ESTUDANTES EM APUROS (AVENTURA)

ESTUDANTES EM APUROS

(conto verifico)

O dia-a-dia da vida do seminário, pelo menos no meu tempo, começa pelas orações matutinas (missa), alternando durante o dia aulas, recreio, refeições, estudos, jogos, trabalhos, novos estudos, as orações da noite e... cama. Tem suas regras próprias enquanto organismo que abriga em suas fileiras meninos, pré-adolescentes e adolescentes. Formando três grupos distintos, os separam os alojamentos, os jogos e a comunicação entre si. Só é permitida essa comunicação em casos específicos e com prévia autorização dos diretores. Assim as férias são, também, para grupos denominados maiores, médios e menores, designativo dado a esses grupos na gíria interna do seminário, conforme o tamanho e a idade dos alunos. Eu pertencia ao grupo dos adolescentes (maiores). Estes tinham, além de maior carga de trabalho, mais liberdades. Assim sendo, alguns já com barba na cara, tínhamos maior autonomia quando de nossas incursões, durante as férias, na intenção curiosa de descobrir novas cavernas, cachoeiras e sítios por nós ainda não visitados. E, quando elas (as férias) aconteciam, o lugar que nos satisfazia mais a curiosidade era a Serra da Mantiueira.

Éramos estudantes de internato e, por isso mesmo, sumamente curiosos, fora do nosso habitat, o seminário. Não éramos dados a arroubos de coragem – confesso – mesmo porque nossa pouca idade e experiência limitavam-nos essa qualidade. Mesmo assim, a curiosidade supria a coragem que tínhamos, e isso era suficiente para nos aventurar por paragens nunca vistas por nós. Resistência física não nos faltava, pois tínhamos a nosso favor a juventude e os exercícios físicos diários, praticando o futebol, o vôlei, a natação e outros jogos.

Naquele dia a meta prefixada era, além da Serra da Mantiqueira, conhecer a divisa do Estado de São Paulo com o de Minas Gerais, distante alguns quilômetros do acampamento. Quando da partida da casa de férias, isso antes do sol nascer, cada um levava em sua mochila um frasco de groselha para misturar com a água que bebia e o almoço, geralmente constituído de “tutu” (feijão engrossado com farinha de mandioca à moda paulista), arroz, pão e carne. As frutas colhíamos pelo caminho, onde e quando encontradas. Levávamos, também, uma grossa manta para estender na grama, para um eventual descanso. No trajeto de ida, invariavelmente, todo o grupo seguia junto pelos “ziguezagues”, serra acima, espécie de valas formadas através do tempo pelo escoamento das águas pluviais. Por este caminho era mais seguro subir e posterior retorno. O outro carreiro aberto no meio das matas para quem quisesse subir a serra oferecia perigos. Sendo uma trilha pouco usada havia o perigo de sermos surpreendidos por cobras ou por alguma fera de má índole, que ali as havia muitas. Por outro lado, o caminho dos ziguezagues referidos era quase escuro, porquanto rodeado de árvores nativas frondosas, grossas e seculares, do pé ao cimo da serra. Só lá em cima, como se fora o alto de uma cabeça calva, mostrava-se o descampado, formado de buva baixa, barba-de-bode e, de quando em quando, gramado, entremeado de um que outro canteiro de serrado.

Lá de cima da Serra da Mantiqueira se tem a vista projetada por todo o Vale do Paraíba. Até onde alcança, vê-se inúmeras cidades em visão de tela panorâmica.

Eu fazia parte de um grupo de cinco estudantes (a famosa “panelinha”, se assim a quisermos chamar) com gostos aventureiros similares. Não nos contentávamos em somente subir a serra. Queríamos mais; queríamos ver além do descampado que se estendia diante de nossos olhos; queríamos pisar e ver a tão propalada divisa que separava o Estado de São Paulo do de Minas Gerais; de como se processava; a peculiaridade dos marcos divisórios históricos etc. etc.

Naquele dia saímos do acampamento logo nas primeiras horas, após termos ajudado no seu levantamento. Após nos direcionarmos quanto ao rumo a ser tomado, cada qual com sua mochila e seus pertences, fizemos uso de um carreiro que circundava uma extensa colina. Já havíamos caminhado bastante naquele dia. Saíramos da casa da “Pedrinha”, assim era chamada a casa de férias, antes do sol ter dado o ar da sua graça. A curiosidade, porém, de novas descobertas, a passo e passo do nosso trajeto, fazia esquecer qualquer indício de fadiga. Andamos mais ou menos dez quilômetros quando, finalmente, avistamos o enorme jequitibá que nos havia sido informado como sendo o marco da divisa, ao lado do ribeirão profundo e estreito, também mencionado naquela informação. Foi maravilhosa e gratificante essa descoberta. Um ribeirão profundo e estreito, que serpenteava, com águas límpidas sobre o dorso da Serra da Mantiqueira, suportando em suas margens um poderoso e gigantesco jequitibá, fazia o desenho da divisa natural de dois Estados.

Tão estreito era o referido ribeirão que tiramos fotografias com um pé em São Paulo e outro em Minas Gerais. Para deixar a marca da nossa passagem por ali, gravamos nossos nomes com o canivete, nassa ferramenta de todos os dias, no tronco daquela árvore. Para nós tudo eram novidades, mesmo os restos antigos de uma extinta fazenda. E lá fomos nós “descobrindo” o que sobrara das moradias – a “casa grande” – e o que fora em outros tempos, presumimos, uma senzala.

Mas não foram somente os resíduos da história que nos chamaram a atenção. Havia ali entre a capoeira que tomou conta dos terrenos em que foi construída a referida fazenda, um grande número de árvores frutíferas. E fomos ao ataque. Comemos amoras, mangas, jatobás, bacuparis e outras frutas deliciosas, dali nativas. Com tantas coisas deliciosas para ocupar olhos, mente e paladar, as horas correram tanto que nem as vimos passar. Quando o organismo sentiu falta de um alimento mais sólido, sentamo-nos sobre as vigas ainda existentes, sobradas da ação do tempo e única lembrança das benfeitorias da extinta fazenda, abandonada há, quem sabe, muito mais de cinqüenta anos. Fizemos o nosso almoço. Apanhamos água com as canecas para misturar com a groselha; do farnel retiramos os potes e comemos arroz, pão, carne e tutu. Durante essa refeição, além dos comentários sobre o que lêramos e ouvíramos contar, mil outros pensamentos ziguezaguearam por entre esses escombros históricos, tentando adivinhar-lhes a verdadeira história. Quantas vidas reais e vegetativas escorreram por entre as paredes um dia ali existentes! Quantos sentimentos de usura, de poder, de piedade, de discriminação racial e de cor e de posição sócio-econômica houvera ali calado o tempo em favor da mão-de-obra a baixo custo! Ou, visto por outro ângulo, quantos amores e desamores desenharam os pincéis da vida, nessa tela em preto e branco! Quem pensava, de todas essas conjeturas, só tinha uma certeza – de tudo o que estudamos sobre o desbravamento das terras brasileiras, com todas as riquezas minerais e vegetais contidas no chão pátrio, nesses mais de quatrocentos e cinqüenta anos decorridos desde o “descobrimento”, atestamos ao vivo a veracidade. Pelo menos o que os historiadores houveram por bem registrar, pois um pedacinho daquilo que fora feita essa luta entre índios, negros e portugueses, nos fora dado ver naquele dia. Nessa aula em pleno cenário dos acontecimentos, sentíamos nossos conhecimentos reforçados pela presença desses fiapos da história.

Após essa refeição, a que hora foi feita pouco ou nada importava, guardamos os restos na mochila e seguimos adiante. Caminhamos até o alto de uma colina, que dali onde estávamos mostrava-se distante, e aí estando (que maravilha!), avistamos mais uma cidade encravada no recôncavo da serra. Surgiram pelos menos cinco opiniões diferentes sobre o nome da cidade avistada em solo mineiro. Poças de Caldas ou qualquer outra que fosse, o fato é que a consideramos mais um troféu conquistado na lista da rota de descobrimentos.

Saciada nossa sede de curiosidade, concordamos por unanimidade que era hora de batermos em retirada. E pomo-nos a caminho do acampamento para, reunidos com os colegas, descermos a serra rumo à casa de férias. A tarde já ia alta. A distância que percorrêramos na vinda se nos aparentava pequena. Nem nos damos conta do quanto havíamos andado para chegar até ali. Tantas velhas novidades se nos apresentaram diante dos olhos que perdemos a noção do tempo e da distância.

O acampamento, pensávamos, ficava logo atrás da primeira colina. Sempre acampávamos perto de um lago que, em suas margens, mantinha gelo eterno por causa da altitude e do vento frio, que se situava na curva da floresta. Era uma bacia escavada na pedra no limiar do mato, isso a mais de dois mil metros acima do nível do mar.

Quando se está a dois mil metros de altitude, todo o mais fica abaixo dos nossos pés de ambos os lados da serra. Em altitude normal o sol expande sua luz por muito mais tempo que o de visualizarmos seu globo. Mas quando se está sobre a serra é diferente. Depois que o astro-rei se esconde, é rápida a vinda do escuro total. Disso, se o sabíamos, não nos damos conta.

E foi assim que fomos para o lado do acampamento. Vimos que anoitecia rapidamente, mas tinha ainda uns dois palmos de sol. Para ganhar tempo resolvemos cortar caminho pela trilha que nos parecia um atalho. O caminho normal circundava o morro pelo nascente. Pensamos que cortando esse morro ao meio em linha reta seguindo a trilha que descia para uma bacia ao pé deste, diminuiríamos o tempo e a distância pela metade. Se a nossa idéia estivesse certa sairíamos do outro lado já próximos do acampamento em poucos minutos. Mas qual, para nosso desespero damos no fundo de um vale literalmente cercado de caraguatás e banhado. Era a estradinha por onde passava o gado para saciar a sede... e o sol avançando perigosamente sobre o horizonte, bem abaixo dos nossos pés. Para frente era impossível ir, muito menos para os lados. O careiro só ia até ali onde o gado bebia o precioso líquido.

Havia uma única maneira de contornar o problema – voltar. Foi assim que retornamos sobre nossas próprias pegadas para alcançar o careiro antigo. E seguimos em frente. Com mais algum tempo de caminhada – quase corrida – chegamos finalmente ao acampamento. Já ninguém havia nele. Só numa vara fincada no chão, havia um bilhete com as palavra: “Não podemos esperar mais. Sigam-nos”. O sol acabava de se esconder. Seguimos rapidamente em frente descendo a serra. Mas quando entramos mata a dentro, o que antes era escuro, agora era breu. A escuridão era total. Para nossa sorte encontramos logo uma grande clareira – um oco no meio do mato, sem árvores. E tivemos que parar. Mais que depressa e do jeito que foi possível juntamos gravetos e galhos secos, que amontoamos no centro da clareira e lhes ateamos fogo com os fósforos que, por sorte, trazíamos na mochila. Depois de clarear ao redor, o fogo nos deu a visão de mais galhos, madeira que juntamos para servir de combustível durante a noite. Feito isso, agrupamo-nos enrolados em nossas mantas ao redor do fogo.

Sabíamos por relatos dos nossos amigos da Pedrinha e também por peões com quem conversávamos no alto da serra, que esses matos estavam infestados de felinos, incluindo onças. Aqui e ali eram encontrados restos de animais – carneiros e bezerros – devorados por eles. Nem é preciso dizer que nenhum de nós dormiu naquela noite. Estavam todos de vigília. Um calafrio se produzia na espinha a cada estalo que se ouvia ao redor da clareira. Um ou outro pássaro noturno ou morcego fazia-nos ficar de cabelo em pé com seus pios ou vôos rasantes.

Até aqui ia tudo às mil maravilhas. Medo tínhamos, sim. Estávamos aparvalhados. Tínhamos muito medo, e nem podia ser diferente. Mas nada acontecera, até o momento, do perigo esperado.

Mas aconteceu. De repente lá do fundo do mato, ainda distante, subiu até nós um miado rouquenho.

– O que foi isso? Vocês ouviram? – perguntou um dos colegas, transito de susto.

– Deve ter sido uma dessas grandes corujas que vimos por aí – falei para acalmar a mim mesmo.

Tudo foi novamente silêncio. Mas aquele silêncio pesado que a gente lera nas histórias de aventuras nas grandes selvas e que nós estávamos vivendo neste momento ao vivo. Quando todos os outros bichos se calam e se aquietam escondidos, é sinal de que alguma grande fera anda pela redondeza à caça de uma presa para sua janta. Ouvir-se-ia a queda de uma pluma, tal era o silêncio na selva. Somente a respiração e o crepitar do fogo eram audíveis. Alguns minutos depois, mais um daqueles miados terríveis, este já bem mais perto. Ninguém falou. Todos estávamos cientes do que se tratava – uma onça pintada – que fora atraída por nosso cheiro. Agora o silêncio era nosso. Nem respirávamos. As armas mais mortíferas de que éramos portadores – um canivete para descascar frutas e um estilingue (bodoque) cada um. Entregamos nossa causa a Deus. Rezamos todas as orações aprendidas desde a mais remota infância e, também, aumentamos o volume das chamas. Ouvimos sempre dizer que os tigres não chegam perto do fogo, principalmente quando há labaredas. Como eu era o mais velho do grupo (devia ter meus dezessete anos), enchi-me de coragem e, mais uma vez, fui agrupar todos os troncos para mais perto do fogo, deixando as chamas bem altas. Não demorou muito e ouvimos pequenos galhos se partirem ao redor da clareira. Fizemos o máximo silêncio, como se isso adiantasse. Somente nossos olhos corriam ao redor para ver de onde vinha o perigo. A fera não chegou mais perto do que uma distância de uns quinze metros de onde estávamos agrupados. Chegamos a ver “brasinhas” (seus olhos) no escuro, rondando a clareira.

Durante um longo tempo, nem soubemos avaliar quanto, perdurou essa agonia. O medo e a impotência da reação nos fez fazer xixi na roupa. Ficamos como que paralisados. Não sei se algum de nós disse alguma palavra ou teve algum gesto de reação. Acho que não pois nossas línguas estavam travadas pelo pânico. Já madrugada, presumo, o bicho afastou-se para o fundo da floresta. Miava e rosnava ferozmente ao se afastar da clareira. Por certo porque o fogo frustrou sua caçada. Para nosso alívio e segurança a ouvimos afastar-se para a região das grandes grutas.

Quando o dia amanheceu e o sol clareou nossa segurança, descemos a serra olhando para todos os lados com medo de topar com a fera escondida atrás de qualquer moita.

Lá pelas dez horas da manhã, sob um sol tão radiante quanto escaldava a gente, chegamos à casa da Pedrinha. Aí chegando foi a nossa vez de dar explicações ao Pe. Vieira, nosso acompanhante e responsável pela excursão. Foi hora, também, de recebermos os puxões de orelha correspondentes. Ainda assim, malgrado os percalços vividos, aquele passeio teve um final feliz. Para nossos colegas fomos os heróis das férias daquele ano.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 26/09/2009
Reeditado em 26/09/2009
Código do texto: T1832464
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