LEGÍTIMA DEFESA

I –

Foi com muito sacrifício e força de vontade que José Izidio dos Santos conseguiu construir uma casinha nos arredores de Camaragibe.

Quando a casa ficou pronta, levou consigo a negra Romana que cuidava de tudo.

Lavava, passava, cuidava do de comer e principalmente educava a filha Edileusa, meninota de sete anos de idade, cabelos sempre penteados e amarrados com fita achamalotada, olhos amarelos como os de onça e a pele entre o preto da mãe e o branco encardido do pai.

Vida de remendão de sapato não era nada fácil.

Então agora com os preços do couro, cola e aviamentos, tudo pela hora da morte.

Com a influência do Cabo Tenório, encarregado do destacamento policial que era seu compadre, padrinho de batismo de Edileusa, Zé conseguiu um ponto na rua principal.

Era uma birosca.

Metro e vinte de largura por dois de profundidade.

A porta de duas folhas foi invertida de formas a abrir para fora a fim de ganhar espaço.

A banca toda pintada com as gloriosas cores do Santa Cruz Futebol Clube, ficava no fundo do cubículo e encostado numa das paredes um banco de madeira com espaço para duas pessoas que seria usado por quem estivesse necessitando de um conserto de emergência.

Antes a banca de Zé era localizada na frente da igreja, sob a gameleira.

Havia freguesia fiel que enquanto houvesse possibilidade de colocar uma taxinha nas tiras de couro da sandália, não comprava outra.

Além de remendão, Zé Izidio era engraxate renomado.

Os coturnos do destacamento eram engraxados com esmero, principalmente os do compadre Cabo Tenório.

Homem valente, responsável e acima de tudo, respeitador.

Não havia quem não gostasse do Cabo.

Toda noite depois do expediente na delegacia, o Cabo ia com a esposa e os seis filhos para o culto na Assembléia de Deus, onde também era pastor.

Antes de se tornar crente, o Cabo havia sido colega de farras do sapateiro.

Muitas vezes vira o amanhecer na pensão das rameiras e muitas vezes foi levado pelos soldados, caindo de bêbado.

Mas um dia se regenerou, virou crente e foi salvo.

Desse dia em diante, não se falava mais em farras, nem rameiras, nem noites acordado, nada, só Jesus.

Quando precisava ir à pensão de Maria Gorda para resolver qualquer problema, ia fardado e com o maior número de soldados para que todo mundo visse que ele, o Cabo, estava em serviço e não frequentando aquele antro de perdição, aquela casa de recurso.

Nas vezes em que visitava o compadre era para lhe dar conselhos para aceitar Jesus como seu salvador particular, mas Zé Izidio não queria saber de igrejas principalmente de igreja onde não se bebe, não se fuma e não se dança.

A negra Romana tinha sido rapariga da pensão de Maria Gorda, que era a madrinha de Edileusa, e desde que se amigara com Zé, ia com ele para todo canto.

Cantavam, dançavam, iam para festas, tomavam cachaça sempre juntos.

II -

Certo dia apareceu vindo dos lados da feira, um sujeito com aspecto doentio, roupas velhas, sapatos bem maiores que os pés, bengala com um osso de canela de boi na ponta e sacola pendurada no ombro.

Alguém escondido gritou;

- Tamborete, tamborete.

O homem já avançado na idade ficou vermelho e gritou;

- Vá procurar sua mãe no puteiro, seu filho de rapariga.

- Tamborete, tamborete.

- Tamborete é o corno do seu pai, safado.

À medida que iam chamando, os meninos corriam em torno do velho e davam puxavantes na sacola, mas sem o desejo de toma-la.

O objetivo era o aperreio do velho, era a brincadeira safada e irresponsável.

O velho odiava aqueles meninos, dizia palavrões, vibrava a bengala no ar com o objetivo de quebrar a cabeça de um moleque daqueles.

Jogavam pedras, ensaiavam corridas na frente do velho até que um adulto interferisse e dispersasse a meninada.

Quase todos os dias, à tarde, a cena se repetia.

III -

Terça feira, nove horas da manhã, a sala do tribunal do júri não cabia mais ninguém.

Todos queriam ver, ouvir e aplaudir o Dr. Edmundo Travassos.

Nos quinze anos que tinha como promotor de justiça, jamais havia perdido uma causa.

Aqueles que tiveram a desdita de serem acusados por ele estavam pagando duras penas.

O juiz mandou que se procedesse a leitura do resumo dos autos e o oficial de justiça, com sua voz nasalada, monótona, às vezes rouca, às vezes estridente foi desfolhando páginas e páginas sem entusiasmo, em ritmo sonolento...

... Leitura da certidão de ocorrência numero 55834 de 14 de setembro de 1998...

Por volta das quinze horas, no município de Camaragibe, Estado de Pernambuco, o senhor José Izidio dos Santos, sapateiro com loja de atendimento, instalada na Rua do Comércio, utilizando-se de sua faca de trabalho, produziu ferimento lácero contuso no tórax da vítima Luiz Eulálio da Mota Veiga...

- Chamo para depor o senhor José Tenório, Cabo da Polícia Militar de Pernambuco...

... Sentado no banco das testemunhas, o Cabo passou lentamente os olhos pelo auditório... os jurados... o promotor... o advogado de defesa que tinha sido designado pela assistência judiciária... o compadre Zé olhando o chão...

- Quando fui avisado do ocorrido, segui com o Soldado Silva para a Rua do Comércio. Chegando lá encontrei o Tamborete... desculpe, a vítima com um corte grande na altura do coração, caído numa poça de sangue e o meu compadre... quero dizer o Réu, ajoelhado num canto, abraçado à filha e chorando...

- Chamo para depor o Professor Luiz de Queiroz...

- Meritíssimo Juiz, sou conhecedor há muitos lustros da pessoa do réu e durante esse lapso de tempo tive oportunidade de acompanha-lo nos convescotes e na labuta...

... Dessa observação veio-me a certeza de tratar-se de homem probo, laborioso, carinhoso pai, amantíssimo esposo...

Entretanto quis o Destino de colocá-lo no banco dos réus.

"ERRARE HUMANUM EST ET FELIX QUI POTUIT RERUM COGNESCERE CAUSAS..."

O professor falou por muito tempo apesar de ser, vez por outra, observado pelo Juiz de que devia ater-se exclusivamente ao objeto do julgamento.

Mas de quase nada adiantou.

O professor estava com a corda toda e fez citações de Cícero, Virgílio, Platão, Napoleão e tantos outros tribunos, filósofos, militares etc...

- torno a reiterar o que afirmei em meu depoimento, meu tio o Comendador Luiz Eulálio da Mota Veiga, a vítima, sempre foi homem de bem.

Trabalhou desde menino e agora na velhice, fazia questão de morar só. Há algum tempo não tínhamos noticias dele.

Há quem diga que depois da morte da esposa e do filho único, em acidente de carro, passou a variar e saiu de casa.

A notícia do óbito nos foi dada pela funerária...

- São todos uns safados Dr. Juiz.

Aquele velho Tamborete era um sacana, vivia lá na minha pensão mentindo, dizendo que era isso e aquilo, que era homem de bem, que era comendador.

Pois sim!

O que ele era muito era comedor!

... Só saía da pensão depois que ganhava o que comer, por volta das três da tarde.

As meninas sempre guardavam um almocinho para ele.

Eu fazia de conta que não via para não ter que reclamar todo dia.

Afinal de contas um prato de comida que desse àquele caco velho não ia fazer eu ficar mais pobre, mas também não quero que minha pensão vire randêvú, com tudo que é de desocupado indo comer lá.

Quando saía da pensão era esculhambando todo mundo só porque os meninos chamavam ele de tamborete.

(E piscando o olho para o Juiz que não tirava os olhos do decote do vestido, Maria Gorda acrescentou a meia voz...)

- Eu acho que ele merecia o apelido que tinha, era em tudo parecido com um tamborete de zona...

- Meritíssimo Senhor Doutor Juiz deste Egrégio Tribunal, Senhores Jurados, Nobre colega da Defesa, minhas Senhoras, meus Senhores.

Era o Dr. Edmundo Travassos, o promotor.

O advogado de defesa tinha idade de ser filho daquele homem de aspecto leonino, cabeleira grisalha, voz tonitruante.

Cada vez que o Dr. Edmundo lhe dirigia a palavra, encolhia-se na cadeira como se o mundo fosse desabar sobre ele.

Mal podia balançar a cabeça em resposta afirmativa ou negativa, conforme o caso sugerisse.

- O que vimos nesse tribunal, foi o retrato falado de dois homens que por suas características pessoais, diferiam como a água do vinho.

A vítima, homem de vida regularmente estabelecida, vivendo de sua aposentadoria e sofrendo o achincalhamento da criançada, pobre de cérebro e de estômago, da periferia da capital...

O réu, trabalhador rude de labor paupérrimo que atendendo aos instintos naturais de defesa da cria e preservação de sua integridade física, matou para que cessasse o perigo.

Consta nos autos que estando a trabalhar em seu ofício, o sapateiro José Izidio ouviu, como de costume, os impropérios proferidos pela vítima, alcunhada Tamborete.

Que estando a desbastar a sola para poder aplicar num calçado, viu sua filha Edileusa, menor impúbere, entrando na loja, pedindo socorro e atrás, a vítima, brandindo a bengala pronta para desferir o golpe na cabeça da menina.

Consta também que o réu gritou com a vítima para que parasse, protegeu a filha com o próprio corpo e recebeu a bengalada que lhe fraturou a clavícula.

Trânsido de dor e de fúria, desferiu o golpe que vitimou o senhor Luiz Eulálio da Mota Veiga.

Senhores Jurados, consta também nos autos que a pequena Edileusa, filha do Sapateiro, jamais fez parte da chusma que se divertia todas as tardes...

... E finalmente, esta Promotoria por considerar a clara caracterização de legítima defesa própria e de terceiros, pede para o réu, ipso facto, a absolvição.