A cruz branca da estrada.

Não precisa correr tanto; o que tiver de ser seu às mãos lhe há de ir." Machado de Assis

Já havíamos percorrido mais de légua. Não poderia estar errado. O homem que, com a foice em punhos, limpava o pasto à beira do asfalto, havia dito com todas as letras da sua simplicidade, que a entrada para Panorama era a primeira após a reluzente cruz branca, postada à beira do asfalto, que é ladeado de eucaliptos. Resolvemos parar e olhar toda aquela vastidão de grota. As taboas reverberavam à espetacular luz das dez horas, marcando verdejante o caminho do córrego Bley. O pasto, em setembro, é seco. Eram morros e morros estorricados. O gado se ajuntava a pastar o resto de verde na baixada onde havia uma porteira. Um casebre de aspecto secular, de estuque, telhado encardido, encravado, entre uma portentosa jaqueira e uma vistosa touceira de bambus, dava pista de humanos, brotando uma rala fumaça branca da chaminé.

Falei – “pai – vamos perguntar lá, se a gente está mesmo a caminho de Panorama”. “Ô de casa, ô de casa” – gritei. Saiu uma mulher com uma menina de uns quatro anos, grudada ao seu flanco esquerdo, segurada a um braço só. Meu velho deu bom dia. Eu disse olá. Solícita, disse que estávamos no caminho certo. Deveríamos passar pela porteira e subir a ladeira. Panorama estava a uns vinte minutos de pé – falou a dona da casa. Meu pai é do tipo que não se satisfaz com pouca conversa, mesmo que não venha à circunstância. Indagou a Marizete – assim que ela se chamava – se ela conhecia o Juarez, lá de Panorama. Ela respondeu que conhecia quase ninguém. Tinha chegado com marido e cinco filhos ali, na última “panha” do café, e ficaram pra cuidar do gado.

A “gastura” já me vinha. “Vamos embora, pai?”. Queria chegar logo no nosso destino. Pra mim, aquele carro empoeirado, aquela estrada de chão, aquela erma vastidão, era-me um mundo estrangeiro. Tomamos o rumo indicado, sem não antes ter que espantar uma vaca que, preguiçosamente, deixava sua obra em forma de um estrume mole, no rústico caminho.

Estava certo. A casa do Juarez tinha uma antena parabólica apontada para o morro que tinha um retalho de mata salpicada de prateadas imbaúbas. Era ladeada por um quintal de terra batida, que chamam de terreiro, com uma mangueira de uma altura pouco comum.

Ao barulho do motor do carro, saiu uma mulher de meia idade. “É aqui que morra o Juarez?” – perguntou meu pai”. É, mas ele não está em casa não – respondeu a mulher.

Meu pai puxou conversa, esticou conversa, desfiou uma lista de gente da qual ela sabia de todos e de alguns que até já haviam morrido. Aos mortos, sempre um espanto do meu velho: “Não me diga?” A prosa produziu alegria. A mulher lembrou de tudo. Ela era filha do Altoé e se casara com o Juarez. Meu pai disse que o mundo era pequeno. Eu pensei “Rio Bananal é pequeno”.

A senhora Amélia Altoé Grassi, convidou-nos para almoço. Agradecemos. Tínhamos pouco tempo. Tínhamos que passar na sede do município para resolver uma “papelada”. “Mas um café vocês vão tomar!” – Instou a generosa senhora. Um queijo curado num prato, noutro um verde (ela disse que era verde, mas era muito branquinho) e uma broa que derretia na boca, junto aos goles de café de sabor bom, que meu paladar desconhecia.

No meio da animada prosa, ouvi um pio de japira. De japira sabia que fazia um ninho de galhinhos e ciscos, numa forma de coador de café. Já fazia muitos anos que Romildo, um menino “encapetado” da minha escola primária, tomou um golpe de ponta de guarda-chuva, por ter zombado do afro cabelo da menina Gilcéia. “Ninho de Japira, ninho de japira, ninho de japira!” E o guarda-chuva pontudo fez brotar sangue do cangote do besta.

Pedi licença, queria ver a japira. Dona Amélia disse que a ave fizera o ninho na mangueira, ali no terreiro, que fosse lá que veria. Perscrutei galho a galho da alta árvore e, realmente, estava lá, muito mais belo que o cabelo do Romildo.

Retornando, estava a senhora mostrando o álbum de fotografia da família a meu pai. Uma bela filha, numa beca de formatura – “É a minha filha mais nova. Formou-se há dois anos e é chefe da enfermaria do hospital aqui do Bananal.” Noutra foto gente paramentada de casamento. Uma noiva divina. Era a filha mais velha, casada há cinco anos.

Guardou aquele álbum e retornou, um tanto triste, com duas fotos de um rapaz. Um rapaz de físico bem formado, talvez um metro e oitenta, por aí. Bochechas rosadas sob um par de raros olhos azuis. Com a voz cinzelada de nítido sofrimento, disse – nos que aquele era o Renzo, seu filho caçula. Há dois meses, vindo de uma festa à noite, pilotando uma moto, perdera a vida. Lá no asfalto, ladeado de eucaliptos, um pouquinho antes de entrar na estrada para Panorama. Era o morto da cruz branca.

Desde então, as cruzes de beira de estrada me dizem muita coisa. Mas não fico triste. Elas me dizem não corra Joel, não morra Joel. E soa como conselho de mãe.

Imagens e música do texto acima no blog: www.cronicasdojoel.blogspot.com

Uma das mais belas canções(vídeo) : Bohemian Rhapsody, do QUEEN.

Joel Rogerio
Enviado por Joel Rogerio em 27/07/2006
Código do texto: T203357