Aurora de Minha Infância

Tenho por hábito todas as tardes descer até o trapiche. Hoje cheguei mais cedo. O céu ainda estava claro, mas com tons avermelhados, e o sol quase que sumindo no mar. Nunca saí por muito tempo de minha terra, e creio que nesse momento, nenhum lugar se assemelhava a ela. Agora, na espera, folheando um velho caderno com fotos, desenhos e muitas anotações, cenários de outrora me fazem visitar os tempos de criança.

Desde a infância, o cheiro forte da maré, a saída e a volta dos pescadores em suas vigilengas e o pôr-do-sol deslumbravam meus olhos. Meu coração parecia sempre alegre: rolava na grama, subia nas árvores, colhia flores e frutos campestres. Cavava a terra para plantar e também tirar batata doce, cará roxo e cará branco.

No caderno, “muito bem desenhadas”, árvores de biribá, jaca e sapotilha; dessas mamãe dizia que a jaca era indigesta, e com açaí então... Era veneno!

Ah! Nossa infância e juventude de sonhos em um tempo onde tudo era puro, até o ar. Todos os domingos após a missa dominical eu mergulhava ao som da banda municipal que tocava no coreto da praça da igrejinha, sonhava em um dia tocar um instrumento musical. Porém, quando o circo chegava, era tempo de querer ser trapezista: plantava bananeira e ficava pendurada me balançando nos galhos das árvores. Dois palhaços em altas pernas-de-pau e dois anões malabaristas cheios de balões e enfeites coloridos percorriam as ruas convidando as pessoas para o espetáculo, gritando bem alto, e nós respondíamos com vaia:

- E arrocha moçada!

- Uuuh!

- Mais um pouquinho...

- Uuuh!

- Mais um bocadinho!

- Uuuh!

E depois eles continuaram cantando:

- Tá tudo errado, tá tudo errado, eu sei de tudo, mas quero ficar calado! Minha vó tem sete saias, todas sete de veludo, debaixo das sete saias tem um bicho...

Bem, ao cantarolar essa música andando em duas latas de leite – as quais furei e adaptei fios – levei um belo cocorote de mamãe.

Entre outras aventuras rabiscadas no caderno, está a da noite em que maninho, mamãe e eu esperávamos no trapiche a embarcação de meu pai que estava demorando a chegar. O vento soprava agitando o rio, balançando as frágeis canoas de pescadores que buscavam ganhar o pão ou pegar algum peixe para o jantar. Na água, tremulavam as linhas dificultando a pesca. Senti um arrepio de frio.

- Mamãe, vamos? Papai está demorando.

Mamãe concordou. No caminho um vizinho passou por nós indagando:

- Ainda na rua esta hora? Olha que o chupa-chupa tá atacando!

Assustada, perguntei:

- Que bicho é esse mamãe?

Ela não respondeu. Caminhamos em um misterioso silêncio, os cães ao longe latiam intensamente e eu fui ficando de novo arrepiada (mas agora era de medo). Acho que mamãe também estava com medo, porque ordenou que apressássemos o passo.

Assim que chegamos, depois de um certo tempo, alguém bateu na porta, o mano e eu nos assustamos. Era um amigo de meu pai que trouxera um recado e uma encomenda para mamãe. O recado dizia que ele só chegaria no dia seguinte. Fomos para o quarto. Logo ouvi a respiração do maninho que adormecera. Deitei e fechei os olhos, mas não consegui dormir. Levantei, dei uma olhada pela fresta da janela para ver se o chupa-chupa estava por perto. Na escuridão da noite, um pouco distante, avistei um estranho clarão - como se fizesse um caminho no céu. Depois disseram que era um tal de OVNI, fato este registrado com lápis amarelo e vermelho, à minha maneira. Esses acontecimentos mudaram completamente a rotina de nossas vidas. O exército, a aeronáutica, cientistas, imprensa, e até pessoas de outros países visitavam a casa dos que haviam sido atacados pelo chupa-chupa.

Certa vez ouvi mamãe conversando com a vizinha, ela havia ido se consultar no posto de saúde mas nem chegou a ser atendida, disse que o local “estava um alvoroço só” porque apareceram umas cinco pessoas com uns furos no pescoço, nas costas e nos braços. Eram as novas vítimas.

Na manhã do dia seguinte, cedo fui ao quintal conversar com Talita, minha cadela, como sempre fazia. E qual não foi o susto! Ela estava sangrando próximo ao pescoço! Corri até a cozinha atrás de mamãe, queria gritar, mas a voz não saía, puxei-a pela saia. Ela conta que pensou que eu fosse desmaiar, estava pálida com os beiços roxos, e gritou me balançando:

- Que foi menina?

E eu em lágrimas:

- O chupa-chupa mordeu Talita!

Ela então lavou o ferimento, que tinha três furos e disse que devia ter sido um rato. Bem, eu ainda fiquei desconfiada porque ouvi falar que umas cabras foram atacadas, então poderiam também ter atacado minha Talita...

Nessa época lembro com nitidez de minha primeira paixão: o soldado da aeronáutica. Ficava olhando aqueles cabelos castanhos ondulados ao sol, sempre com binóculo. Viera morar próximo a nós. Um dia ele acenou para mim, eu muito vermelha, baixei o rosto. Pronto, estava apaixonada. As noites para mim começaram a ficar longas e vazias, não conseguia dormir queria logo o amanhecer para vê-lo. Deixei-me ficar solitária sem participar dos folguedos da infância, mas um dia ele partiu e tudo acabou. E agora sorrio ao lembrar dessas coisas de criança e ainda por ver o desenho que fiz do soldado. É, tenho muitas estórias pra contar para filhos e netos.

O entardecer estava frio e úmido, fechei o caderno e levantei-me. Ao longe, através de uma neblina que fumegava, divisei meu barco preferido e comecei a acenar. Logo meu pescador subiria no trapiche para me abraçar.