FEITO JOIA BRUTA

FEITO JOIA BRUTA

Pedro Borges, não tinha mais que quinze anos e já era órfão de pai quando o conheci. Tinha pernas de alicate, corpo entroncado e braços curtos, era forte como um pai de chiqueiro , nome que ele mesmo se autodenominava para definir sua força física, era o mais velho da turma. Sentava na última fila da sala de aula, encostava a cadeira na parede e ficava semideitado, essa sua irreverência já lhe custara uma suspensão, mas não dava jeito, “O menino era um capeta”, dizia dona Rosa, professora de Português. Na hora do recreio sempre sobrava cascudo pra um e pra outro. Eu ficava de longe, observando os passos do bode velho, se chegasse muito perto, tratava logo de ir para o outro lado do pátio, e se levasse merenda, comia às escondidas do peste. Quando reclamava em casa, ouvia os piores dilemas da vida, Se brigar na rua leva surra quando chegar em casa, dizia calmamente minha querida mãezinha, já meu pai era mais tático, dada à sua experiência militar de vinte e cinco anos no exército, dizia em voz grave, Se não pode com o inimigo filho, passe para o lado dele. Mas como uma formiga pode enfrentar um cascudo, ou um cordeiro ficar amigo da onça.

Mas foi na quadra, na aula de educação física que o bicho pegou, quer dizer, que eu fiquei amigo e escravo do “capeta”. Como de costume ele sempre chagava atrasado para as aulas, e nesse dia ficou fora dos dois times de futebol, o professor disse que ele não jogaria naquele dia como forma de punição, instintivamente, ou sabe Deus talvez sagazmente, interpelei a favor do retardatário, dizendo que ele era o único ali que trabalhava e tinha motivos para o atraso, além disso, meu time estava incompleto, deixasse esse castigo para outro dia, o professor hesitou por alguns segundos, o time, espantado e surpreso com o que acabara de ver, demorou a responder, mas foi unânime o apoio com gritos e assovios histéricos. O juiz relaxou a sentença, e o “réu” jogou, nessa tarde não me lembro quem ganhou, mas acho que todos. Também não houve quebra-quebra, nem joelhos e canelas inchadas. No dia seguinte ele sentou do meu lado, e dali por diante viramos quase amigos. “Quase” se não fosse por sua brutalidade, e mania de distribuir cascudos por toda a sala, criando clima de pavor geral.

Pedro Borges não fazia mais as tarefas de casa, não precisava, tinha agora um bedel particular, ele não mexia comigo, por outro lado, era praticamente obrigado a responder todos os seus deveres, que ele chamava de trabalho de equipe, e depois me dava um tapa amigável nas costas, dizendo, É isso aí cabeção, e nem adiantava pedir pra que não me chamasse assim, a coisa piorava. Um dia o capeta se apaixonou pela Carminha, uma garota calada, dessas que responde a todas as perguntas do professor, anda o tempo todo com um livro grosso embaixo do braço, não olha para os lados, no recreio aproveita para ler enciclopédia na biblioteca, e quando termina a aula sai indiferente ao resto da turma, não era orgulhosa não, era tímida de dar medo, tentei por duas vezes me aproximar dela, mas sem nenhum sucesso, desisti das empreitadas. O Borges só precisou de uma tentativa de aproximação e já conseguiu namoro, a turma ficou surpresa com o relacionamento dos dois, o Zé Flor garantiu que tinha sido algum tipo de ameaça que ele fizera para a coitada da Carminha, não tinha outro jeito, já o Manoel Veras apostava em trabalho de vodu, era o que ultimamente andava lendo na biblioteca para fazer um trabalho sobre a cultura africana, outros acreditavam que a garota “não batia muito bem da bola”. Certo, certo mesmo, é que a partir dali tudo mudou da água para o vinho, os cascudos sumiram, as ameaças de surras desapareceram, e a minha escravidão virou desabafo, e o capeta virou poeta lírico, vez e outra rascunhava poemas declarando sua paixão incomensurável por Carminha, eu fazia às vezes de editor, porque ele dizia que não tinha o Português muito aprumado. A Carminha, esta não mudou em nada, continuava tímida de morrer, quer dizer, tímida ou sonsa, não sei bem direito, fiquei em dúvidas depois de observar por algum tempo.

Borges melhorou as notas, não faltava mais às aulas nem chegava mais atrasado, estava sempre limpo e de cabelo penteado, o perfume tinha essência de floral que infestava a sala toda, colocamos apelido “peido-cheroso”, e quando não estava com a Carminha na biblioteca, ele era visto constantemente pelos cantos do colégio com uma caderneta nas mãos, escrevendo versos e mais versos que, depois, eu tinha que ler e reler, recorrer ao pai dos burros várias e várias vezes para dar sentido às suas próprias palavras, complicadas para aquele adolescente que não era exatamente exemplo de leitor, e nem sequer fazia suas tarefas de casa. Versos como olhos betônicos que te espreitam, corpo quimérico dos meus sonhos e fantasias, luz fleumática que me atrai e outras coisas que não sei de onde, de repente, começaram a fazer parte da vida daquela criatura bruta e delicada, como uma joia inacabada, bruta.

As férias de julho eram um alívio de verão, e este era o primeiro domingo do mês. O rio Parnaíba estava secando por causa da estiagem, nesta época o Velho Monge oferecia uma areia limpa e branca no seu leito, era como se fosse uma praia de Copacabana do interior, ficava lotada de gente aos domingos pela manhã. Do lado de cá apenas uma corrente de água com um pouco mais de vinte braças ou cerca de cinquenta metros separavam a enseada da margem do rio, muitos banhistas atravessavam a nado, dispensando a segurança dos barcos que iam e vinham o tempo todo sem parar. Carminha avisara que chegaria cedo para não pegar o sol muito quente e não ter problemas com insolação porque tinha a pele muito delicada. Borges acordou nesse domingo mais alegre que nos outros dias, tentou escrever alguns versos, mas não conseguiu, estava ansioso demais para se concentrar em alguma coisa, exceto no encontro que teria logo mais, também era o seu primeiro encontro com Carminha fora do colégio, e o sol estava uma maravilha, o céu limpo limpo com seu azul celeste digno de um poeta apaixonado.

Antes de atravessar o rio era costume de a rapaziada fazer um esquenta couro nas barracas que ficavam à margem do rio. Seu Antônio já era avisado com um dia de antecedência, preparava duas arengas na grelha e uma garrafa de Mangueira com embiriba , dali ficávamos fitando a paisagem natural das mulheres, dando notas numa escala de zero a dez, a Pretinha do brega passou com nota sete, a Carminha passou com nota nove, a filha do Zeca do armazém passou com dez, a professora Candinha foi até bem cotada passou com nota seis, pior que a Pretinha, mas a filha dela foi nota dez. A Socorrinha não teve nota em consideração ao seu irmão Calhau que estava na roda da amizade e era quem pagava a conta, uma troca de olhares foi o suficiente. Do outro lado da rua o Pedro Borges chega soltando um grito que parecia feito louco, jogou a bicicleta num barranco e saiu correndo em direção ao rio, apenas de calção de banho, de tanta felicidade, nem percebeu que estávamos ali bem pertinho. Saltou da ribanceira cortando o ar que nem andorinha de verão e foi cair longe, demorou alguns segundos para retornar mais além do local onde saltou, levantou um dos braços e tornou a desaparecer nas correntezas, momentos depois reapareceu com um grito, abafado pela água que já lhe cobria metade do rosto. Aquele fora o derradeiro suspiro de uma vida curta e apaixonada. Gritos de AJUDA, AJUDA, FOI CÃIBRA, ecoavam de todos os lados. Alguns minutos depois os pescadores locais conseguiram achar o corpo frio, já muitos metros de distância da enseada. A Carminha chorou, todos os amigos choraram, eu também chorei, mas só por dentro.

Quando as aulas se reiniciaram imaginei encontrar a cadeira vazia do meu lado, mas para a minha surpresa a Carminha sentou-se na mesma carteira que era do Borges, abriu sua mochila entulhada de livros, estendeu a mão e me entregou uma folha de papel com alguns versos, em cima estava um título sublinhado, tão complicado quanto os versos do Pedro Borges, NEFELIBATA.

Leandro Dumont
Enviado por Leandro Dumont em 11/02/2010
Reeditado em 12/02/2010
Código do texto: T2081927
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