UM RAIO

Fim de mais um dia absolutamente igual aos outros.

José Claudio Pereira da Silva guarda na gaveta do armário de aço, os papeis que não conseguiu despachar.

O melancólico – até amanhã - junto ao relógio de ponto é só o que consegue dizer aos colegas que, como ele, deram por terminada a tarefa daquele dia.

Agora na rua José Claudio pensa outra vez no desprazer de arrastar o seu nome.

José, nome comum...

Todo mundo é José...

O padeiro é José...

O cobrador do ônibus é José...

O pai de Jesus é José...

O assaltante morto pela polícia, cuja fotografia estava na primeira pagina do jornal de hoje, também era José.

Claudio, o coxo, em latim...

Mas ele não era coxo...

Ele não gostava de ser Claudio o coxo, o claudicante, aquele que claudica.

Pereira...

O que vinha a ser uma pereira?

Uma arvore da Europa que ele nunca tinha visto...

Nem a fotografia...

Ele não gostava de peras...

Fruta besta, sem gosto, só tem água...

Desenxabida como a vida de escriturário.

Silva...

Se nunca tinha ido numa selva, como é que podia ser da Silva?

Ser da Selva?

Ser selvagem...

Devia ser bom ser selvagem...

Ser da selva, valente como um jaguar...

Bom devia ser da selva, não da Silva como todo mundo.

Todo mundo é Silva...

Todo mundo é José...

Todo mundo é José da Silva.

Aquele Juiz, filho da puta.

Negou meu pedido para mudar de nome dizendo que José Claudio Pereira da Silva não causa constrangimento.

Não causa constrangimento a um filho da égua da qualidade dele.

Podia muito bem se chamar Roberwaldson Carrara.

Isso sim era nome de homem importante...

Nome importante...

Que dá importância...

Que tem qualidade...

A brisa fresca do entardecer deu lugar a um vento úmido.

Finalmente na parada do ônibus, José Claudio leu pela enésima vez a placa com as linhas que paravam naquele ponto.

Não fazia a mínima ideia de quantas vezes tinha lido aquela placa onde faltavam tantas letras...

Pela quantidade de pessoas, devia fazer muito tempo que não passara um ônibus sequer. As pessoas comentavam sobre um acidente envolvendo um carro pequeno, um ônibus e um poste.

O transito estava interrompido para todos os lados.

Ninguém passava...

Os bombeiros foram chamados para socorrer os feridos e retirar o motorista do carro pequeno morto nas ferragens...

Espremido...

Esse pelo menos se vira livre do seu nome que também devia ser José.

José Claudio Pereira da Silva. Isso lá era nome que se pusesse num filho.

Merda de juiz safado...

Era bom que o motorista morto fosse aquele juiz nojento...

O vento aumentava a cada instante fazendo rodamoinhos com os papeis na sarjeta.

Se tivesse uma peneira poderia pegar um saci, como quando era criança no quintal da casa da avó...

Mas não tinha nem peneira, nem avós, nem saci.

Só tinha aquela espera, exasperante, chata como seu nome.

Sentiu fome.

Poderia ir num local qualquer lanchar ou mesmo jantar.

Poderia chegar à casa a qualquer hora...

Não tinha ninguém esperando.

Morava só.

Só não.

Tinha aquele nome abominável que ia com ele para todo lugar.

José Claudio...

Um relâmpago rasgou o céu poluído da cidade seguido de magna explosão.

As luzes se apagaram num repente. Alguém disse – ave Maria!

As primeiras gotas de um tremendo temporal tamborilaram no teto metálico do abrigo da parada do ônibus e em mais alguns instantes molhou tudo e todos.

O teto do abrigo era pequeno para tanta gente.

Fazer o quê?

Esperar?

Não, era melhor ir andando. Andar até em casa. Afinal quatro quilômetros são quase nada.

- boa noite seu Rob. O senhor vai ter que subir pela escada. Caiu um raio na central de distribuição e a previsão para normalizar é amanhã.

- boa noite Elísio. Já temos água?

- não senhor. A bomba deu problema de novo e o rapaz que levou para consertar disse que ia trazer amanhã de tarde...

Não trabalhou nem quinze minutos...

Ele disse que é o induzido, ou seria o rotor? Não sei dizer ao senhor.

- tem vela? A escada está um breu.

- o senhor veio a pé, foi?

- foi. Tem a vela?

- tem não senhor. É por isso que estou aqui fora.

Tateando pelas paredes, José Claudio, ou melhor, Roberwaldson Carrara – seu Rob – chegou ao primeiro andar.

A porta do apartamento 101 estava entreaberta e a luz mortiça da vela projetava a silhueta de dona Flor nas pastilhas da parede.

- boa noite. Que chuva hein?

- boa noite seu Rob. Mas que é isso gente? Todo molhado, venha se secar.

- mas as roupas estão lá em cima.

- o senhor veste meu roupão. Por favor. Não vá se fazer de rogado.

Um enorme trovão, seguido de clarão maior ainda, jogou dona Flor apavorada nos braços de seu Rob.

E nessa noite, José Claudio Pereira da Silva, aliás, Roberwaldson Carrara, jantou e dormiu acompanhado.