Borboleta-Bruxa

Minha filha mais nova – batizada Isadora em homenagem à bailarina norte-americana, Angela Isadora Duncan - olhou-me de um jeito sapeca. Diante daquele olhar, percebi imediatamente que lá vinha bomba outra vez. Em seguida ela soltou aquilo que me pareceu ser uma espécie de ordem nascida diretamente da nossa relação de pai e filha:

- Mata o bicho, pai!

Por trás do meu ombro esquerdo, pousado no canto superior do armário da cozinha, avistei um pequeno inseto de asas roxas e corpo ligeiramente arredondado. Era um digno representante da espécie lepidóptera ao qual usualmente chamamos de borboleta-bruxa. Do auto daquele armário - pude ver muito bem! - o bichinho assistia impassível tanto ao jogo da vida quanto ao nosso joguinho de baralho. E antes que eu pudesse dizer “sapo de fora não ronca”, minha filha repetiu a sua fala num tom de voz ainda mais veemente e ordenatório. Com certeza percebera que eu não ia mesmo me mexer do lugar onde estava nem fazer o que ela pedia.

- Mata o bicho, paieeeê!

- Mas – Isadora – porque matar o bichinho? É uma inofensiva borboleta e não está fazendo nada que não seja viver e deixar viver, respondi, recordando-me dos meus tempos de professor de história e de uns velhos pensadores franceses que pregavam um tipo de pensamento semelhante.

- E, pensa bem! – continuei, tentando ganhar tempo e obter uma boa razão que me impossibilitasse definitivamente de me mexer do lugar onde estava - agindo assim estaremos cometendo uma terrível ação contra a mãe-natureza e a vida em qualquer de suas formas...

- Pai, deixa de lero-lero e mata logo esse bicho antes que ele venha pro meu lado! Olha que ele já está até olhando pra mim! E, aliás, não é bi-chi-nho não e nem inofensiva borboleta, mas bicho mesmo, bicho medonho, animal peçonhento, horrenda mariposa e bruxa horrorosa...

Estávamos os dois naquele momento disputando uma agitada partidinha de buraco, uma das nossas manias nessas férias de 2009. Digo assim por que a cada ano inventávamos uma mania diferente e interessante: no ano anterior passáramos muitas tardes num venturoso pedalar de bicicletas – as bikes, como dizia minha pequena - por toda a garagem do prédio onde morávamos.

Ao cair da tarde púnhamo-nos a desafiar os rigores dos costumes do nosso edifício, os automóveis estacionados na garagem e a dura lei imposta por Dona Emengarda, a terrível e mau-humorada síndica do nosso condomínio.

Num ano mais longínquo ainda – tínhamos acabado de ganhar a nossa cadelinha Mel! - o divertimento era descer à rua e caminhar por algumas quadras de nosso bairro, possibilitando que a cachorrinha deixasse pelo caminho os resíduos de suas necessidades. Este ano, porém, fora o buraco – ou a “biriba”, como dizem os mais velhos – que se tornara a nossa predileta diversão.

Mas não é que aquela bruxa-borboleta surgira na hora exata em que eu me preparava para descer uma belíssima canastra? E aparecera justamente naquele momento especial em que eu declarava em alto e bom som a natureza dos meus primeiros duzentos pontos.

Era meu costume nesse momento do jogo desabafar sempre com a mesma fala: “você sabe que eu te amo muito, não é Isadora, é claro que sabe! Mas sabe também que no jogo e no amor vale tudo e que mesmo a nossa relação de pai e filha não pode e nem deve interferir na seqüência natural do jogo, não é mesmo?! Então é por tudo isso que neste exato momento eu vou descer essa linda canastrinha e iniciar a minha feliz pontuação.

Tudo o que vai acima foi o que eu imaginei dizer naquele momento se as coisas tivessem transcorrido como deveria ser. Mas o que eu realmente disse naquele meu jeito arredio de mineiro foi o seguinte:

- Uai, Isadora, que vocabulário rico e criativo você está usando para falar de um inseto tão inofensivo. Afinal, com quem você andou aprendendo palavras tão difíceis?

- Pai, você se esqueceu que eu sou filha de escritor e escritora?! Tendo um pai e uma mãe que - vira-e-mexe - se põem a escrever histórias, muito me admira se eu não me utilizasse de algumas palavras esquisitas e um estranho modo de falar.

Decerto que ela devia ter alguma razão naquilo tudo. Enquanto tudo isso acontecia - a biriba seguia a pleno vapor. Entretanto, não é que de repente levanta-se a menina da mesa, segura o pequeno inseto entre os dedos e o lança corajosamente pela janela da cozinha rumo à liberdade e ao desconhecido.

Então ela olha para mim e solta essa outra:

- Você sabe que eu te amo muito-muito, não é papaizinho querido?!

Pressinto neste momento que algo de muito especial vai acontecer, tipo quase a chegada do homem à lua ou o pouso de uma nave alienígena diante dos nossos olhos atônitos. Então eu acompanhei o gesto seguro das mãos da menina a buscarem, ávidas, um sete de ouros que eu acabara de lançar sobre uma pilha de cartas depositadas no centro da mesa. Ainda tive tempo de responder:

- Claro que sei minha filha! Filha de peixe, peixinho é! E amor com amor se paga! E saiba você que eu também te amo muito do fundo do meu coração, meu docinho de batata doce com açucar, meu brotinho de feijão, minha aboborinha, meu cafezinho com leite, meu...

- Chega pai. Mas como você tem o costume de dizer: na vida e no amor vale tudo, não é mesmo...

- Com certeza, meu benzinho, meu docinho de...

- Pois então é por isto que eu vou descer já-já essa canastrinha real de ouros que acabei de formar com o sete de ouros que você me entregou e que estava quentinha quase queimando as minhas mãos. São quinze lindas cartinhas que vão de um As ao outro e que me deixarão neste momento com uns belos pontinhos de dianteira, garantindo uma alegre e consistente vitória!

- Hum...?!

Segurem-se em suas cadeiras, companheiros e companheiras mamães e papais de toda e qualquer espécie, deste ou doutro planeta qualquer: aquela pirralha que mal acabara de sair das fraldas havia simplesmente me vencido no jogo! Mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ainda tive que ouvir mais essa:

- E quer saber quem está vindo lá de longe, paizão, sorrindo e acenando... Quer saber: é a vitória. E presta atenção nela: como é doce o sorriso da vitória, como é doce-doce, é mais doce que o doce de batata doce, mistura assim de mamão doce com mel de abelha, docinho-docinho da Silva Xavier...

O certo é que no céu das criancinhas sorridentes e dos escritores sonolentos, somente os anjinhos gordos e sapecas é que se apresentam com aquele jeitinho malandro de encarar a gente de frente...