UMA PRETA CHAMADA NARCIZA

UMA PRETA CHAMADA NARCIZA

Ela era mais uma preta querida.

Viveu por muitos anos na minha terra.

Uma vida longa, carregada de muito sofrimento:

Anarciza Calixta de Souza Barbosa,

morreu com oitenta e sete anos.

Teve 04 filhos, só duas filhas ainda vivem.

Mas ela ajudou a criar outros filhos

da família de João Ferreira, em São Paulo,

onde morou por alguns anos.

João Ferreira foi um companheiro de muitas luas.

O olhar graúdo fazia com que

a preta velha desse sempre a impressão

de que estava na beira do fogão

fazendo a janta ou atiçando as brasas.

Os olhos negros eram cativantes,

Seu olhar era repleto de amor e carinho.

Eles transmitiam fé e esperança.

Eram firmes e sinceros.

Os seus cabelos brancos,

As rugas no rosto e as mãos calejadas

Eram o espelho do tempo.

Em seus ombros pesaram muitas cargas.

Tinha uma vida repleta de carência,

De dificuldades, mas era atenta a tudo.

Ela viu a outrora cidadezinha crescer.

Ela conviveu com várias gerações e

Suportou com calma as transoformações da vida.

As mudanças dos tempos.

Não sabia ligar a televisão,

mas adorava sentar na frente do pequeno aparelho,

pra assistir à novela das seis

e admirar o mundo novo que podia ver.

Não era raro, falava consigo mesma, em voz alta:

“Ô povo bonito, esse povo de novela”!

Como é que este povo cabe todinho nessa caixinha?”“

Apenas brincava, ela entendia de quase tudo,

foi professora voluntária,

e já tinha visto TV em São Paulo, onde morou.

Era fanática pela religião católica.

Não perdia uma missa e nem procissão.

E numa dessas caminhadas de fé, a ouvir dizer,

enquanto eu registrava em vídeo o percurso:

“Meu filho, quem reza capengando um dia vence”.

Tinha dificuldade de se locomover

com suas pernas frágeis e tortas.

Mas sempre fazia o percurso da procissão todinho.

E, ainda tinha força para rezar a noite toda.

Era uma devota fiel, dedicada

e uma verdadeira seguidora dos ensinos de Jesus.

Era desbocada, mas não era vulgar.

Narciza Preta, como era chamada

por todos da família, e pelos amigos,

tinha opinião sobre tudo.

Dava conselhos e gostava de ensinar as mulheres

o melhor jeito de agradar o seu homem:

“Minha filha, dizia ela, você está muito bonita”,

reboculoza, gorda! É isso mesmo, homem gosta de carne!”

Narciza nasceu na roça.

Contava que o pirão de farinha com que foi criada

sempre lhe deu sustança e força.

Uma vez enfrentou uma cobra cascavel

com a coragem de uma guerreira.

Vinha da roça com um feixe de lenha na cabeça,

quando de repente, saiu em cima da danada.

Ela jogou o feixe no chão,

e enfrentando a ira da serpente,

com paus do próprio feixe, ela matou a bicha.

Muitas vezes também caiu no meio da estrada,

com sacos de abóbora e melancia nas costas,

fugindo de vaca “remetedeira.”

Mas ela contava todas essas aventuras

com bom humor, com uma risada gostosa,

orgulhosa, por ter vencido tantos obstáculos na vida.

Tinha orgulho de dizer:

“Numa certa vez, quando a bicha partiu de lá,”.

eu me preparei de cá.

Era uma vaca brava, vinha riscando o chão.

Minha salvação foi um pé de são joão.

“Agarrei nos galhos com os dois braços”.

Ela revivia o fato como se acontecesse naquele exato momento: “Eu gritei por minha mãe Maria Santíssima”,

joguei o saco no chão

e só via a vaca passar por baixo de mim.

“Minhas pernas tremiam mais que vara verde.”

A preta velha foi casada com Sr. Manoel,

a quem chamávamos de Hermelino.

Foi uma convivência amorosa e duradoura.

Os dois por muitos anos,

trabalharam como gari em nossa terra.

E a preta velha varria as ruas cantando.

Sabia que toda profissão dignifica o homem e a mulher.

Não tinha vergonha de ser gari, tinha sim, muito orgulho de ser trabalhadora e ser útil a sociedade.

E em cada rua que passava varrendo, ela cantava.

Varria e cantava. Varria e cantava.

Era gostoso ouvir sua voz cristalina e estridente.

Negra, vinda de uma região sofrida

Mas era muito vaidosa.

Seu pequeno guarda-roupas

Tinha vestidos da moda,

Vindos de São Paulo,

Enviados por suas filhas.

Nos finais de semana

Passeava toda orgulhosa com os vestidos novos.

Gostava de forrar sua cama com colcha de retalhos.

Na cozinha fazia de tudo

Mas, o que ninguém esquece

era o licor de maracujá que fazia com todo gosto.

Dizia-nos que era bom para abrir o apetite.

Os bolinhos de feijão, farofa,

arroz e um pedacinho de carne

que enrolava com a mão,

eram disputados pelos meninos da vizinhança.

Tomava um trago de alcatrão de São João da Barra

todo santo dia antes do banho e escondia a garrafa,

entre os panos, para os meninos não acharem.

Não teve jeito. Um dia, Mário de Maria de João Grande

descobriu o esconderijo.

E ele ficou bêbado pela primeira vez na vida.

Desde então ela parou de comprar a bebida.

Dizia que era “para o cão não atentar”!

Como todo velho no Brasil,

com o avançar da idade veio o isolamento,

a tristeza com a doença, o amargor com a vida.

Narciza, que antes internava no nosso hospital,

e cantava quase que o dia todo, estava triste.

O cansaço, que lhe acompanhou nos últimos anos,

Já era bem mais intenso, ela estava frágil demais.

Mesmo assim, um dia disse-me no leito do hospital:

“Meu filho, eu não tô boa, mas não queixo de nada”.

Só de Saudades. Tenho saudades da tua mãe,

que me ajudou muito na vida.

E de sua avó Amália, minha companheira querida,

“de tantos anos em São Paulo.”

Tenho saudades do tempo em que

eu ajudei teu pai aprender a ler.

E ele, sempre ia junto comigo e com tua avó Ana

para a roça. Ele era traquino

“e gostava de balear os passarinhos.”

Por sorte, eu tenho essas frases gravadas em fita k7.

Hoje, convertidas para cd.

Narciza Preta na verdade, não reclamava de nada,

sua vida era só de alegria e de cantoria.

Claro, ela realmente reclamava da saudade.

Uma saudade forte que ela tinha do passado,

Da vida de outrora de nossa terra.

Os olhos, que carregavam tanta tristeza,

brilhavam quando recebia a visita dos afilhados,

quase netos, no leito do hospital.

Parecia querer guardar a presença de cada um.

Tratava as enfermeiras com todo o carinho.

E qualquer procedimento da enfermagem,

era motivo de eternos agradecimentos dela.

Coisas simples a encantavam.

Adorava ganhar sabonetes de presente.

E as histórias mais bobas faziam

aquela doce criatura dobrar a gargalhada.

E ria, como se o mundo se resumisse àquele quarto,

àquele hospital, àquela pequena cidade do interior.

Na verdade, Narciza Preta não era do hospital,

não era da casa, não era da terra, nunca foi!

Só no céu poderia caber tanta bondade.

E ela foi pra lá onde virou santa.

Tenho certeza que os anjos agora cuidam dela.

Ela faz parte das minhas mais gratas lembranças.

A saudade dela ainda hoje dói em mim.

Sinto falta das suas gargalhadas,

da sua alegria pelos corredores do hospital.

Sinto falta da sua presença amiga e conselheira.

Uma verdadeira filha de Deus,

que soube viver a vida como deve ser vivida:

com amor e compaixão pelo seu semelhante.

Uma preta que é um símbolo, um espelho,

para muitos brancos, para aqueles que acham

que a cor da pele é sinônimo

de grandeza e de caráter.

Narciza Preta, minha velha querida,

Que saudades de você!

Até hoje me emociono

Quando lembro de ti

Ao entrar no hospital.

Tantas e tantas vezes

foi à minha sala me dar um abraço.

Hoje, tantos anos depois,

Ainda sinto a falta daqueles abraços

Carinhosos e verdadeiros.

Minha pretinha querida,

Minha porção de beleza e de bondade,

Que Deus te ilumine sempre

Por onde estiveres.

Enquanto na terra eu estiver

Tua doce lembrança não sairá

Da minha memória e do meu coração.

Adeus e até um dia.

Eduardo Mendonça
Enviado por Eduardo Mendonça em 14/10/2008
Código do texto: T1227312