O CASO DA COBRA
Boquinha da noite depois da ceia.
Cadeiras de balanço na varanda.
Vizinhos em animada prosa relembram casos (nem sempre verídicos), onde o heroísmo de um alimenta a admiração do outro.
- meu avô contava que na grande seca dos anos vinte no sertão paraibano, até marimbondo morreu de sede...
Plantação, criação, os bichos os homens... quem não pode ir-se a seca matou...
- é verdade...
- compadre Lourenço, irmão de Chico Romão, o melhor rezador de cobra da região de Santa Izabel, morava com a mulher e os dez filhos numa casa na ponta da rua como quem vai para a fazenda Caroá do coronel Zezito Guedes e tinha uma cacimba num quarto que ficava ao lado da cozinha, que já havia resistido a outras secas, só baixando um pouco.
Mas dessa vez a água doce da cacimba foi ficando salobra e secando aos poucos, tanto que, para poder pegar água para colocar na jarra que ficava num canto da cozinha, tinha-se que descer e apanhar com caneco pequeno.
A jarra tinha tampa de madeira amarrada com um pano de saco.
- é verdade...
- comadre Toinha dava aos meninos um caneco d’água de manhã e outro de noite, regrando para ver se rendia até que as novenas, terços e procissões pedindo chuva, fossem ouvidos por S. Pedro que parecia ter ficado surdo nesses últimos dez anos.
Numa noite de vento morno e forte que parecia que o mundo ia pegar fogo, a sede estava estalando na garganta.
Comadre Toinha aumentou a cota de água dos pequenos mas, os maiores tiveram que se contentar com a cota mirrada de sempre.
Até hoje não se sabe quem, depois que todos estavam dormindo, levantou e foi roubar um caneco a mais de água e deixou a jarra tapada só com a tampa de madeira.
Não amarrou o pano.
Pois não é que uma cobra venenosa, aproveitando que o pano estava sem o nó, empurrou a tampa de madeira e sabe como é cobra, né?
Para poder beber sem se envenenar, coloca o veneno numa folha de mato e bebe, depois pega o veneno de volta.
Como não tinha folha, a bicha colocou o veneno na beirada da jarra, bebeu até se fartar e quando foi pegar o veneno de volta, por não ter mão, deixou cair dentro da água.
- ave Maria, compadre...
- manhãzinha, comadre Toinha se admirou da jarra estar destampada mas não falou nada porque pensou que tivesse sido ela mesma.
Bebeu e distribuiu a água para todos da casa.
Com pouco tempo, deu escurecimento de vista, vômitos, febre, frio e dor de cabeça, cólica de torar o cabra em dois e, antes do meio dia estavam todos mortos.
As rezas de Chico Romão não puderam fazer nada, a não ser matar a salamanta-boi que estava como doida, correndo em volta da casa, assim que nem cobra que perdeu o veneno...
- é verdade, é verdade...
Dona Cotinha gritou do outro lado da rua,
- Basílio, já está tarde, vamos dormir...
- boa noite compadre, amanhã eu volto.
- boa noite compadre, durma bem.