O MASCATE E A MULA ENFEITADA (HIST. DO BIDÚ 9)

Já é do conhecimento de todos que Bidu era simplesmente vidrado em feijão e não admitia comer sem feijão e carne vermelha, pois sendo devoto de São José, ele nasceu no dia 19 de março de 1919, levava muito a sério a história que ele mesmo fazia questão de divulgar aos quatro ventos: O Boi e o Pé de Feijão. Deus amarrou um boi num pé de feijão, indicando assim qual seria o alimento básico das refeições diárias de todos os seres humanos. Para ele desde o café da manhã até o jantar, a carne e o feijão tinham que estar presentes, os outros alimentos ele dizia que era adjutório. Ai daquele que lhe servisse outro tipo de comida, ele até comia, mas xingava à bessa, pois dizia que o alimento básico de todo ser humano era feijão com carne e farinha. Ele ainda dizia que o corpo era a morada da alma e nessa condição precisava de sustentação e arrematava: O “estrombu quer entuio” – o estômago precisa de algo para digerir !

Certa feita estava ele numa plantação de milho, numa rocinha perto de casa e estranhou que a sua barriga já estava roncando e o “prego” ainda não havia tocado. Prego era o sinal dado na sede da fazenda indicando o início, a parada e a retomada dos trabalhos. Na viga da barcaça do armazém de cacau, havia um pedaço de trilho pendurado e na hora do sinal, batia-se com o olho do machado fazendo ecoar o som, que era ouvido por todos nos arredores da fazenda. Para começar o trabalho, batia-se três vezes, e duas para encerrar. Certa feita ele foi questionado a respeito das batidas: por que três para começar e só duas para encerrar? Ele simplesmente pôs as mãos na cintura e disse: - Você é burro mermo, seu fiu de um cabrunco! Você num sabe que para trabaiá tem que adular o sujeito? Mas pra pará o de fazê, num precisa nem tocar. E concluiu: - Depois, se num iscuntá, não faz má não, trabaia mais!

Como estava dizendo, ele estranhou a ausência do sinal e, olhando para o céu, percebeu que a sua barriga tinha deveras razão. O sol estava a pino, então já era meio-dia, hora do almoço. E por que será que a Nena, Alice, sua filha não tinha tocado o sinal? Ele largou a enxada e rumou para a sede da fazenda meio preocupado. No terreiro, já se deparou com uma mula estranha amarrada no mourão; a mula não carregava panacuns, eram dois enormes caixotes de madeira, e como estavam com as tampas abertas, espiou dentro e viu um montão de bugigangas. Como não havia uma viva alma fora das casas, foi ver do que se tratava lá dentro.

Quando entrou na varanda se assustou. Tinha um homem no meio da casa e, ao seu redor, sua esposa e filhos no meio de uma porção de coisas esparramadas, e as crianças dizendo: Mainha, eu quero aquele ali, ó! E outro dizia: Eu quero aquele ali também! Compra, mainha, compra! Estavam todos encantados com as mercadorias do mascate que esqueceram do almoço e do Bidu, e nem notaram a sua presença. Ele chegou e ficou ali parado por algum tempo na porta de entrada da casa, observando toda aquela encantaria, perfumes, jóias, brinquedos, fitas coloridas, vaselina, brilhantina, agulhas, alfinetes, e mais um montão de coisas deveras encantadas para aquela gente simples. Aquele homem era um mascate e vendia de tudo. Ele representava para aquelas mulheres e crianças “O Encantador”, pois trazia coisas de outro mundo, que mexia com a mente e encantava os olhos. Trazia também muita informação da cidade. Era através do mascate que as mulheres sabiam o tipo de renda que estava sendo usada na cidade. Então elas compravam e enfeitavam seus lindos vestidos de chita, quase sempre vermelhos e rodados. E compravam também baton vermelho e ruge para pintar a boca e o rosto. Algumas faziam até uma pintinha preta na face e ficavam lindas dentro das suas purezas!

Dona Paulina, minha mãe, estava tão encantada com as coisas do mascate que esqueceu do tal feijão. Bidu, que ficou por algum tempo também encantado, quando saiu do torpor do encantamento já foi logo dizendo: - Mande essa desgraça de ôme embora e põe logo o armoço.

Quando minha mãe ajeitou a comida, o mascate ainda estava lá, o coitado tinha esperança de ser convidado para o almoço. Bidu se dirigiu à mesa e quando viu que não tinha feijão, debruçou-se sobre os pratos e com o braço direito varreu o que estava sobre a mesa, jogando tudo no chão. Gente! Foi uma confusão tão danada que é adimensional, não tem como medi-la, pois foram berros de Bidu, misturados com gritaria de crianças, panelas e pratos voando para todos os lados, comida misturada com fitas coloridas. Calçolas e ceroulas pareceram criar vidas e se esparramaram por todo o ambiente e, ainda para completar o panavueiro, arrancou da cintura o facão e começou a batê-lo para todos os lados, gritando: - Seu fio dum cabrunco, vou lhe cumê o figo. É por sua curpa que num armoço! - dizia isso e batia com o facão, saindo lascas de fogo pra todos os lados. O coitado do mascate, que no início tinha a ilusão de ficar para o almoço, agora não sabia o que fazer. De quatro no meio da casa e de olho no Bidu e no facão, tratava de juntar suas bugigangas para dar o fora o mais rápido possível. E assim começou a correr para a mula todo esbaforido para guardar as suas mercadorias. Ele estava tão apavorado que apavorou também a pobre mula que se desvencilhou do cabresto e desembestou mato adentro. Ai, desgraçou-se tudo! Era a mula embicada na frente e o mascate desesperado atrás e as coisas caindo dos caixotes e o mascate não sabia se corria atrás da mula ou se pegava as coisas no mato.

Depois dessa confusão toda, ele sentou-se no batente da cozinha e chorou como sempre. E todos nós choramos junto. Quando ele voltou à realidade, ainda chorando e limpando o nariz com a manga da camisa, chamou a Áurea e foram até o quintal, pegaram uma galinha pedrês, mataram-na e ele preparou um belo almoço. Só sei que com esta história ele ficou uma semana inteirinha se servindo, porque a dona Paulina era pequenininha, mas de grande opinião, não o serviu durante todo esse tempo e nem se falaram também. Lembro que ele ficou rodeando a minha mãe. Era minha véia pra lá, minha véia pra cá, até que conseguiu dobrá-la e voltaram a se amar como sempre. Eles eram muito carinhosos.

O mascate e a sua mula nunca mais apareceram. Algum tempo depois, no seu lugar, apareceu Pão Quente, um mascate diferente, que só vendia pão, broa, bolachas de todo tipo. Mas essa é outra história.

RAYSAN DE SOUZA
Enviado por RAYSAN DE SOUZA em 17/10/2008
Reeditado em 16/01/2011
Código do texto: T1233300
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