PARA TUDO TEM LIMITE

A coisa, aqui pela Terra, não andava boa, se vista — digamos assim — de um plano mais elevado. Conflitos em todos os continentes, guerras em que a tecnologia bélica parecia ser mais importante do que os motivos de cada um ou a diplomacia, a fome matando milhares pelo planeta, o desmatamento do globo, a poluição, e, como uma resposta da “mãe natureza” a tudo isso, verões inclementes, invernos de congelar pinguins, terremotos, ciclones, maremotos, tsunamis e uma série de outras dessas coisas que costumamos chamar de “a fúria dos elementos”.

E gente morrendo prá todo lado, como não é de admirar ninguém! Do jeito que vimos pilotando mal essa nossa gigantesca nave — que nos foi legada, para que pudéssemos navegar entre as estrelas, constelações e galáxias, pelo espaço sideral — o que vinha morrendo de passageiro, não era pouco! Uma parte dos quais, a maioria, provavelmente, descia diretamente para o Inferno, onde haveria de explicar ao Capeta-Mor essas histórias de fraude contra a Previdência, dólares na cueca, venda de votos, tráfico de entorpecentes e pedofilia. Trabalho acumulado que o “maligno” levaria anos ou décadas para analisar e resolver. Motivo de sobra para que se dissesse por lá o mesmo que dizemos por aqui: “Que inferno, essa Justiça que não anda!”

Mas, mesmo assim, uma boa parte dos viajantes desembarcados da nave, por direito e merecimento, subia até o Céu. E era aí que a coisa se complicava. Porque, no Céu, ao contrário do que acontece nas áreas mais quentes e endiabradas do Além, as coisas são bem organizadas. Todo mundo que chega é cadastrado e verificado, para saber se não houve algum equívoco de encaminhamento. Afinal de contas, punir um inocente é uma coisa grave; mas premiar um culpado, não é menos sério! E o prestígio da “Justiça Divina”, onde é que fica? Já chegam as repreensões injuriosas que são ditas por aqui e repercutem por lá, sempre que alguma coisa sai errada para alguém: “Não é possível! Será que Deus não está vendo isso?!”.

Então! Quando uma alma chega às camadas superiores, é cadastrada, averiguada e, expedido pelos computadores celestiais o respectivo “nada consta”, é encaminhada para a nuvem climatizada que lhe cabe. E daí para frente, é só alegria!

Mas, ultimamente, a coisa andava mais confusa na chegada, do que portaria de Posto de Urgência do SUS! Melhor dizendo, não havia tanta imundície e descaso, mas era um tumulto só.

E São Pedro, reconhecido por todos como o guardião oficial da porta de entrada celestial, tendo diante de si aquele grande livro, tentava fazer o primeiro registro de todos os que chegavam, perguntando aquelas coisinhas básicas:

— Como é o seu nome completo? Qual é o número da sua certidão de batismo (que lá, vale mais do que o CPF)? Vem de onde? Morreu de que?

Mas, mesmo assim, com tão poucas perguntas, a coisa estava ficando confusa. Poucas perguntas, sim! Porque em qualquer Hospital daqui, se você estiver enfartando, precisa responder, pelo menos, ao dobro dessas, antes de começar a ser atendido. E a confusão ia aumentando, sobretudo, porque, para cada três que São Pedro cadastrava, chegavam mais seis. Quando ele adiantava o registro de quatro e olhava, vinham chegando oito... Um desespero!

Foi por isto que, a certa altura, o guardião da Portaria Celestial resolveu radicalizar: terminou o registro que estava fazendo, fechou o livro e elevando o tom da voz para ser ouvido por todos que lotavam a recepção, disse:

— Olhe aqui, pessoal: isto está muito confuso e muito desorganizado! Vocês estão chegando aos montes e se misturando a quem chegou antes, não estou conseguindo cadastrar direito e o “Setor de Verificação de Antecedentes” já me mandou duas reclamações! Deste jeito, não dá! E, assim, não posso autorizar o ingresso de mais ninguém!

Fez-se um silêncio absoluto na recepção. Se houvesse moscas no Céu, coisa em que eu não acredito, seria possível ouvir o zumbido de qualquer uma delas. Era o que o bom homem de barbas brancas queria. E, deste modo, pode explicar o seu plano:

— Vocês todos vão voltar para o lugar de onde vieram e comecem a se dirigir para cá aos poucos! Um de cada vez, mesmo que com uma pequena diferença de tempo. Nada de grupos animados de velhinhas e nem de japoneses excursionistas, por favor! A propósito, deixem as máquinas fotográficas por lá mesmo!

E diante da estupefação geral, explicou melhor:

— Mas como sei que a ressurreição não está entre as possibilidades de vocês, voltarão sem que ninguém de suas famílias possa identificá-los. Voltarão como bichos!

E começou de imediato a fazer as designações, apontando para cada um dos admirados circunstantes do primeiro grupo:

— Você volta como uma zebra... Você volta como um camelo... Você volta como um leão... Você volta como um tigre... E você volta como um veado!

Ao que o último indicado do grupo, abrindo os braços num gesto de desalento, protestou com uma voz aflautada:

— DE NOVO, SÃO PEDRO?!

De fato, para tudo tem limite...