A FAZENDA CARVALHO

Dedico este conto a todos colegas que de vez em quando , brincamos de tomar café juntos

A Fazenda Carvalho

Causo da VoVó

No alto da colina, a velha casa ainda majestosa parecia vigiar a estrada sinuosa que levava a vários caminhos, inclusive ao casarão.

Balançando levemente num vai e vem, vovô esperava...

Há dias que ficava lá, coçando a barba branca serrada.

Esperava notícias da cidade grande, se eram ruins ou boas eu não sabia, só via o olhar preocupado e de vez em quando caminhava no assoalho de tábuas largas, fazendo- as ranger .

Da cozinha ouvia-se o chiar das panelas, sentia-se o cheiro bom de galinha ao molho pardo, seu prato predileto.

Ninguém se atrevia a dizer uma palavra!

Bem no fundo da invernada vinha para casa, a passos lentos, os bois de carro, depois de longa jornada .

O carreiro os conduzia silencioso, como o senhor da casa grande.

Lavadeiras passavam com trouxas na cabeça e crianças pela mão.

Nos arredores, a grande moita de bambuzal balançava no mesmo vai e vem da cadeira do vovô .

Eu pequenina sentia o peso no ar...

Alguma coisa estava errada mas, o quê?

Todos falavam baixo, tio Chico não montava mais o cavalo baio,

Não havia mais fogueira na tulha, os empregados recolhiam-se cedo.

Morávamos felizes, eu pensava, naquela fazenda onde o tempo tudo parecia parado.

Ao raiar do dia, o grande sino ainda da época dos escravos, tio Chico fazia tinir acordando os camaradas.

A maioria negra, saiam de suas casas enfileiradas, a beira do terreiro de café em grande algazarra.

Assim cada dia era festa diferente, ver colher o café, amarelo, vermelho, ver encher os terreiros, brincar com os meninos e meninas dos agregados, tomar banho de cachoeira, comer fruta madura no pé, contar as estrelas á noite e sonhar muito...

Nasci e me criei no casarão, sentindo o cheiro bom do café, tudo e todos giravam em torno dele.

Quando chegava noite, juntos todos da família falavam alto bebiam vinho, e contavam causo ...

Aquelas cenas ficaram inesquecíveis para uma criança como eu.

Mamãe me pegava no colo, sentada na cadeira de balanço, alisava meus cabelos loiros e me contava histórias lindas!

Ás vezes me sentia segura, outras vezes com medo, e tentava desafiar os fantasmas que jurava que existia no grande corredor do casarão.

Assim dormia aconchegada no calor materno e aquecida pelo calor do grande fogão á lenha, onde vovó reinava absoluta.

Gostava de ver o cuco indicar as horas com sua língua vermelha não entendia porque tinha que sair de hora em hora.

Encostava o nariz na cristaleira da vovó e via meus olhos em tamanho maior refletidos nos cristais antigos que Maria cuidava com carinho nos dias de faxina .

Os empregados da fazenda, homens de peso, mulheres de boa conduta, o mundo parecia não existir além das porteiras .

Quando vovô falava parecia que suas palavras soavam como um trovão.

Gostava de vê-lo sorrindo, mesmo com aqueles dentes amarelos mesmo assim tudo se iluminava e nos dava segurança.

Agora, há dias que está triste, inseguro, esperando notícias não sei de onde, e nem o que faz ficar assim tão calado .

Ficava por perto, mas tinha medo de aproximar-me .

Senti seu senho enrugando quando lá em baixo na curva estrada, desponta aquele carro preto, com uma cruz branca na porta .

Assim devagarinho aquele carro se aproximou.

Vi vovô apertar as mãos no cabo do relho, seus olhos brilharem e seus lábios tremerem.

Eles chegaram ....vão levar todos e tudo vai se acabar ....

Vovô de pé, chapéu na mão, educado como sempre indicou o assento aqueles homens, e daí em diante começou nosso calvário.

Alguém havia denunciado a doença ingrata da nossa família .

Aqueles vizinhos ingratos, haviam denunciado, porque, as águas que serviam nossas terras, passavam em primeiro lugar sobre as terras do vovô, e a ignorância maior imaginavam, que assim poderia contaminar quem estivesse abaixo.

Nunca se contaminaria ninguém assim ...mas o atraso o medo e a maldade prevaleceram.

Estamos nos anos 50, a doença lepra, que imperava, matando destruindo, sem cura ou esperança dela .

A saúde pública, implacável, não sei se por falta de conhecimentos ou por maldade, agia ás cegas, tirando de circulação todo paciente

suspeito da doença.

São pedaços da nossa triste história com h, mesmo que não se comenta e nem se acha documentada, porque é feia muito feia, para dizer desumana!

Lembro-me bem, todos fizeram exames, inclusive os empregados, que muitos fugiam para o mato com medo das agulhas e todo resto.

Assim como se perde uma guerra, ficamos horas na frente do fogão á lenha, olhando as labaredas dançarem alegremente, refletindo uma luz forte avermelhada, nas panelas arriadas, que nossa cozinheira, mantinha orgulhosamente penduradas.

Parecia tudo mentira, tudo história do fantasma, nas noites que mamãe contava.

Ouvi os sinos, tio Chico tocava alto, parecia nervoso era hora de colher o café.

O cuco continuava bater as asas anunciando as horas, o fogo morria

lentamente, ninguém o avivava.

Eu sentia frio , no meu pequeno corpo e em minha menor ainda alma de criança, ninguém tinha tempo para uma criança . Foram dias tristes muito tristes.

Vovô sentou-se na varanda ,em sua cadeira que eu chamava de vai e vem ,e como um general , comportou-se com dignidade, assistindo os funcionários do governo retirando os pesados móveis de jacarandá .

Vidas ceifadas pela ignorância , pela maldade , inveja ou não tenho adjetivo para qualificar essa parte de vidas que além da minha família , muitas outras foram destruídas.

Todos seriam levados a uma colônia de hansenianos, onde viveriam sob cuidados médicos em casas confortáveis, mas sem nenhum direito de ir ou vir, sem autorização médica .

Vidas sem razão... pessoas vigiadas, estudadas, medicadas, mas uma grande solidão afastados da civilização, ditas saudáveis.

Eram grandes vilas, com muros altos, toda infla –estrutura de uma cidade de médio porte.

Havia igrejas, mercado, ruas largas com cascalho branco.

Circulavam muitos carros iguais aqueles que vi na fazenda,

todos choravam muito.

Tudo era imaculadamente limpo, colocado em estufas antes de sair ou entrar.

Eu assistia aqueles restos humanos, tentando parecer gente.

Meu coração pequenino não agüentava de curiosidade .

Tudo diferente, pessoas estranhas, num vai e vem de caras sérias e sempre de máscaras.

E a escola? como seria? precisava acordar, queria de novo o colo de mãe, minha boneca, meu mundo, onde estava meu mundo?

Meus pais definharam, pegavam minhas mãozinhas geladas e diziam: _Tudo vai ficar bem, seja forte...

Onde estão seus livros de história?

Venha sente-se ai e leia uma história bonita....

Foi daí que eu inventei de ser o que eu quisesse, princesa, fada, bruxa, e brincava com muitas meninas imaginárias, fugi da realidade, para não sofrer tanto.

Na realidade, não havia crianças lá, porquê, fui saber mais tarde.

Vovô nunca mais sorriu, nunca mais contou causo, e meus pais simplesmente deixaram de viver, apenas vegetavam, como a grande maioria .

Sei através da história, contada pelos mais velhos que é assim que se procedia, a cruz azul, daquela época, quando sabia que uma família estava doente.

Confiscava-se seus pertences eram retirados da sociedade.

Viviam em prisões semi abertas, dentro daqueles muros que os separavam do mundo lá fora.

Foi como um furacão, um enorme furacão, devastando vidas, daquelas pessoas vindas de além mar esperançosas e como por encanto tudo se acabou .

A fazenda se calou, todos tinham medo de se contaminar .

A grande e velha casa no alto da colina, não se abalou, continuava a olhar a estrada com fronte alta e soberana.

Da janela da varanda, eu subia no banquinho, para dar altura e via

empregados caminharem apressados e, coitados pensavam que poderiam pegar a doença, só de passar enfrente a casa.

O sino não mais tocaria, o gado não mais voltaria ao curral, o café não mais seria colhido, os salários não mais seriam pagos, e as crianças meus amigos, não mais brincariam comigo.

Tive que afastar-me de mamãe e papai, porque crianças não poderiam permanecer no leprosario.

Papai foi firme, ao segurar-me pelos ombros, com mãos fortes e calejadas da lida no campo, e olhando-me nos olhos disse-me :

_Querida, você será nossa fortaleza, se ficar bem, eu e sua mãe ficaremos também!

Havia um misto de ordem e um pedido se socorro naquela voz meio

embargada pelo sentimento de separação.

Compreendi que teria que superar, por eu por eles e tentar sobreviver, para de alguma forma ajudá-los.

Fui viver longe, em outra cidade, com tias que acabaram de criar-me .

Uma nova vida, um novo lar, sem ninguém para me contar histórias , sem o calor do fogão á lenha , sem os amigos da fazenda para brincar.

Fui bem acolhida pelas tias que logo me transformaram em princesa.

Agarrada sempre com minha boneca que me fazia sentir na fazenda , porque tinha o cheiro das coisas de lá.

Teria que ir á escola , fazer amigas , ser uma menina normal , resistir aos preconceitos .

Brincava na rua de pega-pega, pula cordas e bonecas .

Cidade pequena , interior de Minas , e as notícias corriam soltas , mas fui bem forte resisti firme preconceitos ,saudades ... e tudo mais.. .

As cartinhas que escrevia aos meus pais ,faziam com que eles tivessem mais fé nos dias que se seguiam.

A cura para a doença ainda não havia sido descoberta ,mas já havia paliativos , que estagnava a doença .

A vida prosseguia , assim com passam as águas de um riacho manso fui superando essa fase da minha vida!

Deus colocou em meu caminho um anjo de criatura, uma boa amiga

moça de minha idade que muito ajudou-me a viver.

Era bonita ,pele alva ,cabelos castanhos , soltos e cacheados , gostava de viver dançar ,sorrir ouvir musica , e principalmente ...

escrever ...escrever poesias ,contos e pretendia estudar jornalismo ,pois política era seu forte , tão nova e tão cheia de sabedoria .

Tornou-se minha amiga inseparável, tanto que todos perguntavam se éramos irmãs.

O que mais me tocava era seu carisma ,seu carinho para comigo.

Não tinha medo da doença da minha família , encorajava-me a viver intensamente e a namorar, coisa difícil por causa do preconceito, os rapazes fugiam de mim...

Estudávamos juntas ,tínhamos sonhos e muitas vezes, sonhávamos em deixar a cidade , correr o mundo ,viajar conhecer pessoas...

Enfim meninas comuns...

Meus pais resistiram um bom tempo , puderam ainda ver-me moça feita .

Meu avô durou pouco tempo naquele lugar, morreu ,logo em seguida minha avó .

As tias que adotaram-me ,viram minha formatura para professora .

Estudei ,me formei e estou contando esta história .

Jamais esquecerei minha amiga que faz parte da minha vida como um pedaço de mim...

Passávamos horas lendo poesias , nas sombras das goiabeiras no quintal de casa .

Riamos dos nossos erros de inglês , íamos á missa juntas e ouvíamos rádio nosso programa favorito ,chamado Tangos ao Anoitecer.

Estudamos , brincamos , choramos a morte de nossos entes queridos

É nos tornamos mulheres que a vida separou.

De tanto brincar de esconde esconde, nós nos escondemos e nunca mais soubemos uma da outra.

Sempre que posso , agora já sou uma senhora , viajo para aqueles

lados e peço a meus filhos que me levem até a Fazenda Carvalho .

Lá do alto da colina estão as ruínas ,marcas de vidas tranqüilas , de vidas ceifadas injustamente .

Vidas que o destino quis mudar , um tempo que ficou em minha memória , de fartura e alegria .

A velha casa ainda resiste ,em paredes de pedras, fortemente , construída pelos escravos .

Assim como vovô, sentada em uma grande pedra, olhando a estrada , vejo o carro vermelho de minha filha chegar e buzinar gritando: -Mãe chega de sonhar, vamos embora !

A vida real me espera !

Conto do meu livro CONTOS& E POESIAS

borboleta azul
Enviado por borboleta azul em 08/09/2008
Código do texto: T1167487