JOÃO RODINHA

A primeira vez que me ocorreu de deitar o olho num veado de dois pés foi quando, vindo do interior, aportei na capital do meu Estado. No sítio natal, ainda muito verdoso, apenas ouvira por alto algumas alusões sobre o que fosse um homem maricas. A terminologia da época e do lugarzinho serrano era muito acanhada, minúscula que só cabia num fundo de agulha.

Fui expatriado da serra com o fim de prosseguir nos estudos, pois, naquelas paragens longínquas, até se ia, quando muito, no exíguo jipe de um quarto ano primário.

Assim, de malas e cuia, bati com o costado num bairrozinho de subúrbio fortalezense, lá onde meu cunhado se estabelecera como comerciante. Minha irmã, fazendo vezes de priora do menino tímido e movido, desmanchava-se em ternura e incentivos para que eu não parasse a carroça da minha formação.

Lá um dia, já de bagagem arriada no bairrozinho de segunda e meio bucólico, a rua da minha irmã encheu-se de alaridos. Um psiu do tamanho da tarde, tudo ao compasso do coro de assobios finos e intermináveis, avultou-se e agigantou-se no bojo da rua.

Aquilo me pareceu o estrondoso zunzum de um enxame de abelhas em plena efervescência. O espírito anárquico da multidão, sobretudo da caboclada jovem, viera a público manifestar-se, para, ao mesmo tempo, vaiar e aplaudir a saliência daquele camarada amulherado.

Duvido que a curiosidade humana não esteja sempre presente nos eventos da molecagem coletiva. De modo que, ferroado pela curiosidade, corri à porta do comércio do cunhado e o que vejo, vindo de lá, todo em saracoteios?

Um sujeito magro, mediano e mais para alto, que parecia menina de passarela em noite de desfile de beleza ou de moda. Era o famoso João Rodinha, que, de mulher, só não possuía os cabelos longos e as nádegas carnudas de uma rapariga formosa. Não me perguntem por qual razão o dito-cujo levava esse complemento na graça. Quem quiser que, aí, por conta e risco, tire a limpo suas conclusões.

No mais, o xará tinha tudo em cima: requebro de miss, pose de top model e o maior remelexo que fosse para caracterizar uma fêmea com toda a sensualidade que o momento de uma exibição, assim, em passarela de rua, bem o exigisse.

Em outras e inúmeras vezes, a partir daquele primeiro desfile ao qual assisti, o tal João Rodinha iria apresentar-se pelas ruas do bairro. Garboso e pimpão, cheio de humanas vaidades, embora não fosse um gajo que se pudesse nem chamar de “bem apessoado”, o rapaz alegre surfava na elegância do andar, nos modos faceiros de uma mulata carnavalesca que se contorce em sensualismo, aos olhos da Avenida Marquês de Sapucaí.

Arre!... Nos períodos de carnaval, nem se fala. O mancebo João Rodinha metia-se em roupa fina, de mulher de verdade, e saía por aí, que era uma danação de luxo. Fora dessa fase da folia de Momo, o nosso herói só se vestia à masculina. A caracterização que lhe aprazia, com o fervor de uma odalisca, ficava por conta dos seus ares, modos e jeitos e trejeitos de uma gentil bailarina.

Duas coisas, do tal Rodinha, não se podem negar: a sua faceirice feminil e seu ar complacente com a molecada que lhe dava apupos, gritos histéricos e assobios. O João não estava nem aí. Engolia com estoicismo as consequências de sua sina ou opção sexual. Não era malcriado, não.

Até bem gentil, portador de certa educação formal. Nunca se afobava com xingações despropositadas. Pois as duas tias velhas com quem ele morava lhe deram juízo suficiente para, uma vez assumida por ele a sua sexualidade, o sujeito aguentar o rojão da mesquinhez do zé-povinho.

Fort., 06/04/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 06/04/2009
Reeditado em 06/04/2009
Código do texto: T1526035
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