Um ano em Pereirópolis XIX - "Os cavaleiros da tormenta"

(Para entender melhor essa história, leia também esta: http://humanoempereiropolis.blogspot.com/2008/07/as-barreiras-do-espao-tempo.html )

Contava o meu avô, o oleiro Leovegildo Ritter, que o meu pai, Fritz Ritter, era o alemão mais gaudério que passou por aqui, na melhor e mais exata expressão dessa palavra. Fugia da colônia e ia para os campos do Figueira Velho, pai do Seu Figueira que foi meu vizinho de cerca na Linha Bonita. Aliás, onde é a Linha Bonita era a sede da sua Fazenda Corticeira. Pois o meu pai gostava de cavalo mais do que qualquer outra coisa, e desde pequenininho já sabia montar. Não é muito do hábito dos colonos - pelo menos não os daquela colônia em especial – o manejo de cavalos e de gado, exceto os bois do arado e as vacas de leite. Mas isso nem se comparava com as tantas mil cabeças de gado de corte do Figueira. E o Fritz adorava ir para o meio da peonada, no galpão, nas tertúlias e, sempre que deixavam, ia com eles para as invernadas. E quando voltava, tomava do meu avô uma tunda de vara de marmelo.

Uma coisa que nem todo mundo sabe é que o tempo avisa quando vai dar temporal: o céu fica pesado, o ar pára, ouve-se um zunido estranho – pelo menos, era assim que se percebia antigamente, quando a atmosfera não era caduca como está agora. Na Vila da Pereira, mais do que para prever o clima, esses sintomas prenunciavam a chegada dos cavaleiros da tormenta.

Todo ano, ali nas primeiras semanas de janeiro, um grupo de cavaleiros vinha pela estrada. Acampavam-se à beira do Rio Macaco, do lado de cá, bem debaixo da pereira velha, o marco da vila que depois virou praça e hoje tem até monumento. Ali os cavaleiros passavam uma noite e partiam antes do sol nascer de novo, antes dos galos. Não se sabe de onde vinham, pois nem sempre vinham da mesma direção – ora das bandas de Passo Fundo, ora de Cruz Alta, ora de Palmeira. Também não falavam com ninguém. Apenas cumprimentavam quem por eles cruzasse na estrada, e se iam depois. Mas o mais estranho na vinda desses indivíduos era que na manhã seguinte à sua chegada, desabava a primeira tormenta do verão. O Rio Macaco cobria a pinguela, a enxurrada derrubava as encostas, a estrada virava um barral e era tanta chuva, tanto vento, tanto telhado e tanta árvore arrancada que o remédio era rezar e esperar que a tormenta passasse. E, os que acreditavam, benziam a tormenta com ramo bento, machado, tesoura ou uma oração de Santa Bárbara.

Fritz tinha oito para nove anos. Minha avó, Adelaide Ritter, estava preparando a lenha no forno quando sentiu o ar parado, o céu pesado, ouviu o zunido, e viu, longe, um redemoinho de poeira levantando. Nunca havia sentido aquilo antes, e não soube o que significava, mas teve um lampejo de procurar o Fritz. O guri estava na estrada, trepado num pé de ariticum – coisa que não nascia na Colônia – quando os cavaleiros chegaram. Eram muitos, mais do que ele sabia contar. Foi a primeira vez que ele os viu de tão perto. Subiu num galho que se espichava por sobre a estrada para vê-los passando. Estava tão fascinado que nem percebeu que o galho partiu e ele caiu, entre cavaleiros e cavalos.

Veio a tormenta. Aquele ano, derramou água com muito mais força que das outras vezes. O rio carregou a pinguela embora, arrastou consigo as barrancas, as árvores e animais que estavam por perto. O vendaval levou não só os telhados, mas até algumas casas, e era tão forte que tirou do chão um terneiro recém nascido. Não foram poucas as pessoas que se perderam na enxurrada ou na ventania tentando salvar suas propriedades.

Para o desespero dos meus avós, meu pai não voltou para casa. Por toda a vila, e nas vilas próximas, os Ritter, que raramente saiam da colônia, procuraram saber do piá, qualquer notícia que fosse, sem resultado. Grande foi a tristeza não só na colônia como também entre a peonada da Fazenda Corticeira, que o queriam bem, e até se sentiam culpados porque naquele dia não deixaram que ele fosse junto para as lides.

Passou-se quase um ano, era dezembro. Vó Adelaide estava ensinando minha tia Brunilda a fazer pão quando sentiu os sintomas, aqueles mesmos do ano anterior. Correu para a estrada, para fora da colônia. Quase teve um ataque com o choque térmico de sair do forte do inverno para o alto verão além das árvores. Esperava encontrar os tais cavaleiros de que falavam os da vila, para talvez ter uma notícia do filho. Em vez do habitual tropel de cavalos, poeira e cavaleiros, vinha pela estrada apenas um menino, alemãzinho, montado em pêlo num cavalo branco. Fritz estava vivo.

Não sei se tem alguma relação com o episódio, mas dizem que na mesma época, em uma outra colônia germânica ali perto aterrissou um condor, arrastado pelo vento dos Andes até lá.

Depois daquele ano, por muito tempo não se viu nem vendaval, nem muito menos os cavaleiros da tormenta.

Mas, ainda uma vez, eles voltariam a atravessar aquela estrada.