VERGONHA

Agora sim! Com todo aquele dinheiro José Amâncio poderia finalmente realizar seu sonho. Voltar para o interior. Rever sua terra natal. Comprar terras, caminhão, criar gado, negociar nas feiras, casar com Anastácia. Seria muito bom voltar à vida que perdera desde que, tangido pela seca junto com a família teve que vir para o Recife na vã ilusão de uma vida melhor. Os brinquedos de barra bandeira e de bola queimada com os amigos de infância nas ruas poeirentas, a rua onde morava, a escola com a professora dona Hermínia, sempre carrancuda dando travos nos meninos e ensinando prendas domésticas às meninas, banhos de açude, caçadas com badoque... aquilo sim era vida, nada comparável à favela do DETRAN onde agora vivia com a mãe num mocambo feito com madeira velha, papelão e lona plástica. Sempre que chovia gotejava para dentro sobre a cama feita com varas e papelão, tão diferente da rede macia deixada no interior. No sertão a goteira como um maestro, marcava o compasso do cantar dos sapos. Na favela a goteira era um relógio martelando o tempo miserável que teimava em não passar. Mas isso agora acabou. Com todo aquele dinheiro, só precisava acalmar um pouco. Sair logo cedo, com as tralhas de pesca, como fazia todos os dias, subir na jangada feita de bambus e navegar até a ponte de Caxangá. De lá um ônibus para a rodoviária e da rodoviária para o oco do mundo. Nunca mais ninguém o veria. Iria para Salgueiro e de lá para o Juazeiro da Bahia ou o Juazeiro do padin Cíço. Melhor o do padin, lá seria mais um romeiro que jamais seria encontrado pela polícia. Do Juazeiro iria para o Piauí ou o sertão brabo da Bahia. Aqui prá esses filhos da puta. Nunca mais ninguém iria por os olhos em cima dele. Principalmente aquele sacana segurança do Bompreço que tantas vezes o enxotou. Aquele cabra sem vergonha bem que mereceu o balaço que levou. Ainda foi pouco. Morreu logo. Devia ter atirado no bucho e vez da boca ou no meio das costas para ele demorar a morrer e pagar pelas vergonhas que tinha feito José Amâncio passar.

- isso é para você nunca mais me mandar sair daqui viu, seu filho da puta. Pum!

O vigilante caiu com os olhos arregalados. Também quantas vezes, estava querendo pagar um frete e ele mandou sair.

- sai daqui vagabundo.

- seu guarda eu só queria pegar esse frete para arrumar um dinheirinho para levar comida para casa.

- o Bompreço tem funcionários para isso. Saia já daqui seu vira-lata.

- deixe o rapaz, ele está querendo trabalhar.

- não minha senhora. Esses desocupados ficam fingindo que querem um biscate para roubar os fregueses. Pode ver, se não faltar alguma coisa quando esse pessoal arruma o carro, eu choche.

- olhe patroa...

- não senhor. É melhor não.

Essa vergonha que aquele filho da égua fez não poderia ficar sem resposta.

- Só não o matei na hora para não ser preso.

Quando Nininho procurou José Amâncio para ser vendedor de maconha, ele aceitou na hora. Não iria mais passar vergonha na frente do Bompreço. Poderia juntar o dinheiro, passar de vendedor a distribuidor e quando tivesse estribado voltararia para o sertão. Com as amizades novas, surgiu a idéia do assalto que iria matar dois coelhos com uma só cajadada. Pegava a bolada de uma vez e acabava com a vida do vigilante sem vergonha.

- era sexta feira à tarde, gente como todos os diabos. O Hiper Bompreço estava cheiro. Nininho e os meninos entraram pela porta dos fundos, eu e mais dois cabras ficamos no pé da escada do escritório. Foi tudo muito rápido. Quando me disseram vamos eu me virei para o vigilante que estava distraído junto das flores e chamei, oh! seu guarda, olhe uma coisa aqui. O bicho nem teve tempo de se mexer, dei-lhe o tiro na boca prá ele nunca mais mandar ninguém embora. O sacana caiu por cima dos jarros de flores. Saí correndo para os lados da SUDENE para despistar. Esperei anoitecer cortando capim na Universidade por baixo da ponte do riacho Cavouco. Só via o movimento dos carros de polícia com as sirenes ligadas. Gente por peste. Nininho mandou entregar minha parte. Cento e dezesseis mil e uns quebrados, dentro de um saco de papel do Bompreço.

José Amâncio voltou para casa para mandar a mãe ir para a rodoviária. Ela não estava. Onde diabos teria se socado?

- Só preciso me acalmar um pouco, ela chega já...

- vamos quenga velha, diga onde está seu filho...

- não sei não senhor... ele saiu de manhã para trabalhar...

- ele é ladrão e matou um homem. Nós queremos ele. Ou você diz onde ele está ou vai ficar sentada aí até apodrecer, até morrer de fome, até morrer de sede, enquanto não falar não sai daí de jeito nenhum.

- eu não sei não senhor... ele saiu prá trabalhar...

- e mãe que não chega. Será que ela ainda está no Bompreço vendo o movimento do assalto. Já está tão escuro.

A porta se abre com um encontrão.

- mãe onde a senhora estava? A gente tem que ir embora...

Um foco de luz forte cegou José Amâncio que se levantou da cama improvisada sacando a arma da cintura.

A rajada de metralhadora, como um riso metálico se espalhou pela favela e José Amâncio viu a luz escurecer.