CONFIDÊNCIAS

Ela, um pouco entorpecida, levantou os olhos. O teto tão alto com as camas espaçadas uma da outra dava um quê de solidão. Estava em um hospital psiquiátrico, pedira para ser levada. Há um mês se encontrava sem forças; medo e insegurança povoavam sua mente. Via-se sem perspectiva, o eterno medo do futuro devorando o presente...

O médico chegou, era amigo. Olhou-a e disse:

- Você não deveria estar aqui.

Não falou nada, seu olhar disse tudo e no aperto de mão que ela lhe dera ele entendeu que se sentia mais segura. Conversaram um pouco, afagou-lhe a cabeça e saiu.

Ela parecia estar em casa. Levantou-se, ajeitou os cabelos e foi para o pátio que tomava toda a lateral do hospital. A lua aparecia timidamente e a noite estava fria. Alguns pacientes andavam de um lado para o outro. Uma mulher de estatura baixa parou em sua frente, olhou-a dos pés à cabeça e perguntou:

- Por que você está aqui? Você parece que não tem nada...

Permaneceu calada, encarou firmemente a desconhecida, com um pouco de tristeza, não respondeu, mas perguntou:

- E você, por que veio?

Falando confusamente a outra respondeu:

- É, toda vez que eu tenho filho... Não, foi no meu segundo quando fiz a cesária, parece que não sou eu, rebentei todos os pontos, e semana passada tive o terceiro, uma menina, fiquei agitada, rebentei os pontos da operação de novo. Olha aqui... – levantou a blusa e a cicatriz aberta estava sangrando.

- Cuidado! Não mete o dedo na ferida, vai infeccionar.

A mulher ficou quieta. Calada debruçou-se no parapeito. Maria Clara pensou nesse pós-parto, no bebê, na separação imposta pela doença e indagou:

- Com quem ficou sua filha?

- Com meu marido, minha mãe, a vizinha... Não sei.

“Pobre, com três filhos. Como não pensar na criança?”. E Maria Clara de olhos fechados pensava na criança. Falava para si: “É... muitas vezes no desenvolvimento do ser humano, acidentes de percurso como este atrapalham e mudam toda uma vida...”. Abriu os olhos, não viu mais a mulher. À sua frente, um senhor alto ainda jovem balançava a cabeça como que confirmando o que ela dissera.

- Você está certa. Você é a psicóloga do hospital?

Ela como sempre não respondeu, lançou-lhe um olhar indagativo, manteve-se um momento em silêncio e logo após perguntou:

- Quem é você? Parece uma pessoa conhecida.

- Sou jornalista, quer dizer, fui. Agora estou desempregado.

A lua sumira por um momento, e quando clareou novamente ele perguntou:

- Podemos conversar?

Ela acenou positivamente com a cabeça. Ele agradeceu. Sentaram-se em um banco de ferro. Ele pareceu recolher-se, mas começou a falar:

- Certa noite me peguei olhando o céu enegrecido cheio de mistérios. Iria fazer a cobertura de um luau, mas me isolei, sem intenção até. Na minha frente os folguedos, danças e cantorias, e eu mergulhei nas ondas ao longe que pareciam preguiçosas. As estrelas com suas luzes contínuas e instantâneas tentavam dar claridade ao tempo, uma cadente pareceu cair no mar... Acabei esquecendo de fazer um pedido. Engraçado sabe, a natureza parecia querer me absorver... Eu me deixei penetrar pelo vento que soprava do mar, pelo som da natureza. Meu olhar acariciava tudo, confesso que era como se fosse o primeiro encontro de um adolescente com a namorada, ou o perdão de uma falta cometida... Era uma conversa com Deus. Mas aí meu chefe disse: “Ei cara, estás sonhando?” E falou algo sobre a cobertura que a gente devia fazer. Eu disse pra ele mandar outra pessoa e levantei, fui caminhando na praia sem direção.

Alguns minutos em silencio, só o som de suas respirações... Maria Clara tocou-lhe o ombro e falou:

- Certamente você saiu do casulo. Alguma coisa fez soprar essa resposta que lhe surpreendeu, verdade?

Agora era ele quem não quis responder, pareciam-lhe angustiante as lembranças. Mas ela não sentiu pena e o viu afastar-se. “Foi o inconsciente que interferindo em sua vida talvez a tenha mudado para melhor”, balbuciou.

Mais à frente, prostrado, ele sentou-se em um banco. E ela respeitou sua solidão, não se aproximou caminhando pelo lado oposto ao dele.

No dia seguinte Maria Clara sentia-se só como um arbusto em uma clareira, não quis buscar ninguém, todos pareciam inexoravelmente estranhos. Ficou com vergonha de sua frágil solidariedade e pensou: “A vida é assim mesmo...”.

Fora dormir pensando nos acontecimentos do dia anterior, na mulher da operação, no jornalista.

Mudou de humor pela manhã. Foi ao terraço na esperança de rever as duas pessoas com quem conversou. Não viu mais a mulher, foi passeando, buscando outras áreas do hospital, quando entrou em um quarto cujas camas eram separadas por biombos. Nesse recinto havia uma senhora deitada e um senhor em uma cadeira de balanço, folheando uma revista.

- Bom dia! - exclamou Maria Clara.

Não responderam. Ela então se aproximou, e só assim foi notada. A porta do outro aposento estava aberta, e ela pôde vislumbrar um quadro de moldura dourada, com um retrato de um casal. Estava absorta nos seus pensamentos, quando o homem da cadeira de embalo, falou:

- É o professor que fica aí nesse primeiro quarto. Ele fala pouco, só cumprimenta.

Ela ousou dar uma espiada, erguendo as sobrancelhas interrogativas ao olhar de perto o retrato. Certamente eram os pais ou avós do jornalista, a aparência não negava. Deu mais um passo, e então, mais uma surpresa: uma farta coleção de livros. Os títulos revelavam assuntos diversos: fotografia, música, psicologia, psicoterapia, romances. Havia também alguns CDs de música clássica. Praticamente todos esses livros falam da psicologia humana, de muitos autores que escreveram sobre sua própria vida e do ser humano, sua natureza. Saiu fazendo conjecturas: “É, isso é uma grande ajuda para sua vida interior. Ele é especial”. Mas a verdade é que ela também pesquisava em várias áreas do conhecimento humano, colhendo e anotando informações importantes, como ele, ela se auto-analisava.

Acordou com a pancada d’água, a chuvarada impetuosa fez com que se aproximasse da janela, ergueu a persiana e sentiu o aroma das plantas e das flores e o ruído forte da enxurrada. Comparou o tempo com a vida: “às vezes nenhum obstáculo, nenhuma pedra, a estrada lisa, nenhuma poça, tudo conspira a nosso favor. Seria isso o reconhecimento de nossos feitos? Viver com perspectivas, com projetos... é isso, não vou ficar como um velho realengo, sempre com a mesma cantiga: ‘por que tomar esse remédio? Por que comigo?”.

Saiu para o café com bom humor, certamente ela seria uma boa ouvinte, poderia ate mesmo remexer em velhas feridas com muita naturalidade. Horas depois encontrou o jornalista, notou que a sombra triste de seus olhos se dissipara. Ficavam os dois longas horas em confidencias.

Ela o encontrou para se despedir, era o seu ultimo dia no hospital. Abraçaram-se, não falaram nada. Ele queria dizer alguma coisa, mas sua voz não obedeceu, apenas acenou. Ela saiu em silêncio, cabisbaixa. Quando levantou a cabeça, as lágrimas caíram em seu rosto.

Um ano depois o jornalista participava de uma festa literária, era o lançamento de vários livros, uma noite de autógrafos. Um título lhe pareceu interessante: “Como tirar proveito de suas fobias” - ironicamente isso o fez lembrar de tomar seu remédio. Folheando a obra, deparou-se com a foto da autora e viu que era sua velha amiga Maria Clara. Leu o prefácio, onde em destaque havia uma dedicatória que sabia ser para ele: “Para meu amigo... agradeço os momentos, as confidências, as mensagens e principalmente a fé. Nessa obra, os reflexos positivos. Obrigada”.

Pensativo, se conservou a distância, fitando-a. Percebeu o quanto a imagem dela era perturbadora. Fechou os olhos e uma profusão de imagens daquelas “férias” permeou-lhe a mente... Parecia que tudo tinha acontecido na véspera. Erguendo os olhos, fitou-a novamente, mas desta vez foi notado. Maria Clara sorriu e foi ao seu encontro. Ele tomou uma rosa vermelha de um vaso da mesa ao lado e entregou-lhe, congratulando-a pelo livro. Ela então percebeu que ele carregava um exemplar consigo.

- Será que eu mereço um autógrafo? - perguntou ele.

O sorriso dela disse tudo.