O caboclo, a bruxa e a gralha

Havia fugido de casa a polaquinha.

Antes, apenas pai, mãe e filha. Acometida por uma doença sem cura — câncer, dizem uns —, a mãe se foi, deixando pai e filha à própria mercê. Quatorze anos, a moça tornada mulher: lavava, passava, cozinhava, mas o pai nem deixou os lençóis esfriarem, trouxe logo uma gorda, feia e com mau hálito pra casa.

Começou a disputa pelo poder. O pai se calava, dividido entre os caprichos da filha e a iracúndia da nova esposa. Acabava cedendo para a parte mais forte, a gorda era indominável. Sempre sobrava pra filha o pior quinhão, varinha de marmelo no lombo e de castigo trancada no chiqueiro.

Depois duma destas contendas, a gorda arrastou a polaquinha ao imundo cativeiro, mas não o trancou.

— Se eu fosse você, menina, aproveitava pra fugir esta noite. Da próxima vez, juro que arranco sua vida na lambada.

— Meu pai me protege, a polaquinha chorava, sem convicção na assertiva.

— Teu pai é um frouxo! Se ele se intrometer, vai apanhar também!

E a deixou sozinha, acocorada entre os porcos fuçadores.

A polaquinha refletiu, nenhuma das opções parecia favorável. Ficar, a desgraça; fugir, a incerteza.

Conclusão: a incerteza do infortúnio é sempre melhor do que a desdita de fato.

Fugiu.

Mergulhou na floresta, indo mais longe do que nunca. A aurora de dedos rosados surgia no horizonte quando a polaquinha avistou um casebre. Esfomeada e com sono, bateu à porta. Surgiu um senhor, cabelos e barbas longas e brancas, tal qual um eremita.

— Perdida?

A moça confirmou.

— Entre, tem um pouco de pão sobre a mesa.

A casa do velho era assustadora, nas paredes, cabeças de bichos empalhadas, em prateleiras, artefatos de obscura serventia, borbulhando sobre o forno a lenha, um caldeirão.

— Com medo? o velho indagou, mas não havia necessidade de resposta, uma moça esperta você...

Jeroboão estava de folga no sábado. Nestes dias, ele apanhava a espingarda e se embrenhava no mato pra caçar — cordonizes, capivaras, cutias, ou qualquer outra coisa que se mexesse. Já tinha dado uns cinco ou seis tiros a esmo, mas encontrado caça não havia.

Avistou então sobre uma araucária a mais bela gralha-azul que jamais vira. Lendas diziam que a espingarda falhava ou engasgava quando se tentava matar uma, mas Jeroboão era um cético — apontou a arma para a criatura.

Só que o bicho não era nada estúpido e quando percebeu estar na mira do caboclo, deu um salto pra outro galho, depois pra outro, e veio descendo, meio que zombando de Jeroboão.

— Fica quieto, passarinho de bosta! ele resmungava.

A gralha atingiu o solo e ficou ciscando em desafio.

Um tiro certo, o pássaro bem na mira de Jeroboão, então os olhos do bicho e do homem se encontraram. Havia tanta profundidade naqueles olhinhos pretos, como se histórias repousassem naquele ser.

— Não me mate, caçador, a gralha-azul disse, sou uma moça em corpo de ave, culpa dum feitiço, obra dum bruxo malvado.

Que absurdo, Jeroboão pensou, seu braço tremia e quase havia mijado nas calças de medo. Já havia ouvido histórias de gente que endoidava e ouvia bichos falando, que tremiam e babavam, mas não imaginava que um dia também integraria este coro.

— Ô louco! ‘Tou ouvindo pássaro falar que nem gente! É coisa do diabo ou da minha cabeça?

— Pode até ser coisa do capeta, seu moço, porque o bruxo mexe com forças do oculto.

Mas Jeroboão não queria mais ouvir nada daquela ladainha. Correu pelo mato de volta pra casa, mas não teve descanso. Passou a noite se revirando na cama, relembrando a gralha falante e com medo de ter endoidecido.

Só que no dia seguinte, o caboclo voltou para a floresta e perdeu a manhã procurando pela gralha.

Já estava quase desistindo, mas uma voz brotou do meio das árvores:

— Que bom que você voltou, pois só você vai poder me salvar.

A gralha planou para baixo e pousou pertinho de Jeroboão.

— O que tenho que fazer?

— Quebrar o encantamento.

— Então é só matar o bruxo e pronto! Jeroboão concluiu.

— Que nada. Se você o mata, eu morro também. Antes de tudo, você tem que descobrir o verdadeiro nome do bruxo. Depois que você repetir o nome dele três vezes, o bruxo perderá todo o poder, eu volto a ser gente, e você pode dar um fim nele.

A gralha deu as indicações e Jeroboão encontrou a choça do bruxo. Três batidas na porta.

— Que quer aqui? O velho espiou por uma fresta.

— Estou perdido, Jeroboão disse, preciso encontrar meu caminho de volta.

— Pegue a trilha, que não tem erro.

— Obrigado, senhor. Qual sua graça?

O velho ficou em silêncio. Por fim, respondeu.

— Demócrito.

Sentindo-se o mais esperto dos mortais, Jeroboão repetiu três vezes: “Demócrito, Demócrito, Demócrito”, mas nada, o bruxo continuava bruxo.

No dia seguinte, o caboclo voltou à floresta e foi direto para a morada do bruxo. Vestia roupas diferentes e usava um chapelão que cobria seu rosto, tudo para enganar o safo.

Batidas na porta.

— O que quer?

— Trabalho pro fazendeiro dono de todas estas terras aqui. O filho dele vai se casar no próximo domingo e ele me enviou para convidar todas as gentes pra festança. Qual o nome do senhor pra incluirmos na listagem?

O velho pensou por alguns instantes e respondeu:

— Górgias.

E Jeroboão repetiu três vezes: “Górgias, Górgias, Górgias”. Mas nada, o bruxo continuava tão bruxo quanto antes.

O caboclo estava acabrunhado. Temia que a moça ficasse aprisionada num corpo de gralha por todo o sempre. Foi para a igreja e rezou um Pai-Nosso.

O padre o ouviu resmungando e foi ter com ele:

— O que o atormenta, Jeroboão? Faz tempo que não te vejo na missa...

O caboclo contou toda a história pro padre, que nem duvidou, mas nem acreditou nela.

— Se isto é obra do Coisa-ruim, tem que ficar de olho aberto, pois o diabo sempre fala meias-verdades. Se ele falasse sempre mentira, ninguém acreditaria nele; se ele falasse sempre a verdade, não conseguiria roubar a alma de ninguém, por isto, em tudo que ele fala, há mentira e verdade junto.

Jeroboão considerou as palavras do padre. No outro dia, retornou à floresta. Trazia a espingarda consigo. Três batidas na porta.

— Que você quer?

— Procuro por Demócrito.

— Ninguém com esse nome aqui.

— Então quero falar com Górgias.

— Também não há.

— Com quem falo então?

— Com Gondor.

— Gondor? O caboclo refletiu, e a admoestação do padre não lhe saía dos pensamentos, por fim, ele disse: “Demogorgon, Demogorgon, Demogorgon”.

O bruxo deu um grito e recuou:

— Impossível, impossível! Como você descobriu meu nome? Está tudo arruinado!

Jeroboão meteu o pé na porta, derrubando-a e deu um tiro nas fuças do bruxo. Depois, foi pra floresta e, olhando para as copas das árvores, gritava:

— O bruxo está morto! Onde você está?

Mas nenhum sinal da gralha. Jeroboão então se convenceu de que aquilo não passava de delírios da sua mente e que talvez houvesse até matado um velho inofensivo e inocente.

Só que uma moça apareceu por detrás dum tronco, linda como a flor da laranjeira, loura que nem um trigal e uma boca pequena e delicada.

— Você me salvou, moço, ela disse, aproximou-se e lhe deu um beijo, mas como você descobriu o nome do bruxo?

— O padre me iluminou as idéias... Disse que o diabo sempre fala meias-verdades, por isto, de tudo que o bruxo me disse, apanhei só a metade.

Eles se casaram na primavera e viveram felizes para sempre, quer dizer, pelo menos até os barrigudinhos nascerem e Jeroboão começar a pular a cerca com uma mulatinha fogosa da vila.