ENGANO

I -

Acordei com aquela sensação de opressão...

Tudo escuro, quente, pouco ar...

Cheiro forte de cravos...

Sobre meu peito enrolado nos dedos um rosário...

Levantei as mãos até bater na tampa do ataúde...

Eu havia sido enterrado vivo...

Com o coração aos pulos pensei seria sepultura ou cova.

Bati nos lados do caixão...

Gritei a plenos pulmões...

Chorei...

Tentei ouvir algum som...

Bati cadenciado na tentativa vã de obter resposta...

Nada...

Eu estava só e sepultado.

O som do ataúde era cavo e não esclarecia minha dúvida, sepultura ou cova?

E se fosse cova, como vencer aquele monte de terra sem morrer asfixiado?

Como abrir a tampa do ataúde com todo aquele peso?

Parei.

Tinha que organizar meus pensamentos e definir o que fazer.

Dentro de pouco tempo o ar que era escasso estaria esgotado.

Se eu pretendia sair dali, tinha que manter a calma ou desistir de viver e morrer duas vezes...

Antes e depois de ser enterrado...

Forcei um dos lados da tampa...

Não se moveu...

Tentei outra vez...

Chorei novamente diante da constatação de que eu estava só, completamente só.

Num ato de desespero, forcei a tampa com toda força que me restava e o ataúde estava aberto.

A tampa subiu pouco mais de um palmo.

Deitei de lado e apalpei o lado de fora...

A parede estava úmida, a massa meio mole.

Forcei a parede e um tijolo foi deslocado, com o pé e a mão, consegui derrubar a parede inteira, deixando entrar uma lufada de ar, que me deixou tonto...

Quando me refiz, saí da sepultura.

Estava descalço, com a camisa rasgada nas costas e com calça de pijama...

Era noite...

Havia escuridão profunda em todo cemitério...

O ruído de um carro passando me indicou o portão.

Tropeçando em enfeites de covas rasas, cheguei junto ao muro.

O portão de ferro estava trancado, mas foi fácil chegar à rua.

Fui andando para casa...

Eu estava com fome, com sede e muito frio...

Minha casa fica longe do cemitério, teria que pegar uma condução.

Um taxi para pagar quando chegasse a casa, mas e se não tivesse ninguém?

Lembrei da minha noiva.

Iria para a casa dela.

Família grande sempre tem gente em casa...

Que horas deveriam ser?

Madrugada, talvez...

II-

Dois dias antes disso...

“Oh! Abre alas, queremos passar; oh! Abre alas queremos passar” cantavam com vozes pastosas pelo álcool, os ocupantes do carro que parecia dançar na pista, embalado pela marchinha de carnaval.

O motorista fez uma manobra “artística” tirando fino noutro carro.

- você é corno...

- filho da puta, gritaram os três ocupantes do fusquinha.

O motorista pela euforia do álcool e pelo apoio recebido dos colegas aumentou a velocidade e saiu buzinando para todo mundo.

A estrada virou um turbilhão de veículos, pessoas e gritos de hiarrú até que bateu de frente com um caminhão carregado com areia molhada.

O fusquinha virou um maracujá.

Com a pancada e sem a porta, Betinho que vinha no banco do carona, foi atirado longe.

O motorista ficou preso nas ferragens e o passageiro do banco de trás, bateu com a cabeça na coluna da direita... Todos mortos.

Lençol branco, velas, IML, familiares reclamando os corpos, muito trabalho, pouca gente no plantão.

- libera esses filhos da puta sem necropsia mesmo.

Essas porras já estão mortas. Bota traumatismo craniano na causa mortis. E vê se não me aporrinha mais...

É carnaval rapaz, estou descansando...

Qualquer médico daí vai assinar a perícia tanatoscópica, diga que fui eu quem mandou.

Ligue para a besta do Dr. Luiz, ele serve pelo menos para isso.

Bom carnaval para você também e vê se me erra.

III –

- não posso acreditar que Betinho tenha morrido. Filho tão bom quanto ele não poderia existir.

- dona Ernestina, que vai ser de nós?

- calma minha filha, você vai encontrar outro homem bom para se casar e constituir família.

Você merece.

Infelizmente a fatalidade levou nosso Betinho.

Apesar de ser terça feira de carnaval, o velório estava repleto.

Muitos dos conhecidos, da família do defunto e da noiva dele, estavam presentes.

- dizem que ele ficou horrível depois do desastre.

- é por isso que o caixão está fechado.

- dizem que já está fedendo.

- receba meus pêsames senhorita, Betinho foi uma grande perda.

- conforme-se minha senhora, deus escreve certo por linhas tortas.

- Betinho cabra safado, se você não tivesse morrido, eu ia lhe matar ainda hoje.

Zé Negão, maior traficante de droga, estava de pé, junto ao caixão.

- que é isso rapaz, respeite o morto.

- e defunto safado merece respeito?

Esse cabra vinha me traindo. Me prejudicou com a polícia. Disse que tinha entregado parte do dinheiro para o pessoal da 36º DP, mas Buraco Negro entregou o serviço.

Ele vinha me roubando há muito tempo.

Eu nunca engoli o roubo da coca no caminho de Caruaru.

Ele era um frouxo.

Com medo do agente Dedão, entregou a turma de Carlos Fininho no caso dos carros.

- é mentira sua, meu filho nunca foi ladrão, nem traficante, nem puxador de carro.

- minha senhora, a senhora é uma santa. Não imagina a peça boa que era seu filho.

- beije sua avó, meu filho.

Dona Ernestina, esse é José Lourenço, meu filho com Betinho...

Nós vivemos juntos há muito tempo.

IV –

Abri o portão da casa de Adriana.

Pingo me reconheceu e balançou o rabo.

Bati na janela... Bati de novo.

Adriana apareceu na janela e me olhou com espanto.

Se não gritou foi por causa do tamanho do susto.

- fui enterrado vivo. Quando consegui sair vim para cá. Mamãe já está muito velha, poderia ter um troço.

Adriana foi abrir a porta e deu o dinheiro para pagar o taxi.

Quando entrei a recepção não foi calorosa como eu pensei que seria. Entrei e sentei na sala mal iluminada, pois Adriana evitou que a beijasse.

Pensei comigo, é o trauma do enterro.

Passamos muito tempo em silêncio.

Adriana levantou e passeando pela sala disse com voz cansada.

- você foi muito esperto todo esse tempo. Você conseguiu iludir a todos. A mim, a sua mãe, ao Carlos, ao Zé Negão, àquela mulher que tem um filho seu, Lourenço, não é?

Você não devia ter voltado...

Já estava morto e perdoado, mas agora... voltou tudo...

- Adriana não estou entendendo o que você está falando.

- deixe-se de desculpas

- não estou me desculpando, só não estou entendendo

- mas isso você vai entender...

Adriana tirou a pistola do bolso do roupão...