O Carteiro

O Carteiro

Zelão, como é mais conhecido. Quase dois metros de altura. Fama de homem violento, astuto, tinhoso. Dizem que não tem meias palavras. O mais temido de toda a redondeza. E olha que neste fim de mundo, lugar desgraçado de feio, o que não falta é homem valente. Só anda armado com o trinta e oito cano longo, que ele passa horas lubrificando, meticulosamente detalhe por detalhe. Aquilo reluz, brilha como novo. E parece ser tão intimo dele, como parte do seu corpo.

Foram todos esses adjetivos, e tantos outros que não me lembram mais, que escutei do Seu João, pobre coitado. Carteiro há tantos anos neste lugar. Alias o único que a pequena vila teve em toda a sua historia.

Seu João não tem mais condições de trabalhar, manca numa perna devido à osteoporose, e a coluna com bico de papagaio por carregar por muitos anos o pesado malote de correspondências.

Quando soube da minha chegada, veio me receber no ponto de ônibus, porque aqui não existe terminal rodoviário, apenas dois bancos de madeira em frente ao bar do Seu Elias, mais conhecido como bar do ponto. E somente dois horários de ônibus, um a manhã e outro à tarde, e mais nada. A única alternativa é o caminhão que leva leite até a usina, o problema é que a usina fica no meio do caminho e para se chegar até a cidade mais próxima ainda faltam mais dez quilômetros que tem que ser percorrido a pé.

Tudo fica na cidade vizinha à vila: banco, farmácia, lojas, médicos e posto de saúde, tudo tem que ser feito lá, enquanto que aqui não se tem nada.

E agora aqui estou pronto para assumir como o novo carteiro desta vila, e como o Seu João continuarei a ser o único, pois acabei de ser transferido e estou a fim de começar logo a trabalhar e conhecer o lugar e as pessoas que aqui moram.

No inicio não entendi o porquê de o Seu João o carteiro antecessor, contar-me com tantos detalhes a respeito do tal Zelão, o homem tão afamado por sua valentia. Acabei de chegar e não conheço ninguém, não teria porque temer uma pessoa que não a conheço, mais que ficou certa duvida em minha cabeça, isso ficou.

Quase não dormi à noite, um tanto pela curiosidade do tal Zelão, e o que mais me incomodou realmente foi o ruído das traças a noite toda, e o maldito barulho do assoalho de madeira, que quando alguém anda pelo corredor dessa fedorenta pensão onde com muito esforço, e pagamento adiantado, consegui um pequeno quarto nos fundos, onde mal cabe uma cama, calçada com tijolos e um guarda roupa velho sem uma porta. Tudo isso porque essa é a única pensão da vila, ou melhor, uma casa velha com seis cômodos onde cinco virou quarto e o que sobrou mora a Dona Candinha, a dona da pensão e também: cozinheira, arrumadeira, recepcionista, tudo ao mesmo tempo. Na falta de coisa melhor acabei se arranjando por aqui mesmo.

O que mais me assombra é a aparência da velha: Parece uma bruxa de filme de terror, cabelo mal penteado, uma berruga no nariz. Usa um vestido velho que arrasta pelo chão. Na verdade só falta sair voando com uma vassoura. Isso até posso desconfiar porque de vez em quando ela some de uma maneira que ninguém consegue encontra-la. Claro que tudo isso foi apenas uma má impressão do lugar, pois é muito difícil sair de uma cidade grande e ir morar num lugar pequeno. Vai demorar um pouco para eu me ambientar. E sobre o tal Zelão, amanhã esclarecerei melhor o assunto.

Na manhã seguinte bem cedinho, escutei o barulho no assoalho de madeira e um toc,toc na porta do meu quarto. Era a bruxa, ou melhor, a Dona Candinha me chamando: ---Acorda rapaz! O Seu João o carteiro esta te chamando. ---Já vou gritei, ainda bocejando pela noite mal dormida.

Quando saí, Seu João estava me esperando sentado num toco de madeira e com o malote nas costas.

----Pronto para começar? Hoje o malote está cheio--- Insisti para me deixar carregar o malote, afinal eu sou o novo carteiro, mas Seu João foi categórico: --- durante esse três dias que faltam para a minha aposentadoria, e que trabalharemos juntos quem vai carregar o malote sou eu, faço isso há mais de vinte anos e alguns dias a mais não fará diferença. ---Como você percebeu as nossas ruas não tem placas, e quando cheguei aqui nem nome elas tinham, resolvi eu mesmo nome-alas e colocar números nas casas para facilitar o serviço e a memorização das pessoas. E assim usei nomes de estados do nosso Brasil, ficando distribuído dessa maneira: a rua principal, aquela da capelinha, ficou com nome de Brasília. Para rua do ponto de ônibus, ou seja, do bar do Elias: Rio de Janeiro, da pensão da Candinha: São Paulo.Essas são as principais ruas da vila, são as que mais dão serviço para nós, as demais ruas e travessas também tem nomes de estados, no total são apenas doze ruas para percorrermos.

-----Seu João, a respeito desse morador, o Zélão. Porque me falou tanto dele inclusive dizendo que anda armado. Qual o problema. Seu João apenas balançou a cabeça e me disse: você logo vai saber o porquê espere apenas chegarmos a casa dele com a carta e você saberá logo.

E assim começamos a entrega, e uma a uma Seu João ia me apresentando as pessoas, pois ele sabe o nome de todos os moradores da vila. Assim foi sendo entregue todas as cartas até que sobrou apenas uma, e para o meu espanto a carta estava endereçada com o nome de José. Imediatamente me veio à cabeça, só pode ser do tal “Zelão”, mas não ousei perguntar nada. Chegamos a casa, Seu João correu rápido na minha frente e

bateu palmas. Como sempre o inimigo numero um dos carteiros se apresentou para nós: um enorme cachorro pastor alemão vem latindo e babando ao nosso lado, quando escutamos uma voz feminina, que lá de dentro da casa gritou com o cachorro, e este no mesmo instante parou no lugar e sentou, como se fosse um cordeirinho totalmente manso. Foi impressionante ver a obediência do cão. Para não arriscar achei melhor esperar a pessoa vir buscar a carta e não entrar na casa.

Quando ela saiu em minha direção foi algo totalmente diferente. Uma moça linda, linda demais, uma beleza como eu jamais tinha visto em toda a minha vida. Rosto angelical, cabelos compridos que levantavam com o vento, olhos verdes de uma beleza tão profunda que me hipnotizou. Eu ali parado em sua frente segurando a carta sem saber o que falar, ou mesmo o que fazer. ----Entrega à carta ----falou Seu João percebendo a meu total deslumbramento pela moça. ---- A carta está aqui. E ela teve que fazer força para tirá-la de minha mão. Seu João me deu um puxão pelo braço e me arrastou até o bar do Elias,

Sente aqui e vamos tomar uma cerveja, me disse com ar meio fatigado: essa moça que você acabou de ver, é a filha única do Zelão, pela qual ele tem um imenso ciúme, e todo rapaz que tenta se aproximar dela ele faz correr na bala. E olha que já foram mais de dez, então se você quiser permanecer aqui sem encrencas jamais ouse ter qualquer contato com ela.

Então esse passou a ser o meu tormento, pois foi paixão a primeira vista, e agora nem posso chegar perto dela., porque tem que ser assim tão complicado. Porem correr o risco de enfrentar o pai dela e ainda virar alvo do trinta e oito não é uma boa idéia. Mas que a moça é muito linda isso é.

Nos dias que seguiram não teve nenhuma correspondência em sua casa, eu sempre passo olhando na esperança de vê-la. Ao mesmo tempo em que lembro das palavras do Seu João e recordo do seu pai o valente da cidade.

Depois de quinze dias eis que surge a minha oportunidade: enfim uma carta em sua casa. Fiquei o dia inteiro ansioso por chegar o momento de vê-la. Deixei a sua carta por ultimo, e no seu portão bati com força. Como sempre primeiro o cachorro latiu, bati novamente e de novo o cachorro latiu ainda mais bravo. Bati pela terceira vez e nada de sair alguém. Já estava virando a costa para ir embora, voltaria amanhã para entregar-lhe a carta, pois quero entregar pessoalmente e não apenas jogar em seu corredor. E de repente escutei uma voz a me chamar “Carteiro”, por favor, me traga a carta aqui, e me pediu para entrar até a porta. --- Peço desculpas, pois estava no banho e demorei a sair. ---Ela de roupão de banho com os cabelos molhados, fiquei ali como uma estátua apenas a admirá-la, a voz não saía e eu consegui apenas balançar com a cabeça.

Quando estiquei meu braço na sua direção para entregar-lhe a carta, levei um tropeção num vaso de flor que me atirou em cima dela e para nós dois não cairmos no chão ela me abraçou com força, e foi nesse instante que seu pai chegou, já tirando o revolver da cintura e gritando: na minha filha ninguém coloca a mão seu carteiro desgraçado. Só sei que eu corri tanto como jamais tinha corrido em minha vida, cada tiro que escutava aumentava ainda mais a corrida. Corri a pé até a outra cidade aonde peguei um ônibus para a minha cidade e jamais voltei lá, nem mesmo para buscar minhas roupas. A Filha do tal Zelão é mesmo muito linda, porem mais linda ainda é a minha vida.

Carlos Costa