O nascimento de João Ninguém da Silva

Eu só posso ter cuspido para cima e por descuido deixado o cuspe caído na cara. Só pode ser, só pode ser. Ter a sorte que tenho não é para qualquer um.Ter por sobrenome " Ninguém da Silva" e nascer do jeito que nasci, repito, não é para qulquer um.

Quando eu estava para nascer, minha vó Juventina Aparecida da Conceiçao, mulher de poucas letras, mas de muita ciência é que gostava de contar: minha mãe, do tamanho de um toco de arramar cachorro, larga que só um pote e o cabelo parecido com uma tocaia, depois de ter jantado fígado passando das seis da noite, nem ter esperado arrotar e sem rezar o terço, deitado na rede, dormido e sonhado com ciganas mensageiras argorentas, acordou, no meio da noite com o desejo esquisito de tomar chá do estrume de vaca amojada com bolacha preta recheada com berinjela. Pode desejo mais esquisito?

Vá entender, tente entender e queira essa sorte para você despacho. Dizia ela que o estrume representava o local onde o menino Jesus tinha nascido e iria me trazer sorte; a bolacha preta, o fruto do trabalho da terra, nossa fortuna e a berinjela para desde já eu, ainda em seu ventre, já sentisse a dureza da vida.

O meu pai, Zé Machado, o maior e melhor fazedor de carvão da região tinha saído para caçar porque naquele dia era o seu dia de folga e início da época chuvosa e lá se foi minha vó preparar o prato de desejo de minha mãe. Foi ao curral, escolheu o estrume mais fresquinho, foi ao pomar do sítio, colheu as berinjelas e de dentro de uma lata tirou as bolachas preta feitas naquela madrugada. Fez fogo no fogão a lenha, pegou o tacho de barro e entre uma cantiga de bendito, uma brigada com as galinhas para saírem de dentro de casa, o tal desejo esquisito da grávida ficou pronto, prontinho da silva.

Só sei que depois de tudo arrumado, minha mãe viu a coisa feita em cima da mesa, parecendo um despacho, o cheiro não muito agradável empestando suas narinas, um rebuliço, um retrocesso no estômago, olhava para minha vó de cachimbo já no bico, olhava para a tal comida de cheiro desagradável. Olhou mais uma vez, pensou, olhou novamente para o rosto de minha vó, pensou passando a mão pela barriga achando que se não comesse eu poderia nascer com cara de berinjela, ou de bolacha preta ou de estrume de vaca. Até que ensaiou algumas lágrimas e entalada com as palavras e o nó de saliva que se formou em seu gargelo, rosnou para dentro de si que em primeiro impacto minha vó não tinha entendido muito bem, rosnou suando por todo o rosto e olhando nos olhos de minhas vó.

Recusou o tal prato de desejo tão zelosamente preparado por aquela tão bondosa senhora dizendo ter passado a vontade de comer aquilo tudo e passou a enguiar. Enguiava tanto que logo um soluço inventou de aparecer, e uma baba escorria pelos cantos da boca e minha vó, uma negona roliça, larga, de braços fortes, só não tinha tamaho de gente, mas força, parecia um boi de tão braba, correu para detrás da porta da cozinha, atracou-se com um chicote feito da pimba do boi e foi logo dizendo para minha mãe:

_ O que costa oca? Sueca dada sem trunfo, coro de gia escalado no calor da lamparina, depois de uma trabalheira dessa? Pois se não come por bem, vai comer por mal.

Sentou minha mãe na marra numa cadeira da mesa e entre uma falação e um esbregue, tome a empurrar de goela abaixo a tal gororoba. Quanto mais obrigava, mais minha mãe assoprava. Eu só sei que só deu tempo engolir a última colherada pra devolver tudo de uma só vez, colocou tudo pra fora, vomitando quase até o pinguelo da garganta. Dalí para o trabalho de parto foi só chegar na cama. Água morna, toalha branca e a veia pulando de um lado para o outro baforando em seu cachimbo. Não sabia a quem recorrer, se as santas de sua devoção ou se aos orixás de sua crenca. A cada cachimbada, uma cuspida, um palavrão e uma reza. Eu não vi nada, mas minha vó me contou tudo, tudinho, sem esquecer nenhum detalhe.

Foram chamar a Velha Santana parteira que morava do outro lado da cerca. Uma senhora de cabelos todo branco, mas o rosto limpo que uma belaza, a maior parteira do lugar. Tinha feito todos os quinze partos de minha vó, nunca perdera uma criança, respeitada como se respeita uma autoridade. Nessa mesma hora estava lá a fazer o parto de uma vaca, do jeito que tava, foi só botar o terço no pescoço e chinelou.

Daí pra desgraça foi só um pulo. Eu não nascia porque tinha o tal do pescoço laçado. Cortou minha mãe de cima a baixo, para mais de palmo, enquanto isso minha vó fazia uma promessa, que se eu escapasse, se fosse macho, ao invês de Severino Neto, passaria a ser Francisco Expedito por promessa e João Ninguém da Silva de batizado; vestiria as vestes marrom até os quinze anos e só cortaria o cabelo quando pudesse ir montado no lombo de um jumento a capela do santo no alto da colina.

O pior de tudo era que eu era feio de doer. As orelhas grandes, tão grandes que me renderam o apelido de orelha de abano. Os olhos estufados parecidos com farois de caminhão. Parecia filhote de coruja e minha mãe mais coruja ainda, olhava pra mim e dizia que eu era a coisa mais linda do mundo, a coisa, escute bem. Meu umbigo parecia uma segunda barriga de tão grande que era. Contava minha vó que tiveram que fazer uma simpatia para voltar a ser umbigo de gente. Durante nove sextas-feiras, pegava um cordão, media de um lado, media do outro lado, media para cima e media para baixo. Cada medida era um nó arretado. Dizia lá cinco ou seis palavras que não lembro agora e no final das nove sextas-feiras, cortaram o tronco de uma árvore pela parte que ficava para o poente e fincaram esse cordão cheinhos de nós nesta árvore. Eu só sei que foi um tiro e uma queda porque de barriga meu umbigo se transformou em cacimba de tão para dentro que entrou.

Depois daí foram as tosses, o nariz escorrendo e eu como livre pássaro correndo curral abaixo e curral acima, de baladeira na mão a caçar ninho de passarinho... Nove anos e nem falava ainda. Foi daí que minha sábia vó agiu por si e me fez tomar litros e litros de uma tal água de chocalho adormecida no chifre do boi mais antigo do sítio, por tantas outras luas me pilava no pilão de madeira e me banhava de meia noite com água serenada. Mas também, depois que desarnei, não teve mais simpatia que me fizesse falar menos. Falo mais que o homem da cobra, mais que mulher com raiva de outra... Lembro-me de um dia que minha mãe inventou de fazer tapioca. Pense num aperreio, num descuido dela, inventei de bolir no tacho que virou por cima de mim e de preto fiquei branquinho, branquinho da Silva, fora as quimaduras tratadas com folhas de urtiga pra nunca mais mexer no que estava quieto.

Aos treze anos fui ao primeiro grupo escolar e em poucos dias já conseguia ensinar a professora, para surpresa de todos. Era tido como uma assombração, filho do medo da noite por ter sido gerado em pé numa rede. Era assim que diziam de mim por tamanhas proezas. Devorava as cartilhas e de tanto conhecer todas as histórias, passei a inventar minhas prórpias histórias...

Hoje sou João Ninguém da Silva, aquele qeu em sua mente mora, sou João Ninguém da Silva , o contador de história.