O SOLITÁRIO

O SOLITÁRIO

Cospe para o lado e me encara. Era de estatura mediana, magro, moreno claro e ainda mais amorenado pela ação do sol, olhos azuis. A cor poderia, certamente, ser debitada na conta da mistura de raças. O espanhol, o indígena e sangue alemão misturados numa mesma ampola de ensaio, deram-lhe essa cor de cuia, de olhos azulados. Pés no chão. Um calção que, por certo, fora-lhe doado por alguma entidade, livrava-o da nudez completa. Camiseta, não a usava. Fazia calor extremo, e esse clima tropical dispensava essa peça do vestuário.

Cabelos empastados, fartos. Os dentes frontais, havia-os ainda, escuros. A barba muito rala por fazer, de diversos dias. O rosto fazia-se crer desconfiado, e muito mau. Não fora a luz benigna e triste emanando dos seus olhos, dir-se-ia verdadeira essa carranca. O aspecto confiava-lhe idade entre sessenta e setenta anos. Era lúcido e esperto.

– Pegue aquele cepo e sente, moço. Cadeiras não as tenho para oferecer. No meu barraco não cabem cadeiras. Só um banquinho e cepos, desculpou-se ele.

Cumprimentei-o, dando-lhe a mão. Disse meu nome. Pegando o cepo indicado, sentei. Já havia passado por aquele barraco outras vezes. O mesmo senhor sentado frente à porta ou esgravatando a terra em torno, plantando ou limpando a pequena plantação. Havia ali um canteiro de milho, de feijão e outro de aipim. Também cultivava, para seu uso particular, temperos e saladas diversas. O modo de ser desse homem espetava-me de curiosidade. Parecia uma dessas figuras lendárias, místicas, encontradas nos contos inconfundíveis do mestre dessa arte Monteiro Lobato. E a ideia reforçava-se pela localização da casinha – a última do bairro, afastada; solitária. Dir-se-ia sozinha, sem comunicação com as demais casas e sem elo social algum com os outros moradores do bairro. Minha língua estava travada. Sentia que ele esperava que eu falasse. Pousou seu olhar manso nos meus olhos e, vencido o embaraço natural, dissolveu-se-me o nó da garganta, que estava ali motivado pela curiosidade. Mas como dizer isso a ele sem melindrá-lo? Afinal de contas, era só mais uma pessoa humana, como tantas outras, ainda que solitária, que houve por bem ganhar seu pão trabalhando a terra, inda que em terreno diminuto.

Finalmente animei-me a falar:

– Passo seguidas vezes por esta estrada e vejo o senhor sempre em torno da sua casa trabalhando ou, pensativo, sentado frente a ela. A curiosidade e conhecê-lo melhor fez-me parar hoje.

– O Senhor está no céu. Gosto que me tratem como igual. Pelo menos assim recordo o que fui nos meus bons tempos de trabalhador.

– concordo. Sem querer ser indiscreto, penso que deve ser opção sua de viver afastado dos demais moradores do bairro.

– Opção não, necessidade – disse o homem, encarando-me tristemente, alcançando-me a cuia. – toma chimarrão?

– Tenho uma amiga que diz sempre que o chimarrão é um mandamento. Mandamento ou não, fato é que é uma das boas coisas que nos aproxima dos nossos ancestrais e, ao mesmo tempo, nos irmana, seu... (!?!)

– Desculpa. Nem mais estou acostumado de declarar meu nome. Os do bairro todos sabem que sou o João. Pessoas estranhas? Não lembro mais a última vez que recebi uma visita! Meu avô migrou da Argentina para Santa Catarina e casou com uma bugrinha. Meu pai, já brasileiro, casou com uma alemoa. E aqui está o João Alvarez, um pouco de toda essa mistura.

Neste início de conversa já notei a facilidade de expressão do meu interlocutor. Bem se via que não era o tabaréu e ignorante que aparentava ser pelo seu visual.

E continuou. Seu rosto macerado parecia entristecido ao falar.

– Não foi opção, não. Foi por necessidade que vim parar aqui; o único pedacinho de terra que me foi cedido, numa espécie de comodato vitalício, por uma alma caridosa. A minha vida é uma história muito simples para que a vê de fora; mas, triste demais, p-ara quem a vive. É simples e triste em sua essência, como as há milhares por este Brasilzão afora. História que fala do tempo em que perdi muito cedo a capacidade de ganhar meu sustento com minhas próprias forças. Há tantos, como eu, que não foram socorridos decentemente na doença e, agora, como eu, também colecionam amargas derrotas, quase na miséria extrema.

– Então você está aposentado pelo atual INSS?

– Sim. Se isso é aposentadoria, estou aposentado. Dos quatro salários que eu ganhava como operador de máquinas, só me resta um. Isso porque, por lei, o Governo não pode pagar menos. Além dos remédios, dá mal e apenas para comprar uma cesta básica, o café, o açúcar e alguma pinga para espantar a solidão. É até vergonha dizer-se aposentado pelo INSS.

– E os filhos não lhe ajudam? – perguntei sem pensar.

– Fui casado, mas não tivemos a felicidade de termos filhos.

– Desculpe-me, falei. Foi indiscreto da minha parte mexer no seu passado sem o conhecer.

– às vezes é um alívio botar para fora o que está doendo lá dentro.

Notara-lhe uma mistura de raiva e desencanto quando se pôs a falar. E eu escutei em silêncio, sem o interromper. Senti que lhe faria bem falar.

– Eu fui filho único. Não eram ricos os meus pais, mas tinham o suficiente para levar uma vida digna. Fiz o estudo fundamental de hoje (o ginásio do meu tempo de estudante) e, então, arrisquei fazer o exame vestibular, e passei. Tinha tudo para fazer a tão sonhada universidade. Queria ser engenheiro civil, mas, fiz o primeiro ano e desisti. Esse estudo acarretaria um custo muito elevado que não cabia no orçamento dos meus pais. Iria impor-lhes um sacrifício muito grande. Comecei então a trabalhar e a repor para meus pais aquilo que já havia gasto impropriamente. Ainda moço, tive diversos empregos bons. Trabalhei em bancos, escritórios e comércio. Naquele tempo comecei a pensar em namoro e, até, em casamento. Mas, como geralmente acontece, essas coisas vieram ao natural. Veio o namoro e o casamento; a vida conjugal feliz. Sem grandes ganhos, é verdade, mas sempre vivemos com alguma folga no orçamento doméstico. Nessa época comecei a fazer um curso de desenho arquitetônico, mas desisti porque o horário era incompatível com meu trabalho. Foi nessa época que me encantei com as máquinas pesadas que abriam estradas; que eram mais fortes que as pedras que arrancavam. Enfim, era um pouco da engenharia que sonhara para mim. Acabei tornando-me um operador dessas máquinas. Trabalhei muitos anos duro, mas feliz da vida, ganhando mais ou menos bem. Até que, por uma dessas cilads do destino, machuquei seriamente a coluna. A empresa mandou-me par os médicos pelo INAMPS; não pelo acidente do trabalho, como deveria de ser. Passei de um médico para outro e depois para mais outro e nenhum deles resolveu o meu problema de saúde. Resultado: não pude mais trabalhar e o INSS, então INPS, me “encostou” num auxílio-doença. Depois de dois anos resolveram aposentar-me.

– Desculpe perguntar, mas, a sua mulher faz tempo que faleceu?

– Pois este é o segundo capítulo da minha tristeza. Nos primeiros tempos do auxílio-doença passei a ganhar só a metade do salário que ganhava na empresa. Mas como presumia isso ser temporário, fui levando a coisa assim.Como não pagávamos aluguel, dava para viver. Mas a coisa foi se prolongando e o tempo passou sem haver um novo cálculo no meu benefício. Um ano... dois anos... e nada.O valor do auxílio-doença foi encurtando.; e foram podando; e a cada perícia que eu fazia, o grau de incapacidade era maior, enquanto que o dinheiro ficava sempre menor. Até que me aposentaram por invalidez... com um salário mínimo. Aí minha mulher não aguentou mais. Foi embora e pediu as contas. E eu fiquei só. Quando saiu o divórcio ela ficou com a casa. Com o pouco que sobrou pra mim, comprei a madeira de uma casa velha e fiz este barraco no terreno que uma alma piedosa me cedeu enquanto estou vivo. Enquanto isso faço isso que você viu, esperando que Deus tenha piedade de mim e me leve para a outra dimensão. Meu sonho de felicidade foi mesmo só um sonho. Hoje sou isso que você vê que eu sou.

Dito isso, chorou copiosamente, com ambas as mãos cobrindo seu rosto.

O nó que eu sentia na garganta, agora tornou-se ainda maior e explodiu; e explodindo ,me fez cócegas nos olhos; e a cócegas fizeram lágrimas correrem por meu rosto.

Despedi-me temerário de, talvez, ter causado um mal maior para o pobre velho. Senti-me o solitário mais feliz do mundo, já que ia ao encontro das minhas filhas e dos meus netos.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 28/09/2009
Código do texto: T1835652
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