O SEGUNDO DILÚVIO

Vai passar. Foi o que eu pensei, despreocupado. Contudo, o pequeno chuvisco começava a aumentar. Olhei para a serra da Tiririca. Tudo começava, pouco a pouco, a enegrecer.

Os pássaros deram no pé, mesmo os beija-flores e as cambaxirras esqueceram a água açucarada que eu tinha colocado no jardim. O bando de micos com seus assovios pinotearam. Já não se viam carangos nos muros. Todos e tudo entocado.

Os pingos de chuva engrossavam.

A rua, deserta, cobria-se com uma névoa fina e cinzenta, prenunciando alguma coisa estranha e esquisita.

Agora sim, a água caia cada vez mais forte..., cada vez mais forte.

Começavam a correr os primeiros filetes d’água ao longo do meio fio. Lembrei de minha infância, lá em São Gonçalo, quando em dias de chuva, a criançada, reunida, brincava utilizando tocos de lápis, gravetos, pedaços de papelão, folhas e outros, como se fossem pequenos barcos e canoas, em verdadeiras corridas náuticas, deslizando ao longo dos crescentes córregos nas valas negras. Coisa de criança. Lembrei do Lagarto.

Já não era chuvisco nem chuva, mas sim um temporal, uma tempestade.

O vale formado pelas serras da Tiririca e Jacaré e suas matas, típicas da Floresta Tropical, estava debaixo d’água.

Chovia, torrencialmente. Tromba d’água inacreditável com barulho ensurdecedor. Parecia o fim do mundo, o juízo final, o Armagedon.

A imagem era bíblica, era o segundo dilúvio.

Raios, trovões e relâmpagos completavam o cenário devastador com ventos arrasadores derrubando árvores e destelhando casas.

Assustado e em pânico, todo molhado, corri para dentro de casa, preparando-me para os estragos inevitáveis.

Caos total, a Raina, mesmo cega, e a Yanca corriam dentro de casa, de um lado para outro, latindo ferozmente contra um inimigo invisível. MC, agarrada ao telefone, comandava a rede nacional de informações, transmitindo a todos as últimas notícias sobre os acontecimentos catastróficos e dando ordens á torto e direito. Beta e Lagarto telefonaram, além de outros, preocupados.

Pelas janelas e frestas das portas, pude notar que a casa estava ilhada, completamente rodeada por aquele aguaceiro que alagava a tudo.

Foi aí que tomei consciência que a situação era séria, pois em comparação com os terrenos das demais casas da rua e, principalmente dos da avenida próxima, o nosso era muito mais alto, cerca de ½ a 1 metro. Se as águas estavam prestes a invadir a nossa casa, nossos vizinhos já estavam afogados. Horrível.

Esperei, aguardei e, quando da primeira estiagem, fui lá fora ver os estragos. Verdadeira catástrofe. Impressionante. A rua já era, tinha sumido debaixo d’água e a avenida, situada em nível mais baixo, tinha se transformada em um caudaloso rio, típico de planalto, com corredeiras, torrentes, cachoeiras. Todo volume de água recebido pelas serras da Tiririca e Jacaré, por gravidade, estava sendo escoado pela Avenida , talvegue de nosso vale.

A força das águas levava tudo, tudo mesmo: carros, animais mortos, sofás, cadeiras, árvores, lixos, plantas, garrafas, e etc., até mesmo a fralda do Gabriel apareceu boiando. Impressionante, ainda, foi a quantidade de cobras que, fugindo das águas, assustavam os vizinhos que assistiam aquele espetáculo.

Era o chorume do lixo da Tiririca, caldo barrento de esgoto doméstico, engrossado pelas águas da chuva, que corriam, banhando todas as ruas.

Peguei um garrafão de plástico, coloquei um pequeno cartaz, como se fosse uma vela, com a inscrição “Niterói, Cidade Gargalhada” e o soltei na enxurrada. Todos riam ao ver aquele barco, corajoso, valente, vencendo as corredeiras e cachoeiras e levando sua crítica em direção à distante lagoa de Itaipu.

A região oceânica estava alagada, o que nos obrigou, por solidariedade, a participar de um mutirão, até o final do dia, para lavar as casas dos amigos menos afortunados.

Anoitecia, quando voltei a minha casa, cansado, molhado, e, ainda, criticando a Prefeitura . Lembrei também do barco, lamentando não ter tirado uma fotografia para mandar para os jornais.

Após o banho, bem quente por sinal, jantei e, de sobremesa, sentei na poltrona, como fazem milhões de brasileiros, todos os dias, para assistir o noticiário da TV.

Como ocorre, nessas ocasiões, as imagens eram dramáticas: carros de Bombeiros, Defesa Civil, enchentes, deslizamentos, quedas de barreiras, desmoronamentos, fechamento de estradas, depoimentos de especialistas e desabrigados, e o “escambau”, tudo para “informar” a população e aumentar o “ Ibope.”

No meio do noticiário, todos gargalharam. Era o repórter informando ”Em plena desgraça, o povo sorri! ...Chamando atenção para a imagem do...

BARCO “ NITERÓI, CIDADE GARGALHADA.”

ViniciusSanches
Enviado por ViniciusSanches em 25/11/2008
Reeditado em 17/12/2008
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