CARRO DE BOI

CARRO DE BOI

Há nas histórias infantis de todos os tempos, aos magotes, histórias de gênios, fadas mal interpretadas, duendes, curupiras e de seres reais que, de uma forma ou outra, influenciam as fantasias e, com essa influência, interferem na própria filosofia de vida de crianças e adultos. Não é somente uma influência pertinente a uma determinada classe social. Desde o aprendiz da vida ao escolado, já calejado em assuntos dessa natureza, todos sentimo-nos atraídos pela fantasia. Desejamos seja-nos útil tal ou qual situação de enriquecimento ou de ajuda em qualquer situação nas diferentes situações da vida tal crença, a que aprendemos dar valor e respeito desde os tempos de criança. Dando um exemplo explícito, basta acumular a mega-cena que as lotéricas enchem-se de pacientes filas com o fito único do enriquecimento relâmpago. Quem nunca viu esse fenômeno há de tê-lo viste neste último sábado e o verá na semana que iniciamos hoje (domingo), “se a fada madrinha” não houver esquecido sua varinha de condão em casa, ocasionando um novo acúmulo dessa linha de loterias. É uma situação real, mas, não deixa de ser uma fantasia, haja vista os milhões de apostadores que desejam acertar as mesmas seis dezenas.

Mas falávamos de ajudas extras dessas entidades fantasiosas. Com os pés no chão e a razão dando-nos guarida, havemos de concluir que a única coisa com vistas ao progresso, o que nos vale mesmo, é o trabalho. Para o bem ou para o mal, é o trabalho que construiu os grandes feitos da história. Poderíamos enumerar centenas de exemplos, mas, vamos ater-nos a um somente. Pesquisei horas e horas a internet (quem sabe não acessei a página certa), mas nada encontrei a respeito do fato. Já na minha madureza ouvia uma determinada canção do cancioneiro sertanejo, relacionada ao carro de boi.

Ele era um colono pobre, de minguadas terras, sem estudo, mas trabalhador. Tinha um filho que vivia sentado nalguma sombra lendo os poucos livros de que dispunha a casa, isso quando seus afazeres de filho de agricultor não ocupassem seu tempo. Ganhava o sustento da família fazendo das lides da roça seu ofício. Um velho carro de boi, com dois guapos bois a puxá-lo, supria as necessidades da família no transporte dos cereais colhidos, da roça para o paiol. Para o transporte das sobras da safra, que levava à cidade para transformar em alguns trocados, também utilizava esse veículo, de larga e tradicional utilidade no interior. O lucro auferido com essas vendas era pequeno, mas bem administrado por esse senhor, que trabalhava sério, dava até para lembrar que há muito alimentava um sonho. Talvez não o tivesse nem revelado a seus familiares. Por achar que sonhava muito alto, manteve-se calado, mas, todas as vezes que vendia uma dúzia de ovos que fosse, parte do dinheiro ia para uma poupança que abrira no banco da cidade. Seu sonho era que seu filho homem tivesse acesso a algum estudo.

Foram longos anos de faculdade sendo pagos pelo pai. Quando, finalmente, se formou em direito e montou seu escritório, tornou-se um causídico de renome, porém, triste. Estava triste, mas, no mais alto grau, orgulhoso de telo tido por pai. Era filho de um homem consciente da sua missão, enquanto chefe de família. Era filho de um homem que, mesmo pobre, cumprira essa missão. O advogado estava triste porque seu pai herói deixara o mundo terreno há um mês.

A porta do seu belo e bem montado escritório abriu-se para dar passagem a um grande amigo que com ele cursara a faculdade. Após os cumprimentos efusivos de praxe, ao sentar-se diante da mesa, o amigo tomou entre os dedos a miniatura de um velho carro de boi, com os bois atrelados, esculpido em madeira, que estava sobre ela. Observando-lhe as belas formas, parecia-lhe ver a mesma carroça que vira na casa do pai do advogado, quando o acompanhara, num final de semana, à propriedade do seu pai.

– Por que não coloca ali uma ferrari vermelhinha? Daria mais status ao seu escritório.

– Pelo contrário, amigo. O meu orgulho está em ter sobre minha mesa de trabalho a miniatura do carro de boi, instrumento que serviu a meu pai para fazer de mim o que sou.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 22/02/2010
Reeditado em 22/02/2010
Código do texto: T2100883
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