O VENDEDOR DE REDES

O VENDEDOR DE REDES

Olhava e sorria, sorria e olhava, não fosse aquele olhar lindo brilhando a noite inteira, a tertúlia teria sido um fiasco, um pé no saco, sim, porque aquele incompetente do Lourival me fez o favor de se embriagar logo sedo, antes mesmo do intervalo, um vexame, o traste não parava quieto, pegajoso, abusado, um inferno mesmo,tentou beijá-la duas vezes, até que não aguentou, sentou na cadeira ao lado e adormeceu. Burro, burro, burro mesmo. Ela olhava por cima dos ombros em cada contradança, piscava levemente para mostrar descaramento, depois sentava longe das amigas, fingia timidez e sorria, mudou de lugar por duas vezes para ficar frente a frente, puxou a saia justa para cobrir um pouco mais as pernas, que mesmo à distância eram lindas, e as cruzou com elegância, sem lance, apoiou o cotovelo direito no joelho esquerdo e repousou o queixo no punho, inclinando a cabeça para a frente, era sinal de provocação, eu sabia, aquilo já era demais, tinha que tomar uma atitude, ser viril, fazer jus ao domínio masculino, mostrar quem manda, tascar um beijo quente naquela boca carnuda, apertar aquela cintura de encontro ao império falo, atravessar aquelas coxas e descobrir mares de mistérios aos quatorze anos, mulher bonita igual aquela nunca mais arranjaria, claro, isso tudo era apenas uma fantasia, mas precisava me autoencorajar e encorajei. Levantei com ímpeto de desbravador repleto de coragem, El conquistador, um bandeirante das Entradas e Bandeiras, mais bandeira do que entrada, digamos assim. Todavia, aquela sua postura insistente, e um tanto irreverente, acabou por me colocar nas reminiscências a imagem do pensador de Rodin, maldita aula de arte, se não me ajudas, pelo menos não me atrapalhes, onde já se viu comparar um monumento daqueles a uma arte fria, sem alma. Pronto, foi-se a concentração, adeus conquistador, adeus desbravador, adeus tudo, melhor mesmo era tomar uma pra criar coragem antes que ela desistisse, mas talvez não fosse uma boa ideia, ficaria cheirando a álcool na hora do beijo, um beijo, eu falei beijo, meu Deus, nunca beijara a boca de uma garota, e se não soubesse, e se mordesse sem querer, e se não soubesse de que lado curvar a cabeça, e se esbarrar no nariz, quem beijava a língua de quem, não conhecia as técnicas do beijo, nem ao menos sabia que existiam, essas coisas não se sai perguntam por aí. Mesmo assim não desistiria, frouxo não sou, esperaria pela próxima música, dançaria coladinho ao corpo dela com as mãos espalmadas naquela costa lisa, sussurraria ao ouvido com os lábios colados ao lóbulo, cheiraria aquele pescoço perfumado bem perto da nuca, se ficasse arrepiada é porque estava no caminho certo, e roçaria meu rosto ao dela, deixaria que ela sentisse o meu coração acelerado, enlouquecido de paixão. Ah, aquele corpo, aquele rosto, aquele olhar insinuante, sinuoso, convidativo, meu Deus, era tudo que eu sonhara até então, era a mulher dos meus sonhos, quer dizer, nem sei mesmo se já tivera sonhado com alguma mulher igual àquela, mulher, mulher, mulher fica muito forte, ela era uma garota, acho que tinha a minha idade, talvez mais velha um pouco, as mulheres enganam muito com essa coisa de idade.

Aquele ti-ti-ti com as amigas, cheia de gestos exagerados, falavam de mim, apontavam, se fosse um mosquito para saber, mas nem precisava, moleirão é o que sou, um moleirão, mas se ela fizer aquilo de novo não tem escapatória, onde já se viu homem dessa qualidade, pra minha sorte o Lourival tá morto, mortinho de bêbedo, pra não correr notícia de má fama, dorme desgramado enquanto eu aproveito. Nossa, adoro essa música, agora eu vou lá, é a minha chance, é hora de mostrar o meu valor, só quero que ela se afaste daquelas amigas pegajosas, conversam sem parar, nunca vi coisa mais impertinente, galhofeiras é o que são, andam sempre em bandos, tramam nos banheiros, mas não confiam inteiramente umas nas outras, disputam o mesmo prêmio entre si, constantemente, e se intrigam depois. Acho que ela perdeu o interesse, não olha mais como antes, não era para menos, com tanta moleza é de se pensar que viro a mão, agora quem quer sou eu, virou uma questão de honra, vou lá nem que seja pra desfazer o mal entendido, se é que há algum. Caminhei firme, Aceita essa contradança, ela não respondeu, pegou a minha mão e me arrastou para o meio do salão, jogou os braços por cima dos meus ombros, olhou bem nos meus olhos enquanto eu a abraçava timidamente, era ainda mais bonita de perto, uma acne despontava no alto da testa disfarçada por uma camada fina de pó e um cabelo liso extremamente negro como ébano. Ela sorriu levemente e encostou seu rosto ao meu, apertei um pouco mais o abraço, o coração disparou, um calor forte invadiu aquele salão, mas as mãos estavam frias e suadas, comecei a transpirar, ela afastou o rosto e me olhou mais uma vez, um beijo tímido saiu quando a música parou e foi anunciado o final da festa, num ato quase de desespero segurei a mão dela corajosamente, ela olhou para as nossas mãos e achei que estava tudo perdido, sorriu só com os lábios, e andamos assim até a praça principal da igreja matriz. Não precisamos das palavras durante muito tempo, o silêncio só foi quebrado para nos descobrir como seres de uma ficção saídos de um livro que contava uma linda história de romance medieval.

Socorrinha era o nome dela, morava com as tias, tinha chegado recentemente à cidade a mando dos pais, a fim de livrá-la de um relacionamento passional com um vendedor ambulante bem mais velho. Jurou que não sentia mais nada por ele, era tudo besteira dos pais, mesmo assim ficaria aos cuidados das tias e estudaria na Unidade Escolar Filinto Rêgo, tal foi minha alegria, fiquei maravilhado com a idéia de encontrá-la logo na segunda-feira, era muito bom pra ser verdade, combinamos de nos encontrar no pátio das salas técnicas, lá era mais tranquilo, podíamos conversar à vontade, depois mostraria o colégio para ela. Esperei a manhã toda, a cada intervalo corria para a área Técnica-Comercial, ficava olhando de um lado para outro, escondido por detrás das paredes que dividiam as salas, corria risco não sei de quê, afinal não estava fazendo nada de errado, ou será que estava. Fiquei com aquele ar de mistério meio bobo, as horas se passavam, a última aula foi anunciada, voltei para a sala como se tivesse perdido algo valioso, triste, uma melancolia avassaladora tomou conta de mim, não conseguia levantar os ombros, o olhar, nada mais fazia muito sentido naquele instante, a aula acabou sem que eu me desse conta, lutava para entender, quando duas cutucadas do Lourival me acordaram ainda meio tonto, O que é que tu tanto imagina aí dentro dessa cachola, não te encontrei nos intervalos, não prestou atenção às aulas, não foi à praça da matriz no domingo, o que tá acontecendo, é comigo é, se for diz logo que a gente resolve, nossa amizade não foi pega de arapuca, diz logo, fui eu que fiz besteira na tertúlia do sábado, não foi, se foi peço já desculpas, mas tu sabe como eu sou, quando bebo faço merda, diz logo. Ele tinha razão, eu estava agindo feito um idiota apaixonado, então era assim que agia essa coisa da paixão, fazia a gente de tolo, esquecia os amigos, não ligava mais pra nada e depois deixava a gente na mão. Não é nada com você não, é coisa besta minha, fico assim do nada, já já melhoro com o brilho do sol, Ah, assim é que gosto de te ver, meu intelectual anônimo ah-ah-ah-ah, poeta sem causa, pensei que tudo isso era por causa daquela bruaca gostosuda da tertúlia, hoje cedo passei em frente à casa dela, dela não, das tias dela, tava um alvoroço danado, dona Júlia exasperava-se com a irmã, dizia que ela era a culpada e que filha era responsabilidade de pai e mãe, não de tias solteironas, fosse ela atrás da menina, dona Julieta só chorava aos lamentos, E agora, e agora, que que eu digo pro Justiniano. A menina saiu bem cedo, era escuro ainda, foi de mala pronta, dizem que fugiu com um vendedor de redes, era mesmo uma boa de uma bisca, vendedor de redes hum-hum, tem lógica, tem.

Leandro Dumont

26/02/2009.

Leandro Dumont
Enviado por Leandro Dumont em 13/02/2010
Código do texto: T2085015
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