O MENINO

O MENINO

O menino deita, mas não dorme. No frágil casebre coberto por papelões e sacos plásticos tudo é além da miséria. O gotejar da chuva flui facilmente molhando o colchão velho onde se encontra as três crianças com a mãe. Todos em um só cômodo. Na penumbra quase não tinham aspectos de humanos.

A chuva fica mais forte, e o barulho do trovão amedronta as crianças, que choramingando, agarram-se à mãe, que diz:

- Quietos, papai do céu tá ralhando!

E o menino cansado tenta dormir, mas não consegue. As entranhas já aprenderam a conviver com a dor da fome, não foi o estômago vazio que fez com que o menino se levantasse e sim uma terrível dor de dente. Madrugara para conseguir um atendimento com o doutor do posto de saúde do bairro mais próximo de sua “casa”, ficou na mesa o pirão de milho sem leite que a sua mãe fez para o café, não comeu. Queria mesmo era arrancar o dente. E o que dizer ao menino do dente que não foi tirado e sequer um curativo feito? Explicações que para ele não tinham nenhum significado:

- É o molar dos seis anos, dá um jeito de fazer um canal...

Ele questionou com o dedo dentro da boca mostrando o dente:

- Dói demais, doutor! O buraco tá grande...

Cabisbaixo, levantou-se. Nem um comprimido, nem um curativo.

E agora com essa chuva torrencial a dor estava aumentando cada vez mais. A mãe, aperreada, resmunga:

- Com cinco “real” tu ia era tirar esse dente ali na casa do seu Passarinho. Toma, coloca o tabaco que mata logo esse nervo e passa a dor - a mãe ouvira falar disso não lembrava onde.

Tomou da mão de sua mãe o tabaco e colocou no dente. Caíram lágrimas de seus olhos, doeu mais ainda. Com a ponta de um grampo conseguiu tirar o tabaco e a dor melhorou.

Ainda chovia, mesmo assim ele saiu, a mãe olhou, só olhou. A rua deserta e já escurecendo deixava o fim da tarde sombrio e triste (o que talvez fosse o reflexo de seu próprio íntimo).

Um dia ou outro, sempre sozinho, ele vagava pelos coletivos, praças, igrejas, raramente saía com chuva. Não gostava de molhar a roupa ou os pés, mas agora ele não tinha como evitar as poças d’água: a sandália quebrara, estava descalço. Lembrava de palavras esquisitas que nem sabia pronunciar: verminose, leptospirose, doenças que entravam pelos pés de quem anda descalço. Vira em um filme no pátio de uma escola e melancolicamente meditava lembrando que desde criança sua vida era a mesma, tudo igual ao filme: o casebre, o quintal, a lama, só que no final do filme tudo ficava limpo, colorido, até as galinhas estavam calçadas.

Apenas onze anos e no rosto a expressão de quem já sofreu tanto... Estava com um pressentimento, levantou um olhar triste e profundo ao céu, pingos de chuva caíam em seu rosto. De repente, tiros cruzaram sobre sua cabeça, ele, indiferente, continuou a caminhar. Era esse o seu mundo. Não conhecera o pai, sua mãe nunca falou de sua origem, no entanto conviveu uns tempos com o pai de suas irmãs, quase sempre violento, mal-humorado. Nas poucas vezes que ouvira dele a resposta “Deus te abençoe” ficava como que flutuando, no seu íntimo ria, olhava tudo com outro olhar e ficava cismando, sem dor, sem sofrimento. Da sua realidade o que mais temia era quando sua mãe saía. Tomava-se de medo, já esperando os gritos, os cocorotes... Por alguns anos foi assim. Até que um dia o homem não voltou mais, sumiu - dizem que foi assassinado.

Pouco sabia ler, conhecia as letras, porém muitas vezes não entendia o que estava escrito. Ia à escola para almoçar a merenda, às vezes sua única refeição do dia. Talvez nem fosse notado, a não ser por ser repetente. Não tinha motivação, era esmagado pela indiferença, o mundo parecia-lhe duro dividido.

A chuva afinava. Chegando próximo à avenida principal, um ônibus passou por ele e parou mais adiante. Ele, precipitando-se, entrou. O motorista, de olhar camarada, não disse nada.

No centro da cidade, desceu na parada em frente à igreja. Ao lado desta, um presépio gigante onde crianças e adultos olhavam com admiração. Sua atenção foi tomada pela figura de Jesus em um berço de palha. Ele sorriu, lembrou que um dia caminhando pela cidade pediu um prato de comida a uma senhora, e enquanto ele comia, ela folheava uma bíblia ilustrada e mostrou-lhe o nascimento de Jesus. Nesse momento ele lembrou dela, que se chamava Maria, alguém de quem um dia recebera afago e palavras amigas. Não voltou a vê-la, sentia no peito uma coisa que não conhecia e soltou uma lágrima. Era saudade e ele não sabia.

Voltou o olhar para as ruas onde as lojas iluminadas, as lâmpadas coloridas contrastavam com a sua realidade em preto e branco. E enquanto seus pés descalços estavam alheios ao chão frio, seu rosto encontrou na vidraça da loja de brinquedos a metralhadora desejada e, divagando, balbuciou:

- Quando eu crescer vou ter uma de verdade, vou ser assaltante de banco, ficar rico. E logo: não, prefiro ser policial igual do filme, arma e pra gente proteger as pessoas. Más seus pensamentos foram interrompidos quando dois meninos passaram correndo e jogaram pedaços de tijolos na vidraça. Ele, ali parado, estático. As pessoas olhavam, murmuravam, acusavam e ele sem entender. Só depois “acordou” em um camburão a caminho da FEBEM.