Um ano em Pereirópolis XX - "Folclore, memória e verdade"

Uma coisa, um lugar, um bicho, uma pessoa, qualquer um que não se encaixe razoavelmente nos moldes de uma comunidade está sujeito a ser alvo da curiosidade. Na falta de explicações, surgem os boatos. Na persistência dos esquisitos em suas esquisitices, e ainda mais quando há várias teorias sobre elas, surgem os mitos, que são alimentados pelos que os transmitem. Os mitos acabam incorporados à cultura local com o tempo. Com o tempo, os esquisitos caem no esquecimento, ficando deles apenas as estranhezas. E, é claro, os mitos e as histórias em torno destas.

Uma dessas histórias, que agora me ocorre, é a Lenda do Sanguanel.

Muitas vezes, acontece de uma criança desaparecer, sendo encontrada dormindo horas depois em lugares absurdos como ocos de árvores, barrancos, sob samambaias. Ou então, aparece de volta em casa como se nem mesmo tivesse saído. A criança raramente lembra do que houve, ou como foi parar onda a encontraram. As poucas que se lembram, contam que um homenzinho vermelho brincou com elas, deu-lhes frutas ou doces para comer, e que não lhes causava medo – aliás, contam que era muito divertido. Para os colonos italianos, especialmente os da Serra, essa é a descrição exata do Sanguanel.

Esses dias eu contei da vez que a minha neta Fernanda sumiu, quando tinha três aninhos (http://humanoempereiropolis.blogspot.com/2008/07/as-trs-comadres.html). Por anos, interrogaram-na sobre se ela lembrava de alguma coisa, qualquer coisa que fosse para confirmar mais um “ataque” da criatura. E, como a maior parte dos casos, mesmo que ela não tivesse confirmado, prevaleceu a versão que se espalhou, e fortaleceu-se o mito.

Semana passada, quando a Beatriz e meu genro Augusto foram para a fronteira para visitar os pais dele, a Fernanda sentiu vontade de retomar um velho hábito: ficar uns dias aqui em casa. Foi numa noite dessas, abastecida de café preto e de besteiras que só se come em casa de vô, que a Nanda me saiu com essa.

“Vô. Sabe aquela vez que eu sumi da festa do Eninho, que dizem que foi o Sanguanel e coisa e tal, e eu dizia que não lembrava de nada?”

“Sei. Tua mãe quase ficou louca, coitada.”

“Pois é. Era mentira.”

“O quê? O que era mentira?”

“Eu lembro de tudo, direitinho. Acho que é a minha memória mais antiga. Às vezes eu até sonho com o que aconteceu aquele dia.”

“Mas guria! Por que tu não contou isso antes?”

“Não sei, vô. Acho que eu tinha medo, ou achava que ia dar muito o que falar, ou... sei lá. Não queria que viessem incomodar o senhor.”

“Me incomodar? Agora é que eu não entendi.”

“Vô, tu sabe que o pátio da Dona Mercedes é gigante, e que aquele arvoredo está lá desde o tempo do Ariri Pistola, não sabe?”

“Seeeeei. Aquilo ali é um pedaço de mato nativo, praticamente intocado. Dizem que tem um cemitério indígena em algum lugar do pátio. Os fantasmas dos bugres andam rondando as árvores. Mas não me conversa. Onde é que eu entro na história?”

“Não são só as almas dos bugres que perambulam por lá. Aquela vez eu tava decidida a me esconder de verdade, e nem pensei duas vezes em me enfiar no mato. E eu lembro de andar e olhar para trás, e ver a casa ficando cada vez menor. E quanto mais eu andava, mais escuro ficava; até eu perceber que estava perdidinha. Aí sim bateu medo. Então, vô, eu vi que tinha mais alguém ali.”

“Aimeudeus...”

“Sim. Eu só vi um par de olhinhos vivos, brilhantes, perdidos no breu como se estivessem flutuando. Eu ia gritar, mas não consegui, porque bem na hora, apareceu uma luz vinda do nada. Era uma luz amarela, como se tivessem acendido uma lâmpada. Então eu vi, bem na minha frente, o dono dos olhinhos: o sacana, vermelho dos pés à cabeça, de olhos brilhantes, com seu meio metro de altura. Era ele!

“Ele quem? O Sanguanel?”

“Não, vô! Era um velho conhecido seu: o Anhangá-pitã! O capeta da história A Galinha e o Lobisomem (http://www.recantodasletras.com.br/contos/817341). Depois que o vi, ele saiu correndo e eu, apavorada, me escondi no meio das samambaias. Aí sim é que eu apaguei, e só acordei quando me encontraram.”

Só então que eu percebi uma verdade insofismável; ou melhor, duas grandes verdades.

Uma: quando você é um contador de causos, tem que observar a quem você os conta – sobretudo às crianças – porque a impressão que as histórias causam nas pessoas pode misturar um conto de fadas às memórias de coisas reais. É assim que nasce um mito, e talvez – quem vai saber – o folclore. A Fernanda vai fazer vinte anos e acredita piamente que teve um téte-a-téte com um personagem de um dos meus causos, que também é o vilão de outras histórias do folclore gaúcho.

Duas: nem só as pessoas são rancorosas; as criaturas mágicas que andam por aí podem alimentar dissabores por muitos e muitos anos contra aqueles que os fazem de bobos. Não sei se o Anhangá-pitã queria fazer algum mal à minha neta, ou às outras crianças fazendo-se passar pelo duende Sanguanel. Mas, depois da história que a Fernanda levou mais de quinze anos para contar, eu sei que ele está de volta; quem sabe, morando no pátio da vizinha.

E o pior é que faz meses que não tenho notícias da Berenice e o Euclides. A última foi que viajaram para Portugal, em segunda lua-de-mel. Ninguém sabe lidar com aquele Tinhoso como a Galinha Berê. Quem deve saber é o Lobisomem, mas o coitado já é tão velhinho... é capaz de nem lembrar de mim.