cemitério e nem percebeu.

-É mesmo, desculpe. Essa conversa sobre fantasmas e assombrações me deixa meio atrapalhado, mas já faço o retorno.

Ele estaciona o táxi em frente à banca de flores de sempre, sai do carro e vai até o vidro traseiro todo solicito falar com a dona Celeste.

-Só vou amarrar meu sapato e vou falar com o seu Mário.

Após amarrar o sapato, vai até a banca fala com os garotos, gesticula e volta ao carro com um rapaz. Os dois ajudam dona Celeste a sair do carro.

-Dona Celeste, o Zazá vai acompanhar a senhora. O pneu do meu carro está murcho, vou ter que troca-lo, senão vai demorar quando a gente voltar. Tudo bem?

Dona Celeste, meio desconfiada olha os pneus.

-Não tem problema, mas como foi acontecer. Mas estão cheios!

-É o do outro lado, vem ver. Ta baixo, sei lá o que houve, ainda bem que deu pra chegar.

Indo em direção ao portão, junto com o rapaz, Zé Neves aponta o outro lado do carro. Realmente o pneu está quase vazio.

Dona Celeste comenta.

-Realmente demos sorte.

Zé Neves caminha para a porta malas, abre e começa a preparar a troca. Todo satisfeito pega outro palito de dente.

-Dessa vez você me salvou. Mas e a semana que vem?

CARREIRA
Enviado por CARREIRA em 29/07/2008
Código do texto: T1103098
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