COITÉ E A RODA DO SÃO GONÇALO

As mulheres do Coite... Como eram cobiçadas pelos homens da vizinhança... Ah! O São Gonçalo do Coité! Como era admirado pelos que o conheciam!

São Gonçalo do Amarante! Janeiro, dia 10. Que riso, que alegria para os olhos, que festa para o coração. Tempo? 1936/39 foi a era do informante, só desse período sabe dizer de ter vivido e sentido, amado. Do antes e do depois, conta de ouvir falar. A dança do São Gonçalo. A roda do São Gonçalo. Uma roda no terreiro da igreja – não dentro, no terreiro, do lado de fora - de uma ponta a outra. Aliás... Parece que não digo bem falando – não dento da igreja, porém fora, no terreiro. Na verdade a introdução da festa se fazia no interior da igreja, em frente ao altar. Os pares adentram a casa de Deus em fila dupla, o instrumental à frente, os dançarinos atrás. Fazem uma saudação ao santo no seu altar, os músicos dando pequenas voltas, para curvar-se diante da imagem. Ao final da rápida cerimônia buscam, de retorno, a saída da igreja. Então começa a roda dançante. Continuam em fila dupla à frente da nave indo e vindo uma, duas, dez, muitas vezes, muitas – noite inteira com intervalos para o descanso e a cachaça. À testa o grupo musical, composto por homens vestidos à fantasia, manejando instrumentos de corda e uma caixa-tambor. Dois violões, dois cavaquinhos, a caixa. O chefe, que simboliza o santo, destaca-se dos mais em uma fantasia de cordões cor de ouro e um chapeuzinho vermelho no alto da cabeça. Abre o cortejo tamborilando a caixa. Mulheres à frente, homens atrás, sapateando e balançando-se, de um lado para o outro, bailando em gingado de corpos e movimento de braços que vêm e vão, requebrando-se. Dança mesmo, da mais erótica. Era assim, meu São Gonçalinho, no seu tempo? Tantas centenas de anos depois... Só se fala que você foi casamenteiro, protegia as mulheres por via do casamento para que essas se livrassem da tentação da carne. Os sábios santos casamenteiros do eterno Portugal – Santo Antônio, São Gonçalo, protetores da saia, postos rigorosamente contra a infidelidade feminina sem levar em conta a dos machos. Ah! Velho Portugal! Como os portugueses do Brasil gostavam da negra africana, esses safadões, gozadores da virgindade disponível! O informante não o mencionou, não lhe foi perguntado. É uma dedução que facilmente vem da enxurrada de mulatos do Nordeste, sobretudo do porto escravocrata da Bahia. O sul, leste e oeste, o sudoeste, colonizados pelo italiano e o alemão não amulataram. Aí se é branco ou se é negro. Quando aponta o mulato, já se sabe, não é prata da casa, vem de fora. Espanhol, italiano ou alemão com gente de cor? Nem pensar, é coisa de português!

Coité foi um pequeno aglomerado humano no município de Belém do São Francisco, Pernambuco, antes da Barragem de Itaparica. Ou ficara, na emancipação, para Tacuruba? Não um povoado compacto, com arruamento, essas coisas. Cabe perfeitamente o nome de aglomerado. Porção de pequenas casas, 40, 50, 60... Por aí assim em pequenas roças à margem do rio. Pequenas roças e humildes casas de taipa. Em algum lugar que se pode chamar de centro, uma capela. A capela centralizando a povoação vinha de velhos tempos. Três séculos, para arredondar. Mais um pouco, até três e meio. Uma observação do informante é a de que a população de Coité basicamente se compunha de pessoas negras, altas, esguias e vistosas, de uma negritude que brilhava à luz da placa.

O arrendatário do segundo Dias d´Ávila... Os arrendatários - retifique-se - um casal. Sua fazenda, à qual deram o nome de Coité, se posicionava em área acima da fazenda Tacuruba e abaixo da fazenda Pedra do Jatinã. A história é bonita e alegre como foi a do santo que lhe patrocinou o apelido. A história da festa, da dança. E a da fazenda também!

Os arrendatários tinham propriedade sobre um casal de negros. Altos, elegantes pelo esguio do corpo e lustre da pele. Bons trabalhadores e ótimos reprodutores. Pagavam de sobra sobrada, o custo pelo qual foram comprados e o pirão de cada dia. Na redondeza ninguém possuía escravo que se lhes igualasse. E com a vantagem – eis porque se diz da sobra do seu rendimento – com a vantagem, repita-se, de presentear o senhorio anualmente com dois braços trabalhadores. Até os cinco, seis anos o negrinho ou a negrinha custava o pirão. A partir daí oferecia lucro, fazendo crescer o eito de trabalho de mais uma enxada, e, razão disso, ensejando maior colheita do legume e da raiz.

Sobra da sobra é que o senhor não teve filhos com a esposa e o primeiro rebento do casal de escravos foi uma fêmea. Quando a menina completava 15 anos recebeu como brinde do senhor um caçoa de sêmen. A partir daí mais um todo ano. Não se conheceu na região

negros mais belos e lustrosos, de uma cor não negra retinta, não mulata, porém negra fina, como se consolidou a nova raça. A partir dos quinze anos do senhorinho meio sangue, com o acasalamento de tios e sobrinhas ou sobrinhas e tios, a cor da pele se estabilizou.

- Que negros finos, rapaz, dizia a moçada da vizinhança, como são bonitas as mulheres!...

– Não chegam para o teu bico, ouvia-se a resposta, que vinha da comunidade.

Para não escravizar o próprio sangue o senhor ia libertando os que nasciam, de modo que, de escravo, não restou, senão o velho casal, até o dia em que a terra o engoliu. Também se foram os senhores e a terra se dividiu com os descendentes. Todos tinham o seu chão de roça, eis que o espaço bastava ao trabalho de todos. O Coité estava uma aglomeração privativa de gente de cor. Daquela cor fina, inconfundível, que se orgulhava de não misturar-se. Quem primeiro ensaiou e dançou o São Gonçalo com a moçada, foi o velho casal de senhores. Portugueses de nascimento, precisamente de Amarante, terra onde se imortalizou o santo, daí traziam a devoção festeira. Ao alcançar número de pessoas suficientes implantaram a dança para deixar à posteridade como um toque de saudade da terrinha. Não é bonito isso? E tão notável se fez a dança de São Gonçalo do Coité no correr do tempo, que passou a ser exportada para outras povoações pelo Nordeste Brasileiro. Só uma coisa se perdia no caminhar do tempo – a impenetrabilidade da raça. No particular de expansão do cruzamento humano o tempo empurra o amalgama que ele próprio não percebe. Chega um mais claro, um mais escuro, um índio, um japonês, quando se vê penetra o italiano, o francês... As raças se cruzam para criar o sertanejo de bronze.