A MENINA ESPANTALHO (HIST. DO BIDÚ - 4)

Seu Bidu, como era conhecido na região Sul da Bahia, principalmente no meio rural e nas cidades circunvizinhas – Itajuípe, Uruçuca, Coaraci, Itabuna e Ilhéus, fazia história e deixava marcas.

Lá pelos idos de 1965 chegaram à região os chinelos de dedo, cuja marca virou sinônimo – Havaianas -, conhecidas como japonesas. De imediato, ele arranjou um nome para tais calçados, sarga-bunda, alusão aos chinelos que, ao se caminhar no molhado, puxava para trás do individuo todo tipo de sujeira, formando dois trilhos sobre as pernas, que iam dos pés até as nádegas. Um diabo daquele ele nunca usaria. Queria ser um filho do cabrunco se usasse. Ainda bem que ele se esqueceu da sua jura, pois quando a coisa caiu em uso popular, ele não largava a sua número 44 de jeito nenhum.

Lá em sua casa ninguém possuía a tal da sarga-bunda; é que além de ser cara – o preço de um par dava para comprar meia dúzia de tamancos – o que se calçava mesmo era tamancos de madeira com reforço de pneu de carro para poder durar o ano inteiro.

Na roça, também não tinham o hábito de comer arroz. A alimentação básica era feijão com carne seca e farinha, aos quais eram adicionadas verduras e legumes, e na hora de servir no prato de barro, colocava-se farinha de mandioca a gosto. O arroz só freqüentava a mesa em ocasiões muito especiais, pois era tido como artigo de luxo e servido como mistura. Nessas ocasiões, geralmente na semana santa, meu pai comprava meio quilo para ser servido com o peixe, porque era a comida de Jesus Cristo.

Acontece que seus filhos gostavam muito de arroz e de tanto pedirem, ele resolveu transformar o brejo num arrozal, uma área alagada, existente numa pequena reserva florestal, a alguns metros da sede da fazenda. E assim procedeu.

Quando o arrozal cacheou, surgiram bandos e mais bandos de pássaros pretos que atacavam a plantação com uma fome feroz. Bidu, volteado pelos problemas causados pelos pássaros e já quase perdendo sua preciosa lavoura, num rompante de luz teve uma idéia original, transformou a Dega, apelido de minha irmã Mara, e eu em espantalhos vivos. Executávamos nossas tarefas travestidos de espantalhos. Nosso pai Bidu, com a ajuda de nossa mãe, deu cabo a dois velhos paletós de linho branco, transformando-os nas vestimentas dos espantalhos, acrescentando ainda várias tiras de panos, e de várias cores, com exceção da vermelha, pois essa cor trazia azar à lavoura, o arroz ficava aguado. A superstição era tamanha que, um belo dia, a nossa irmã Alice, na hora do rancho, foi inadvertidamente ao campo, trajando um vestido de chita vermelha. Quando ele a viu chegar naqueles trajes, não esperou muito pelo azar, ele mesmo quase acabou com o tal arrozal. A sua aversão à cor vermelha era tão intensa, que largou tudo e partiu para cima da menina parecendo um espantalho maluco. O escândalo que fez foi tão grande, que a coitada da Alice completamente assombrada, jogou a “maumita” para cima e tratou de correr o máximo que pode.

Seu Bidu, neste gesto impensado, quase deixou a gente sem almoço. Era hábito ou mesmo falta de condições enviar o almoço num recipiente de barro, envolto num pedaço de pano amarrado na borda superior. Quando a Nena, apelido de minha irmã Alice, naquela época, jogou a trouxa e correu, a vasilha quebrou-se e esparramou todo o conteúdo pelo mato. A Dega e eu olhamos para a cara dele, que imediatamente se recompôs e tratou de salvar o máximo possível da comida.

Após alguns meses, concluímos com êxito a nossa tarefa de espantalho e recebemos como pagamento mil qualquer coisa, uma nota amarela muito bonita e valiosa. Dava pra comprar um montão de coisas, mas a nossa mãe resolveu que iria comprar panos, tecidos, para fazer roupa nova.

Fiquei tão contente e emocionado com aqueles mil, que tratei logo de escondê-lo, e assim procedi, guardando-o no pilar próximo a cumeeira da casa. Passados alguns dias, a nossa mãe resolveu ir até a cidade fazer a compra. Naquele dia inteiro fiquei no calcanhar da Dega, cantando-a para que me emprestasse sua sandália nova. Dega havia ganhado da sua madrinha rica, que morava em Salvador, a tal sandália havaiana, a dita sarga-bunda. Depois de muito labutar e com a interferência da nossa mãe, um tanto quanto contundente, ela resolveu me emprestar o chinelo. Isso após recomendações mil. Naquela noite quase não dormi de tanta ansiedade. Na madrugada do dia seguinte, quando a nossa mãe disse Raiiiimuuuuuunnndooo! Eu já pulei da cama e respondi: estou acordado! Vamos?

Não sei qual o santo que estava de plantão naquele dia. Só sei que era muito brincalhão e sacana, pois mesmo antes de lavar os olhos, subi na mesa e corri a mão na cabeça do pilar em busca do dinheiro e quanto mais enfiava a mão, nada encontrava. Entrei em desespero, e como havia herdado do meu pai algumas “qualidades” e, dentre elas, a de dar chilique, aprontei um enorme berreiro. Ele levantou-se, resmungou bastante e, por fim, resolveu me auxiliar. Também subiu na mesa e olhou em cima da coluna de sustentação do telhado e me disse: Aqui não tem dinheiro nem um , o rato roubou. Nossa! O mundo acabou para mim. Foi uma grande decepção.

Saímos da fazenda, minha mãe e eu, por volta das cinco horas da manhã, rumo à cidade. Ela ia à frente e eu imediatamente atrás. Eu carregava enganchado nos dedos da mão esquerda o lindo e novo chinelo da Mara, novinho em folha, nunca havia sido usado, era um calçado cabaço, branco com tiras amarelas. Era lindo e cheiroso! Exalava um cheiro maravilhoso de bacalhau, dava até dó de pisar sobre ele. E assim, andamos várias horas até chegarmos à rodagem (Estrada Estadual), e após algum tempo, na ponte que existia na entrada da cidade. Já era hábito dos matutos, parar na cabeceira da ponte e descer até o rio para pedir a benção, pois dava sorte, a Mãe-d’água protegia, e para lavar os pés. Minha mãe e eu cumprimos o ritual à risca. Quando retornei à ponte, calcei os chinelos e dei alguns passos desordenados, trôpegos por falta de costume mesmo. Na roça só se andava descalço, e eu estava acostumado a pisar e sentir a terra firme sob os pés. Nem bem havia atingido o centro da ponte e um caipira pisou na traseira do chinelo e este rompeu a correia. Entrei em pânico, só não pulei da ponte porque a minha mãe estava atenta e me segurou. Meu Deus! E agora? O que vou dizer para a Dega? Chorei e chorei o quanto pude. Naquele dia em que o santo brincalhão estava de guarda, o meu sofrimento foi tão grande que nem sentia o ardor dos pés naquele chão de paralelepípedo fritante, pois não era simplesmente escaldante, era fritante mesmo, sob um sol de 50.ºc. Além de tudo isso, no meio daquele monte de gente feia, mais feia que os trabalhadores do meu pai e ainda um monte de burros com cangalhas e panacuns impacientes embaixo daquele sol escaldante, dando coices e se mordendo. Vi também um jegue correndo atrás de uma jumenta no cio a desmancharem a feira toda com aquele fuque, fuque medonho. Para completar, ainda me aparece o tio Pedro e me dá um tal de picolé – uma coisa roliça com um palito enfiado e que fumaçava – eu disse que não queria, mas minha mãe me fez pegar. Quando eu o pus na boca, aquele negócio arrancou a minha alma e queria furar o meu miolo. Só tive o trabalho de levá-lo à boca e atirá-lo no meio da rua.

Nossa! Que dia horrível. Só me faltava essa! Além de ter estragado a sarga-bunda da minha irmã, ainda queriam furar o meu juízo.

Quando retornamos para a casa, não preciso nem falar o que aconteceu. O trauma da minha irmã foi tão grande por eu ter estragado sua sarga-bunda, que foi acometida de uma febre tão alta, que Bidu teve que ir até a loca da pedra, lá no Quebra-bundas, buscar o Tonhão rezador para afastar a febre dela. Bem, esta é outra história!

Quanto a sua resistência em introduzir o arroz no nosso cardápio, ele se justificou, alegando que o arroz era prejudicial à saúde das mulheres, pois fazia crescer os peitos e a bunda e ainda acrescentou: Veja as muié de Sum Paulo...

RAYSAN DE SOUZA
Enviado por RAYSAN DE SOUZA em 30/09/2008
Reeditado em 18/10/2008
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