VIAGEM DANADA DE CANSATIVA!

A cidade de Mulundú, perdida no interior do nordeste brasileiro, jamais recebera a visita de qualquer autoridade eclesiástica. Também pudera! Longe de tudo o que se pudesse considerar como um mundo civilizado, ninguém chegava até lá, senão enfrentando uma estrada ruim e empoeirada, nos tempos de estio. E um lamaçal intransponível, na época das chuvas.

Batina por ali, só mesmo a do Padre Romão, pároco da cidade vizinha, que passava por lá, um domingo a cada mês, para celebrar uma missa. Fora dele, nem cônego, nem monsenhor e nem mesmo outro padre qualquer.

Mas nesses domingos abençoados, comparecia à igrejinha, construída por iniciativa da Prefeitura, toda a população católica, que era, por assim dizer, a quase totalidade dos habitantes. E nessas oportunidades o movimento era tão grande, que o altar se transferia para o patamar de entrada da pequena igreja, com os fiéis se acomodando mesmo pelo gramado da praça que ficava em frente e procurando o abrigo das árvores, que circundavam aquele espaço vazio.

Aproveitando o ensejo, além da missa, propriamente dita, o Padre Romão também ouvia em confissão os pecadores que pretendiam comungar, batizava os pagãos e realizava crismas, celebrando, algum casamento — ou mais de um, na mesma cerimônia e durante a missa — dos nubentes que planejavam iniciar uma nova família. Até porque, como costumava vociferar o velho padre, na hora do sermão e com alguma frequência, se havia uma coisa que ele não suportava, era gente amancebada. E gritava do púlpito:

— Quem vive amasiado, troca a condição de filho de Deus, feito à sua imagem e semelhança, para se igualar aos irracionais! Quem se reproduz fora do casamento é bicho! E o sexo, aos olhos do Pai, só é abençoado se a união do casal também for!

Daqui para ali, era só o padre perceber que o número de casamentos diminuía em suas visitas periódicas à cidadezinha, que apontava a sua artilharia em direção aos que se entregavam à mancebia. E deitava falação:

— Sexo é coisa séria e tem que ser praticado com responsabilidade, dentro do matrimônio e sacramentado pela Santa Madre Igreja, que não abençoa os concubinos e excomunga os pederastas!

E tome impropérios! Agora, era contra os homossexuais. O que nem mesmo carecia, porque, pelo menos que se soubesse, na cidade não havia desses, além de uma discreta desconfiança que todos tinham — mas ninguém comentava abertamente — acerca daquele filho de dona Noca, que era a diretora da Escola Municipal.

E desse modo, por tratar-se da maior autoridade eclesiástica que Mulundú conhecia, aquilo que o Padre Romão dizia, era, assim, uma espécie de lei, nos assuntos da moral e dos bons costumes. Foi, portanto, com grande surpresa e indisfarçável alegria, que, numa certa manhã, os munícipes receberam aquela notícia: o Arcebispo fará uma visita à cidade e abençoará a nossa igreja!

O primeiro a receber a informação foi o próprio prefeito, que disso, logo tratou de se aproveitar politicamente, sugerindo que aquilo era o resultado de suas gestões junto à cúpula da Arquidiocese. Mas que nada! A visita do Arcebispo era parte de sua própria política, à frente daquela circunscrição eclesiástica, com o objetivo de estimular o retorno de algumas ovelhas desgarradas ao rebanho.

Quem acreditou no que, agora não vem ao caso! O que importa é saber que, de imediato, a euforia tomou conta de todos e que todos trataram de se envolver nos preparativos para a chegada do Arcebispo, que estava programada para o mês seguinte, justamente num dia de domingo, que coincidiria com a presença do Padre Romão em Mulundú.

E foi um mês agitado na cidadezinha, em que os dias e as horas pareciam estar se esvaindo mais depressa do que o comum naquele fim de mundo modorrento. Dona Noca, junto com as professoras da Escola Municipal preparava as crianças e as bandeirinhas de papel para a recepção ao Arcebispo, que ocorreria na praça principal, bem na frente da igreja. O Nicanor ensaiava a Banda Musical, que regia com orgulho, em dobrados e marchas, nos festejos da municipalidade. E as senhoras do Grupo Mulunduense de Orações preparavam arranjos para enfeitar a igreja no grande dia e combinavam um outro, de flores do campo, para oferecer ao Senhor Arcebispo.

De sua parte, mais nervoso do que todo mundo, o prefeito se preocupava com duas coisas: um pequeno discurso, que tentava preparar com a ajuda de dois auxiliares, para a necessária saudação ao visitante ilustre. E em descobrir quais os termos adequados para dirigir-se a ele. Até que se lembrou de consultar o escrivão, um dos habitantes mais ilustrados de Mulundú. E saiu à procura do homem do cartório.

Ao encontrá-lo, expôs a sua dúvida, perguntando, finalmente:

— Como é que se trata uma autoridade dessas, criatura?

E o escrivão explicou:

— Bem, prefeito, o tratamento devido a uma autoridade eclesiástica, depende da posição dele na hierarquia da igreja. Se for o Papa, Vossa Santidade... Se for um Cardeal, Vossa Eminência... Se for um Arcebispo, Vossa Reverendíssima...

O prefeito anotou, agradeceu e se foi. Assim, na manhã do grande dia, estava a cidade, em peso, aguardando, na praça principal, pela chegada do Arcebispo. A espera parecia a todos não ter mais fim e o prefeito já olhava angustiado para o relógio, quando alguém sinalizou, lá da primeira curva, que o carro do Arcebispado vinha se aproximando...

A agitação tomou conta de todos, olhos esticados na direção da entrada, quando, trazendo um rastro de poeira atrás de si, avistou-se o carro preto, de vidros escuros. A coisa mais linda, que Mulundú nunca tinha visto em suas ruas empoeiradas. Ao sinal de Nicanor, a Banda Musical atacou os primeiros acordes de “Cisne Branco”, que era a peça de melhor execução do repertório. E as crianças do Colégio Municipal levantaram e agitaram suas bandeirinhas de papel.

O carro parou. E quando o motorista contornou o veículo, abriu a porta do ilustre passageiro e fez uma mesura, em movimentos lentos e algo estudados, saltou dele e finalmente foi visto em seus trajes vermelhos, o visitante tão esperado.

O prefeito municipal, fazendo o que lhe cabia, num procedimento muitas vezes ensaiado, aproximou-se e, tomando a mão do Arcebispo, beijou-lhe o anel, perguntando em seguida:

— Vossa Reverendíssima está “cansada”?

E o Arcebispo, lançando um olhar lânguido na direção do chefe do Executivo Municipal:

— “Cansada”? Eu estou é “morta”!

Instintivamente, com os olhos, todos buscaram o Padre Romão...