UMA UTILIZAÇÃO ECOLÓGICA

João sentou-se numa pedra saliente, no meio do roçado recém feito. Contemplou sua obra e depois, pensativo, escorou os cotovelos nos joelhos, apoiando nas palmas das mãos calejadas, a testa. Achava estar fazendo a coisa certa. Sua terra era diminuta. Somente três alqueires. Não dava para ficar rico, é claro. Mas era o suficiente para criar sua família, que era pequena – ele, a mulher e dois filhos, um casal – sem que seu sustento ficasse prejudicado e para que nada faltasse a ela do trivial. Ainda que os filhos não tivessem estudos além da escola do povoadinho, distante uma légua da sua casa, pelo menos estavam alfabetizados. Não se aprendia grande coisa nos quatro anos do antigo primário, principalmente no interior, mas o suficiente para aprender a ler e escrever. O resto deveriam aprender empiricamente e, para isso, a educação recebida em casa era de suma importância. E nisso ele era mestre, porque aprendera tudo do seu pai. Tinha essa certeza: o caboclo que vive daquilo que ele produz, tem de aprender a cuidar, em primeiro lugar da natureza; da terra que cultiva. Vindo ele e a mulher de famílias pobres, tinham que cuidar bem daqueles três alqueires de terra que puderam comprar. E isso foi a primeira coisa que ensinou aos filhos, desde que eram pequenos. Agora já eram adolescentes. A menina tinha catorze anos e o filho, treze. Já ajudavam na roça, e como ajudavam!

Perdido nessas divagações pressentiu a aproximação de alguém. Levantou a cabeça e viu seu compadre, que se aproximava.

– Bom dia, compadre. Fazendo uma rocinha nova?

– Bom dia. É. Acabei de derrubá a capoera. Já fais dois ano que dexei crescê este pedacinho pra descansá a terra.

– Onte eu tomém derrubei uma tira de mato do que ainda sobra. Perciso pra prantá feijão. Se o caboclo não tem feijão tá lascado.

– Toma cuidado, compadre Migué, pois sobra só um eitinho do teu mato. Logo, logo, não vai mais sobrá nada. E daí vai prantá inté a terra cansa. E quando ela cansa não dá mais nada. E dispois?

– A gente adubamos. Lembra que os nossos veio fazia isso?

– Mais, naqueles tempo era mais fácil. Os veio tinha mais gado e porco pra deles tirá o adubo. Com a vaquinha de leite que temo e três ou quatro porquinho, não tem estrume pra adubá roça nenhuma!

– É, os tempo são outros. Hoje a gente compramos tudo.

– E com que dinhero?

– Tem que se havê um jeito, ora. Enquanto essas dificuldade não vem, vô pra vila comprá um litro de pinga. Triminô aquela que vancê troxe do alambique, lembra?

– O meu garrafão tá mal apena no gargalo. Só tomo um gole quando venho da roça.

E o Miguel despediu-se e retomou o trilho que o levaria ao povoado.

João ficou pensando. Não lhe cabia na cabeça tamanha irresponsabilidade do compadre. E não era só o fato de ele, terminando de derrubar seu último pedacinho de mato, ficaria sem opção para um futuro que estava logo aí na sua frente. Não demoraria muitos anos para a terra cansar e se negar a dar frutos, pois ele não fazia rodízio de cultura. Uma, porque tinha pouca terra, e outra, porque se acostumou a plantar milho ali e mandioca acolá. Cada coisa tinha o seu canteiro reservado. E, segundo seu pai lhe ensinara, isso era errado e judiava da terra.

– (...) O pai (Deus o tenha, disse, benzendo-se) era um sujeito sábio. Quando nóis era ainda menino, as terra do pai era maior. Já então, na sua cisma, ele ideava um pedacinho prá cada um de nóis, distribuindo os mato que tinha em cima para todos. A gente crescemos e eu recebi a minha terra. Os mato que tinha em cima dexei tudinho. Tem árvore que tem mais de cem ano, tudo mata nativa, e fui premiado com uma sanga correndo no meio delas. Graças a ele que sei tudo sobre o uso sustentável da terra, pensou ele. – ... e até fez uma moda de viola que sempre tocava no seu violão. Deixa ver se me alembro. Acho que dizia mais ou menos assim:

“Disse um pai para seu filho:

não maltrate a natureza,

se lhe faz judiação

causa dano à sua beleza;

se não planta nenhum grão

não tem pão na sua mesa.”

... e tinha uns verso que ficava bem certinho com as lida do compadre. Era assim:

“Se a gente queima o roçado

queima o que na terra presta.

A folha seca que apodrece

é o adubo da floresta;

quando a chuva molha o chão

a lavoura faz a festa.

Se a terra perde a força

você gasta com insumo;

quando colhe o seu produto

não lhe sobra nem pro fumo

e o caboclo empobrecido, ai...

perde até seu próprio rumo.”

(...) Garanto, continuou matutando, que quando a derrubada está seca, ele ateia fogo e queima até as árvore junto, pois tem preguiça de tirá elas primeiro. E não é só isso. A fonte que nasce nas terra do vizinho de cima e corre pelas terra dele agora vai ficá nua como moleque que acaba de nascê. Logo que o arado pega as água morre.

Quando o João já se havia refeito do suador que tomara trabalhando, tomou uns goles de água da moringa e foi para seu ranchinho. Enquanto ia para casa, o João lembrou-se que, quinze anos antes, quando contruiu seu ranchinho, fez questão de construí-lo perto da sanguinha que descia do morro pelo meio do mato. Era até romântico e, se fosse poeta, teria feito uma moda de viola para comemorar sua ideia. Havia, é certo, o perigo de as águas daquela sanga serem contaminados pelo lixo natural que as moradias produzem no interior. Mas, também, prevenira-se contra essa hipótese. Num plano mais baixo, onde a sanga quebrava para a direita, fazendo um cotovelo, quase no fundo de um vale, cavara um buraco de razoável fundura para nele serem depositados todos os lixos domésticos biodegradáveis; as fezes suínas e bovinas e, nele, misturava as folhas que caíam das árvores que rodeavam a casinha e a palha de milho e outras. Assim, esvaziando o buraco uma vez por ano, ele tinha um bom volume de adubo para usar onde e como era necessário.

Chegando à sua casa sentou-se num cepo, no terreiro e disse aos filhos:

– Agora o trabaio é com vanceis, meus fio. Daqui mais uns dia o sol já secou as foia do capoeirão que derrubei hoje, lá na encosta do morro. Na sumana que vem vanceis decoiem a lenha das vara mais grossa, piquem em pedaço e empiem em baxo do paio, que é pra gente tê lenha pro fogão.

– Sim senhor, meu pai, pode dexá que vamo trazê ela todinha – disse o menino, faceiro por poder ajudar o pai.

– Mais vanceis se cuida pra não se machucá e não sê picado de cobra.

– A mãe sempre diz que é pra levá o Anjo da Guarda junto. Ele cuida da gente, enquanto não fais coisa mal feita – disse sorrindo a menina.

– É. Rezá pra ele sempre ajuda, mas pra gente cabe o devê de se cuidá. De premero vão lá com a foice e o facão pra corta os gaio fino dos tronco. Dispois empiem a lenha perto da istrada, que é pra gente passá com a corroça de boi e recoiê.

Não é que o casal de adolescentes nada fazia. O serviço deles era mais caseiro. Por exemplo: fazer pasto para os bois e a vaquinha, já que o potreiro era pequeno; tratar os três porquinhos do chiqueiro, que estavam sendo engordados para não faltar banha e se ter um pouco de carne, que não fosse de galinha, e essas coisas mais leves, porque, segundo o João, eram muito novos, ainda, para o trabalho integral da roça. Esses trabalhos mais leves eles realizavam com muito prazer e perfeição, sempre sob as vistas e as orientações da mãe, que fazia os serviços de casa, descascava arroz e socava a canjica no pilão, enquanto não estava pronto o monjolo. Mas, há alguns anos o João construíra um monjolo para auxiliar a família nas atividades que poderiam ocupar essa engenhoca para facilitar sua vida. Isso foi relativamente fácil, mesmo porque, aproveitando as águas da sanga, só foi necessário construir o móvel ao pé do morro, ao lado dela. Assim, livrando a mulher desses trabalhos sobrava mais tempo. E, quando esse tempinho aparecia, lá estava ao lado do marido nos trabalhos da roça.

Mas ele, o pai, sabia que o trabalho de que acabava de encarregar seus dois filhos era pesado, talvez pesado e perigoso demais para sua pouca idade. Por isso resolveu mudar o esquema.

– Meus fio, vamo fazê diferente. Nóis tudo vamo coiê o feijão que tá prantado lá em riba na bera do mato e dispois, na segunda-fera, nóis tudo junto vamo fazê aquele trabaio. Tá bom ansim?

– Tá ótimo, pai, – disse a jovem, abraçando seu amado pai.

A família, sempre cuidando para não agredir a natureza, porque sabia que precisavam dela e, não somente eles, como também, todos os seres humanos, seus descendentes ou não, para sobreviver. Por isso tudo faziam como o senhor que sempre viajava pelo interior para orientar os colonos nesse sentido, recomendara-lhes.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 05/10/2009
Reeditado em 05/10/2009
Código do texto: T1848683
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