Acredite se quiser

Há tempos que os compadres Noraldino e Carlos Eduardo estavam planejando que em suas férias fariam uma pescaria lá pras barranca do Rio do Peixe, no interior de São Paulo. O Carlos Eduardo nasceu na considerada cidade grande e já desde criança se faz urbanizado, mas adora nas horas de folga ir lá pro campo, bancar o Indiana Jones Brasileiro. Seguindo essa linha de aventura, adora também uma boa pescaria.

O seu compadre, o 'Dino' – apelido simpático do Noraldino – é um cara batuta, ponta firme; faz pouco tempo que está morando em São Paulo. Ele nasceu lá pras banda do interior de Minas Gerais, 'minerim da gema' não perdeu um só grau de seu sotaque minerês. Regionalista ao extremo, bom observador, quando contam um causo ou uma piada, ou mesmo algum acontecido, ele fica só observando, depois vem e retruca em cima daquilo que foi exposto. Não gosta de perder ponto não, detesta ficar pra trás em uma discussão! De levar desvantagem. Ele é a máxima da lei do Gerson: ‘Levar vantagem em tudo!’. Mas acima de tudo ele sempre foi um super compadre, pau para toda obra. Talvez seja por isso que ele trabalha na construção civil desde que chegou em São Paulo.

Os dois compadres nunca tinham ido juntos pescar lá praquelas bandas – local do desenrolar de alguns pescadores... Lugar dos tão almejados peixes grandes...

O local para onde iriam se alojar era uma tapera do primo do Carlos Eduardo, o Alcides. Lá é um lugar bem ermo, bem distante da civilização. Lugar simples, de um rio caudaloso, de mata virgem e densa. Só mora ali quem gosta de natureza mesmo!

E lá vão os dois compadres para a tão esperada pescaria. Após a cansativa viagem em estrada de rodagem e logo depois a difícil caminhada com mochilas e traias de pesca nas costas, atravessando brejos e pinguelas, – lugar onde nem burro de carga passa – sabiam que logo teriam suas recompensas.

Quando chegaram ao casebre do Alcides foi uma alegria imensa, tanto por apearem as mochilas e malas pesadas, como por terem chegado ao seu destino. O Alcides foi receber o primo Carlos Eduardo e o Dino com um contentamento ímpar de caboclo hospitaleiro. O Alcides é um desses matutos legítimos, neto de índio. Ele mora lá sozinho, vez ou outra vai à cidade comprar algum mantimento que falta, mas não gosta de ir à cidade não! Ali é o seu lugar. Ele tem um aspecto e biótipo franzino, pele e cabelos de bugre. A sua barroca não tem luxo algum; não tem água encanada nem energia elétrica. Ela é feita de pau-à-pique trançada de cipó e barreado com argila. A cobertura é feita com folhas de palmito juçara (um tipo de coqueiro abundante na região). A barroca tem três cômodos com piso de terra batido e no canto da cozinha um fogão à lenha enorme.

Depois de se refazerem do cansaço, já era hora de fazer a gororoba e depois conseqüentemente irem atrás dos cobiçados peixes. Da barranca dava pra ver o rio caudaloso correr ali tão perto. Para ganhar tempo distribuíram afazeres entre eles, assim as coisas sairiam rápido, pois sabiam que lá no sertão a noite cai cedo e escurece num estalar de dedos. O Carlos Eduardo foi apanhar lenha seca para fazer o grude. O Dino foi ao rio buscar água para abastecer a tapera, enquanto isso, o Alcides subiu rio acima indo buscar a canoa para pescarem embarcados. Quando o Dino voltou com os baldes d'água, chegou todo entusiasmado com a água límpida do rio. Estava ansioso para pescar.

Depois que almoçaram foi a hora deles colocarem as traias na água, hora das varas de pescas trabalharem. A recompensa enfim chegou, depois de pouco tempo de pecaria, se esbaldaram com os belos exemplares de traíras, bagres, cachorras e piaparas. Foi maravilhoso. O Dino explodiu de alegria com as grandes fisgadas. Ele disse assim para o seu compadre Carlos Eduardo:

- Óiqui cumpadi Carziduardo! Issé bão dimaise da conta, sô! Lugá mió quiném quí só lá nuistádimínass. Óia, lá si cata pexis beim maió diquistiquí.

- É compadre do jeito que você fala, lá deve ter peixes grandes mesmo!

- Ôia... Essis pexis daqui é fiote dosdilá!

- Ô compadre! Não vamos começar com lorota!

Quando apoitaram a canoa na frente da casa do Alcides já era boca da noite e estavam cansados do dia combalido. A noite veio rápido com o negrume da lua minguante invadindo o sertão. Era a hora de descansarem, e nada melhor do que um aperitivo para relaxar os músculos e alegrar o ambiente. Acenderam as lamparinas embebidas de querosene dispostas em cima da pequena mesa, e foram jantar. Fartaram-se iguais belos frades beneditinos. Descansando da ceia em torno da mesa se fazia um grande silêncio entre eles. Lá fora reinava uma escuridão total. A calmaria foi quebrada pelo coaxar clamoroso de um sapo sendo engolido por uma cobra ali perto da barroca. O Carlos Eduardo sinalizou com o dedo em riste para todos:

- Psiu!!!... Silêncio... Você está ouvindo compadre?

- Tô ouvino. Quí troço di barui é essífora, sô?

- É uma cobra engolindo um sapo... Esse Cururu coitado... Já era!

- Uai, maiqui teim cobra braba? – Perguntou o Dino.

- Se tem cobra brava?! Vi xi! O que mais tem aqui nesse cafundó é cobra brava... E das grandes!!! – respondeu afirmativo o Carlos Eduardo.

- Inda beim qui tô cu áio no borso... Óiqui, lá ni Mínassgeraise tamém teim cobra braba qui é di bitela di grandi... Dêssis beim criadinn qui comi inté homi!

- Ah! Tá! Lá deve ter mesmo! Cobra tem até lá na cidade. – Concordou o Carlos Eduardo para não desfazer do seu compadre Dino.

- Compadre Dino...

- Fála cumpadi Carziduardo...

- Olha não é pra colocar medo no senhor não, mas aqui tem cobras grandes igual a sucuri, jibóia e também daquelas bem venenosas do tipo Urutu, Coral, Jararaca... – Completou o Carlos Eduardo.

- Lá ni Mínass tamém teim... Teim inté a tar di cobra Naja!

- Mas compadre Dino, pelo o que sei cobra Naja só tem lá na África?

- Qui nadica di nada sô! Lá nu triangô minêro tamém teim uai. Dicertu arguns iscravos reberdes trazêro ni argum navir negrero dêsdi quano du tempu lá da iscravidã... I elas dicertu si arredâro lá praquéis ladu...

Fez-se um silêncio novamente enquanto olhavam a lamparina fumegando e exalando um forte cheiro de querosene ali à frente... Bocejaram repetidamente.

O Carlos Eduardo lembrou-se de um epsódio e quebrou o silêncio falando com toda a propriedade:

- Olha compadre Dino, vou contar um causo para o senhor. Diz meu tio, pai do Alcides, que certa vez aqui perto, aqui do lado do brejo de baixo, aconteceu um fato inusitado bem interessante. Certa vez um caboclo, um matuto que morava por lá, um dia bem de tardezinha foi fazer uma pescaria de lagoa ali por perto. Na volta foi passar por uma pinguela e uma cobra Urutu Cruzeiro mordeu o seu tornozelo. O veneno foi tão fatal, que o coitado do matuto mal conseguiu chegar à sua casa e morreu... – Fez-se uma pausa...

- Émêzz!... Tem cobra qui u seo venenu é fatar! Né nãn cumpadi Carziduardo?!

O Carlos Eduardo olhou para o primo Alcides e prosseguiu:

- E não acabou aí não compadre... Continua o causo Alcides, você sabe dele direitinho melhor do que eu! Senão o compadre Dino vai pensar que o restante do causo é mentira.

- É Dino!... O causo não pára por aí! O pior está por vir no que aconteceu depois!... E juro que é verdade por tudo o que é mais sagrado! Faz algum tempo que isso aconteceu...

- Rapááái tô quaise adivinhandu! Cu todu u respeitu... Pelu seos oiá, ôceis num qué mi dizê qui u matuto rezscitô? – Replicou rindo com sarcasmo o Dino.

- Não! Calmo aí Dino! Não chega à tanto!

- Uuuuu cumpadi! Tô maise liviadu.

E o Alcides continuou – A cobra mordeu o coitado do matuto e o veneno acabou lhe matando... Até aí tudo bem! No outro dia à noite foram fazer o velório do finado na casa dos familiares dele, pois aqui os corpos são velados em casa. Apenas os amigos e alguns sitiantes estavam presentes. Lá pelas tantas da madrugada, o irmão do finado foi lá fora no quintal da casa para urinar... E adivinha quem estava lá do lado de fora toda sorridente com vários colegas ao lado???

- Pelo zoiado dóceis, tô aprecebendo qui num é coizz boa... – O Dino pensou, analisou a conversa, mas como já conhecia tão bem o seu compadre arriscou indagando:

- ...Nãn Arcide! Iosscê num vai mi dizê qui era a tar da cobrinn Urutu i as culega dela tomano pincumé i pitano cigarrinn di páia?

- Bingo Dino! Quase que você acerta por completo! A cobra Urutu que mordeu o matuto lá no mato estava ali no terreiro, toda enrodilha e de cabeça erguida sobre a sua calda como se fosse uma rainha. Por incrível que se pareça ela matou o matuto e foi confirmar a sua morte lá no velório, e ainda por cima levou junto com ela a sua família e outras colegas cobras Urutus!

O Dino com toda a sua mineirês exclamou!

- Ô Arcide! Ponossinhojescristim, ocê num mi venha falano qui essi tar di treim Urutu matô u cabocrinn i foi sisti u seo velóriu, i inda levô a famía, a muié, os fióte i ótras colegas cu ela?!

- Pois foi isso mesmo o que aconteceu. Pela luz dessa lamparina que está acesa e nos ilumina! – Completou o Alcides.

- Nóóó! Ô treim doido sô!

O Dino tirou um pigarro da garganta, – enquanto os dois primos faziam uma suspensão de palavras e olhares perdidos no vácuo – Olhou com desdém para baixo picando uma porção de fumo com o seu canivete contra o polegar; coçou o queixo e alisou a barbicha ao mesmo tempo... Balançou a cabeça em sinal de afirmação para consigo...

- Émêzz!!!... É teim coizz quicunteci qui num dá neim pra aquerditá! Prinzparmente cu essas cobras venunosas... Némêzz cumpadi!.. – Discorreu o Dino terminando de enrolar o cigarro de palha e ascendendo-o na labareda do lampião.

O marasmo persistia na beira da mesa, enquanto a coruja rasga mortalha piava agourenta irrequieta lá fora, e o Dino dava a sua primeira baforada no cigarrinho de palha soltando a fumaça para o alto.

Nesse momento lia-se no pensamento do Carlos Eduardo que pelo o tanto que conhecia do seu compadre Dino, ele não iria deixar por menos e logo viria chumbo grosso! – E ele não errou! A réplica do Dino veio de uma forma bem sutil e rápida:

- Oi! Ocêis préstençã qui vô cuntá um cáuzinn procêis qui asveiz, ôr mio, dizqui sempri acuntecê lá ni Jizifora, interô di Belzont, lugá doncovim deusdi quitôqui in Sun Paulu. Ocêis sabi qui cobra venunosa é u qui mais teim lá praqueias banda. U pessoá di lá jura qui lá teim uma cobra, qui nun mi lembru u nomi dela, qui é umdasmai venunosa duniverso; i qui ela nun gosta di moíá u seo venenu pramódi di nun istragá eli. Óiproceisvê: diszelis qui essa cobra quano pramódi di travessá u rir, nadá, ôr mêzz bibê ága; ela escoiê uma fôia di planta beim lizinn – di preferênça uma fôia di tamanhu maió i larga – i cu jeitinn dá uma abrida naszuboca esticano suas mandibas, i culoca sortano u seo venenu na fôia qui escoiê. Adispois ela vai, travéssa u rir, si discamba i dá suas vortinn pur lá, e quano vorta cansada cu sedi, bébi sua ága tranqüimenti. Adispois di discansada di seo passeiu, pozciona as suas mandíbas sobri u seo venenu i poim novmenti pra suas prezsas o líquio tudinn pô seo lugá di orige. Oiá! U pessoá di lá tá zarôio di ispiá u treim acuntecê cá cobra. I juram ponossinhora di pé juntinn qui é di vera sô!

O Carlos Eduardo olhou de rabo de olho para o primo Alcides, soltou um suspiro, e não se conteve rindo iniciando uma contestação.

- Ôpa! Ôpa! Ôpa!... Espera aí o compadre! Não força a barra, pela nossa santa amizade e consideração pelo meu afilhado! O senhor está dizendo que lá em Minas Gerais tem uma cobra, que quando ela quer, guarda o seu veneno na folha das plantas, e depois recupera todo ele novamente a hora que ela assim desejar? Na hora que ela quiser? Desculpe compadre! Mas aí você forçou na mentira!

No que o Dino falou com toda a sua voz mansa e dono de si, aludindo tudo aquilo que até então ali tinha sido discorrido.

- Uai sô cumpadi! Num gózz nãn! Pruquê u treim di sua cobra Urutu podi matá u caboclinn issistí u velóriu du difunto cu famía i colegas; i a minha cobrinn nun podi fazê a façanha di guardá venenu na fóia i dá umas voltinn pur aí à fora!?

O Carlos Eduardo olhou para o seu o primo Alcides... Fez-se um silêncio entre eles... O Alcides bradou:

- É, vamos deitar pessoal que estamos todos cansados... Amanhã tem mais!

Com pequenos sopros apagaram as chamas das lamparinas e foram dormir. Já agasalhado em sua cama no beliche de baixo, o Carlos Eduardo discorria consigo:

- “Cobra que guarda veneno?! Não tem cabimento!... Só por Deus!”.

Enquanto isso no beliche de cima, o Dino em pensamento não se conformava com a tamanha cara de pau do compadre Carlos Eduardo e do seu primo Alcides:

- “Cobra tomano cafezinn cum famía ni velóriu!!! Ié só u qui fartava?!”.

De volta para a capital Paulista, às vezes que os dois compadres se encontram em algumas festas ou em conversas nos botequins, a chacota entre eles é grande, mas com um respeito mútuo... Dizem os amigos mais íntimos que ouviram uma conversa dos dois compadres combinando uma outra pescaria, desta vez lá em território do Dino, no estado de Minas Gerais:

- Ô cumpadi Carziduardo...

- Fala compadre Dino...

- Oi nóis pudía marcá otra pescaria pras próxias férias lá nui interô duistádimínass!... U qui ocê acha?

- Acho boa idéia compadre! Só que nós devemos ir primeiro à um Pároco para nos confessarmos!

- Pruquê cumpadi? ...Ocê índa acha qui sô mintirosu?!

- Não compadre Dino! É só por precaução... É só por via das dúvidas!...

E depois de confessados e almas lavadas temporariamente, os dois compadres marcaram uma outra pescaria para o próximo ano lá pras bandas do interior de Minas Gerais.

Marcos Antony
Enviado por Marcos Antony em 22/11/2009
Reeditado em 23/11/2009
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