A SAGA DE JORGE - PARTE I

Ao pingo do meio dia, Jorge vinha a pé para casa. Era uma boa distância de onde trabalhava para onde morava. Era uma sexta-feira. Ele era professor e, o salário que ganhava não era suficiente para ele possuir um transporte. Por isso, a sua labuta diária era feita à custa da energia da motricidade do seu corpo.

No entanto, Jorge nunca desanimava. Sabia de sua capacidade como profissional e, por mais que a vida tivesse lhe testando, um dia as coisas iriam acontecer para ele. Sorria sempre quando tinha esses pensamentos.

Naquele dia do mês de dezembro, ele tentava resolver um problema muito sério: comprar os presentes de Natal para sua esposa e para seus filhos com apenas R$ 70,00 (setenta reais), que sobrara do dinheiro que ganhara no mês, dando aulas particulares de matemática.

“Como seria bom se eu pudesse, com os conhecimentos que eu tenho, resolver isso da forma como resolvo os problemas que me são impostos pelos exercícios matemáticos!” – suspirou enquanto caminhava sob o sol inclemente do meio-dia.

De repente, o celular, que trazia em seu bolso, tocou. Ele, displicentemente, atendeu-o.

– Alô!

– É o senhor Jorge? – falou, do outro lado da linha, uma voz de um homem.

– Sim, sou eu mesmo. Quem é?

– Senhor Jorge, aqui quem fala é o encarregado do Departamento Pessoal da Sede do Ministério Público aqui do Rio Grande do Norte. Meu nome é César. Estou ligando para dizer-lhe que o senhor está sendo chamado para ocupar a vaga a qual concorreu para ingressar no Poder Público. O senhor ainda tem interesse?

Jorge quase cai para trás. Lembrou-se, como num flashback, do concurso que havia participado e que já havia perdido as esperanças de ser chamado. Tinha ficado em uma colocação onde haviam candidatos a serem chamados antes dele, para a mesma vaga. E a sua surpresa fora maior porque, naquele mês, iria completar quatro anos que isso ocorrera.

– Tenho interesse, sim. – respondeu quase atropelando as palavras.

– Pois então, disse o encarregado da boa notícia, esteja aqui, na capital, terça-feira, no mais tardar, às 14h00min, com toda a documentação exigida para ser homologada pelo Promotor e sair, no Diário Oficial, a sua nomeação, isso, antes do recesso anual.

Jorge, quando ouviu a resposta do representante do Ministério Público, gelou. Estava distante 280 quilômetros da capital, era uma sexta-feira, véspera de feriado municipal – comemoração da Padroeira da cidade – e ele ainda tinha que realizar vários exames, com certeza.

– Senhor César, farei de tudo para estar aí na terça-feira, mas pode ocorrer que não seja possível, pois aqui amanhã é feriado e hoje eu já comi. Portanto, não posso fazer os exames clínicos convencionais, o que praticamente me impossibilita de estar com toda a documentação exigida, na terça, aí na capital. Aliás, por falar em documentos exigidos: como faço para saber quais são eles?

– É só você entrar no site do Ministério - respondeu, do outro lado da linha, o seu interlocutor.

– Ok, rebateu Jorge. Vou fazer de tudo para estar aí com toda a documentação. Só uma pergunta: se eu não puder estar, o que ocorrerá?

– Você perde a vaga, senhor Jorge. – disse, taxativamente, o senhor César.

Em seguida, o senhor César despediu-se, desejando boa sorte ao provável colega de profissão.

“Como a vida era engraçada”, pensou Jorge enquanto recolocava o celular no bolso: até na boa notícia a desgraça pegava carona.

Como não tinha computador em casa, Jorge foi tentando lembrar onde tinha uma lan house perto de seu domicílio. Assim, antes de chegar à sua residência, já entrou numa dessas casas que oferece serviços de internet, por preços módicos, e acessou o site do referido Ministério. Quando começou a relacionar a documentação exigida, um frio passou a percorrer a sua espinha. Seria o cara mais sortudo do mundo se conseguisse realizar todos aqueles exames, da hora em que estava até a terça-feira, no horário exigido. Quando saiu da “casa”, com as informações, deixou, na caixa registradora, uma nota de R$ 2,00 (dois reais).

Porém, não desanimou. Não podia desanimar. “Ora, se me encontraram depois de tanto tempo, como posso deixar essa oportunidade passar por mim?” – refletiu ele, ainda perplexo com o grau de eficiência do Ministério Público para poder encontrá-lo. “Como pode eles terem me encontrado se eu já troquei de promoção de celular, consequentemente, de número de celular umas 3 vezes, no mínimo?” – completou seu raciocínio sem atinar para a lógica do descobrimento.

Ao chegar a casa, foi logo passando para o banheiro e chamando a esposa e, enquanto se despia, entrava debaixo do chuveiro de água fria, ele ia contando a novidade a sua cônjuge. Ela, como toda boa dona-de-casa e devota de Santa Luzia, foi logo acendendo uma vela para a Santa e rezando uma ave-maria para Nossa Senhora. Jorge, ao sair do banheiro, passou para o quarto e, ao ver a vela acesa, fez o sinal da cruz e agradeceu a boa notícia, pedindo, no entanto, que continuasse a lhe abençoar, também, na árdua tarefa que tinha pela frente: a entrega dos exames clínicos e técnicos, além da documentação pessoal. Não fez promessa. Apenas rogou para que tudo fosse feito sob a sua proteção.

Jorge olhou no relógio de pulso e ele apontava meio-dia e meia. Estava atrasado. Precisava correr. Correr era modo de dizer, já que ele tinha uma deficiência numa das pernas e, além do mais, estava acima do peso. Ficava difícil, portanto, tamanha façanha. Riu-se do próprio infortúnio. Porém, o que lhe foi tirado da parte física fora incorporado, com excelência, na parte mental. Era, por assim dizer, um ótimo professor de Física, Química e Matemática.

Ao sentar-se à mesa para almoçar, a sua esposa já tinha providenciado a comida no prato para facilitar o seu andamento. Enquanto comia, ele tentava administrar o tempo que dispunha naquela tarde, pois do contrário não conseguiria realizar a tarefa que precisava fazer.

Terminou, escovou os dentes, tomou um copo de água e saiu à rua disposto a encarar, de frente, o desafio de vencer os cinco quilômetros que o separavam da primeira prova documental que precisava. Assim pensando, se dirigiu para a esquina mais próxima e lá ficou esperando uma moto-táxi. Enquanto esperava, ele dialogava consigo mesmo:

– “Esse emprego tem que ser meu. Porém, antes de tudo, eu preciso saber quanto será o salário” – dizia em voz baixa olhando para os lados para ver se alguém o estava escutando falar sozinho.

– “Claro que será meu!” – respondia no mesmo tom, sempre olhando para os lados.
Se alguém visse e ouvisse o que ele falava, iria, com certeza, dizer que o alter ego dele estava tendo uma conversa muito boa com o próprio sujeito.

O interessante é que ele, o Jorge, estava indo, justamente, a uma Unidade Pública, tirar o Atestado de Sanidade Mental, exigido na documentação oficial do Ministério.

Estava, portanto, absorto em seus pensamentos, quando ouviu uma buzina de uma moto como a chamá-lo. Ao olhar para o lado esquerdo de onde estava, Jorge deparou-se com um seu amigo que lhe perguntou o que estava fazendo ali e se ia para algum lugar.

– Homem, estou tentando “pegar” uma moto-táxi para ir lá no PAM do bairro Bom Jardim – disse Jorge olhando para a avenida para ver se aparecia um moto-taxista.

– Cara, você está com sorte, pois estou de “bobeira” e posso fazer esse favor. Vamos! – simplificou a conversa o amigo que, por coincidência, também se chamava Jorge.

Jorge, o futuro técnico do Ministério Público, botou o capacete que era lhe dado, subiu na garupa da moto e esta arrancou na direção do bairro da cidade que ficava do outro lado de onde morava. No caminho, Jorge foi contando para o xará da oportunidade que estava aparecendo na sua vida, e de como precisava se esforçar para poder dar conta de toda documentação exigida, até a terça-feira, e que a ajuda dele, naquele momento, estava sendo de grande serventia. Agradeceu, antecipadamente, ao amigo.

Quando chegaram lá, o relógio que ficava no hall de entrada da Unidade marcava 13h20min. Jorge se dirigiu para a recepção enquanto seu amigo ficava no pátio, debaixo de uma frondosa árvore, conversando com outros motoqueiros – alguns moto-taxistas –, que estavam, assim como ele, esperando alguém que viera fazer alguma coisa.

– Boa tarde! - disse Jorge para o recepcionista. Por gentileza, gostaria de passar pela Unidade do UISAM (Unidade Intensiva de Saúde Mental). Preciso retirar um Atestado de Sanidade Mental. Para onde eu me dirijo?

O recepcionista olhou-o com uma cara de funcionário público, que vive constantemente entediado, e que, acima de tudo, se julga o dono do local onde trabalha. Displicentemente, depois de uma boa bocejada, uma coçada no queixo, ele apontou para uma porta à direita de onde estava, e disse:

– A porta da UISAM é aquela. Porém, eu duvido muito que a responsável possa atendê-lo a uma hora dessas. E, além do mais, se ela atender, eu acredito que o médico não lhe dará o atestado hoje, pois ele só trabalha até às 13h00min e já são mais de 13h30min, disse olhando para o próprio relógio, como se aquele reluzente acessório fosse o único objeto de adorno no mundo contemporâneo.

– Muito obrigado, disse Jorge se dirigindo para a porta indicada. Enquanto batia com os nós dos dedos – esperando a autorização para entrar –, Jorge recriminava, em silêncio, o comportamento do servidor público. “Talvez fosse por isso que a classe era tão má interpretada pela sociedade, pois era sinônimo de desleixamento, falta de educação e cabide de empregos”, constatado por ele através do próprio atendimento que recebera. “Mas nem todos são como esse rapaz aí”, pensou. E, também, não queria condená-lo pela primeira impressão. Precisava saber se era, de fato, um costume dele ou se ele estava num dia ruim. Poderia até ser um reflexo de um problema pessoal ou, simplesmente, uma formação que ele não teve, como por exemplo, um treinamento de relações públicas.

De repente, a porta se abriu e ele observou a senhora franzina, que se apresentou para atendê-lo. Ele, o Jorge, não era um homem alto, porém, na frente daquela senhora, ele parecia um gigante – em altura e peso.

– Pois não, senhor, em que posso atendê-lo? – perguntou toda solícita aquela senhorinha que parecia tão frágil, mas que demonstrava, ao mesmo tempo, uma segurança em seus atos verbais, que logo se mudava de opinião.

Jorge, já pensando no que o rapaz da recepção havia lhe dito – e para economizar o tempo de explanação para ver se conseguia o atestado ainda naquela tarde –, atropelou as palavras e desandou a falar apressadamente.

– Calma, senhor. Não precisa pressa. Tudo se resolve com calma, disse a gentil senhora, pedindo-o para entrar e sentar-se.

Já instalado, porém impaciente, pois via o ponteiro do relógio ir passando de segundo para o próximo segundo, Jorge se controlou e, pausadamente, expôs para a distinta senhora o seu drama pessoal de tempo.

– Vamos dar um jeito, meu rapaz. Para tudo tem uma solução. E não vai ser por causa desse atestado que você deixará de assumir o cargo que conquistou através de concurso – tranquilizou a servidora com uma expressão serena, deixando Jorge, por assim dizer, relaxado.

Em seguida, a servidora levantou-se, abriu um fichário e de lá retirou um papel onde estavam escritas várias perguntas de ordem psicológica, uma espécie de questionário psicotécnico.

Eram perguntas pessoais que seguiam uma ordem determinada pela ciência e que mostravam, no seu final, o grau de lucidez e de equilíbrio de quem estava se submetendo ao teste. Assim que terminou as perguntas, a velha senhora de rosto e gestos angelicais assinou o documento e, pedindo licença, retirou-se da sala por uns instantes.

Ao ficar sozinho naquela sala, Jorge passou a olhar os quadros ali expostos. Eram telas desenhadas em grafite, outras em tinta guache e um autorretrato. Nele, ele pode perceber os traços da servidora quando mais jovem. Era uma bela senhorinha em sua juventude. Os olhos claros, entre o esverdeado das flores silvestres e o azul forte do reflexo do mar, mostravam o quão terno era aquele olhar. O nariz afilado era perfeito. O cabelo, ao estilo de Ingrid Bergman em Casa Blanca, na mesma cor, mostrava uma elegância própria da época em que era jovem, onde imitar seus ídolos era um padrão – ainda hoje o é. Ainda olhando os quadros e diplomas, ele se deparou com um em que dizia que Maria do Carmo Silva era Assistente Social com Mestrado em Equipamentos da Rede de Serviços Sociais e Urbanos das Organizações Públicas. Pelo menos, pensou, estava em ótimas mãos.

Decorreram, da saída e volta da Assistente Social, exatamente 10 minutos. E ela já trazia um documento assinado pelo médico responsável atestando ele estar capacitado para assumir as funções destinadas no seu pedido.

Jorge recebeu o documento, agradeceu e elogiou a presteza do atendimento e despediu-se desejando à prestativa e bondosa funcionária muita sorte em seu convívio diário. “Ela merece”, disse para si mesmo. Ao passar pela recepção, olhou o rapaz que continuava displicente, alheio ao movimento a sua volta e, também, desejou-lhe uma boa tarde. Ouviu, como resposta, um grunhido que ele entendeu como um “muito obrigado”. “De fato”, voltou a pensar para si, “esse rapaz não está num dia bom não”.

Ao chegar onde estava o amigo, Jorge colocou o documento dentro de uma pastinha de plástico que levava consigo e agradeceu pela primeira vitória na batalha que havia iniciado e que ia até a terça-feira. “Pensando bem, a primeira batalha foi a lista da documentação necessária. Esta é a segunda”, retificou.

– E aí, Jorge, deu certo? – a pergunta do amigo o tirou de seus pensamentos interrogativos e críticos.

– Deu certo, sim, xará! – respondeu animado o futuro técnico do MP.

Ao subir na garupa da moto, Jorge olhou o relógio. Eram, exatamente, 14h00min.

– E agora, vamos para aonde? – voltou a lhe perguntar, tirando-o novamente dos seus pensamentos, o amigo.

– Vamos ao Ministério Público, pois eu preciso saber de uma coisa, respondeu. Na verdade ele, o Jorge, estava louco para saber qual era o salário inicial para quem ia assumir o cargo que ele iria assumir, isto é, se ele confirmasse o cumprimento de todas as tarefas documentais até a terça-feira, às 14h00min.

Saíram de lá. Para percorrer, de volta para o centro da cidade, foram mais três quilômetros até o prédio do Ministério Público. Quando chegaram lá, Jorge dirigiu-se para a recepção onde se encontrava uma jovem muito bem vestida, com um sorriso de boas vindas que encantava a quem a ela se dirigia para receber algum tipo de orientação.

– Boa tarde, cavalheiro, em que posso servi-lo? – recepcionou a funcionária com uma visível dedicação ao ofício que desempenhava, naquele momento, que era: informar, orientar, esclarecer, encaminhar.

– Boa tarde, senhorita. Na verdade é uma pergunta que envolve numerário. Explico: eu acabei de ser chamado para assumir uma vaga de técnico e eu queria saber o salário inicial da função. Pode me ser dita? – completou Jorge.

– Claro que sim, senhor. Um momento, pois vou verificar, no sistema, o salário correspondente ao cargo que o senhor irá assumir. Aguarde só um instante.

Enquanto a moça acessava os dados que precisava, Jorge ficou comparando os dois atendimentos que tivera: o do funcionário público municipal e, agora, aquela servidora federal. Havia uma disparidade enorme entre os dois. Talvez o salário fosse o diferencial. Mas, não, raciocinou. O funcionário assume uma função e tem que desempenhá-la sempre bem, pois ele foi capacitado para aquilo, independente de ganhar bem ou não. Não justificava, portanto, tratar mal ou bem somente devido ao salário que ganhava. Era, na verdade, uma questão de treinamento. Aí sim, o treinamento talvez tivesse relação em se tratando de como ia ser esse servidor em suas funções. Nos cargos onde existia um controle rígido nas funções a serem desempenhadas, a capacitação era individual, contínua. Quem sabe, no caso do primeiro funcionário – o da recepção na busca do atestado –, ele nem fosse o funcionário da função. Quem sabe se ele não estava deslocado de função, quebrando um galho e, por isso mesmo, se sentindo incomodado em estar dando informações que, algumas vezes, não eram do seu conhecimento? De qualquer forma, pensou, não justificava o péssimo atendimento.

– Senhor, o salário referente ao cargo de Técnico Administrativo do Ministério Público é esse, disse, anotando numa folhinha para anotar recados, o valor relativo ao que foi pedido.

– Obrigado. Uma boa tarde, senhorita, e um bom final de semana. – agradeceu ainda sem olhar para o papel, o ansioso futuro companheiro de trabalho daquela simpática servidora.

Ao sair dali, Jorge olhou para o valor colocado no papel. Ao ver o salário ele arrepiou-se. Era mais do que imaginava. Um sorriso brotou em seus olhos e desenhou-se por todo o seu rosto e culminou numa ampla e escancarada abertura de boca que quase o fez gritar de tanta alegria.

Como todo bom brasileiro, Jorge já foi fazendo as contas do que podia pagar, do que podia comprar para o conforto de sua família, das poucas dívidas que quitaria logo no primeiro salário e como sua vida iria mudar, vertiginosamente, nos próximos meses. Isso, claro, se ele conseguisse alcançar o objetivo de estar com todos os documentos até a terça-feira à tarde, na capital e na sede do Ministério Público.

“Ora se eu já estava motivado a conseguir vencer cada batalha a mim imposta, depois que fiquei sabendo o salário inicial aí é que a disposição de conseguir aumentou”, opinou enquanto descia as escadas e se dirigia para onde estava o amigo xará, em sua moto, a sua espera.

De repente, ele parou. Refletiu sobre o real significado do que acabara de lhe acontecer. Sem querer ele tinha dado uma resposta para as indagações sobre as diferenças encontradas nos dois atendimentos, aliás, três, pois aí ele incluía a velha e bondosa servidora. Estava claro, raciocinou. Quer queira, quer não, um dos diferenciais para ser simpático, solícito, era, sem sombra de dúvidas, o salário que se ganhava. Não era para ser assim, retificou, mas, inconscientemente, o bem-estar pessoal vem associado ao status, ao ganho remuneratório que faz com que seja uma peça de destaque em sua profissão. E isso ficava evidente até com relação ao comportamento social de cada um: enquanto o funcionário público, do primeiro atendimento, relaxava sem se preocupar com a indumentária e a higiene pessoal – se apresentando com as roupas amarrotadas, com botões faltando e a barba por fazer –, a outra, a recepcionista do MP, se apresentava impecavelmente, com uma maquiagem leve, de cabelos presos, roupas adequadas, limpas e bem passadas, demonstrando uma elegância própria de quem sabia que a primeira impressão é a que fica. No segundo caso, a sua apresentação pessoal aliada ao seu bom atendimento lhe dava uma condição de destaque e servia de vitrine para quem vinha à busca de informações e de ser encaminhado para os diversos setores da unidade.

Uma reflexão difícil de ter uma resposta definitiva. No mundo capitalista em que se vivia, a selva monetária era o impulso para qualquer atividade coletiva. No caso do recepcionista municipal – isso se ele fosse, de verdade, um recepcionista em sua função de contrato – ele deveria ganhar, no máximo, um salário e meio do mínimo. Se fosse casado, com filhos, deveria estar sempre no vermelho, consequentemente, se alimentar mal – para deixar o melhor para seus filhos – e, o restante, era consequência das outras coisas: o vestuário era simples e nem sempre compatível com o local onde se encontrava. E, a higiene, através de uma barba bem feita, talvez ficasse restringida a uma vez por semana, justamente para poder economizar na conta do final do mês; diferentemente da servidora pública federal que, pelos seus cálculos, deveria ganhar bem mais do que aquele valor colocado no papel para ele e que já era consideravelmente superior (e muito) ao salário ganho pelo despreparado outro servidor. Por esse motivo, ela podia se dar ao luxo de comprar os supérfluos que a profissão lhe proporcionava. Apesar de que, de supérfluo ele não tinha visto nada. Na verdade, no fundo, o que vira foi uma linda e elegante mulher desempenhando a sua função com simpatia e educação.

Não teve mais tempo para ficar filosofando, procurando respostas para as perguntas de cunho social que estava se fazendo, pois já estava ao lado da moto do companheiro que, sem nem saber a dimensão do seu ato, estava lhe proporcionando uma economia razoável em seu numerário. Olhou para o relógio: eram 15h00min.

– Vamos para onde agora? – perguntou o prestativo motociclista.

– Jorge, meu amigo, graças a Deus nós vamos para casa. Por hoje, já cumprimos as etapas. E, pode acreditar, você foi de uma ajuda sem precedente. Acho que sem você, hoje, eu não teria conseguido cumprir com todas elas. Vamos, me deixe em casa.

De onde estavam até a casa de Jorge – o que estava cumprindo as etapas de documentação – era de mais ou menos mais três quilômetros, que foram vencidos rapidamente, pois àquela hora da tarde o trânsito ainda não se apresentava congestionado, já que o rush ainda seria um pouco mais tarde.

Quando chegou em frente de sua casa, ao descer da moto, Jorge apertou a mão do amigo xará. Agradeceu mais uma vez e desejou-lhe que Deus o iluminasse sempre. Ao se despedir, ouviu do amigo que sempre que pudesse estaria à disposição dele. Era só ligar que ele viria para prestar um favor.

“Como era bom ser prestativo também”, refletiu, ao lembrar-se sobre o dia em que estava em casa, descansando, e o amigo xará chegou trazendo um dos filhos dele para que ele o ajudasse numas questões de matemática em que o rapazinho estava com dúvidas. Apesar de cansado, Jorge não se recusou, nem pediu para ele vir mais tarde com o filho. Pelo contrário, sem fazer cara feia, ele mandou o filho do amigo entrar e, pacientemente, tirou todas as suas dúvidas.

Quando terminou, no final da tarde, ele ainda telefonou para o xará vir buscá-lo. E o melhor – e que agora estava sendo recompensado – foi que, ao ser perguntado de quanto era o valor da aula, ele não cobrou nada.

“Gente boa esse rapaz”, assentiu Jorge. “Difícil, hoje em dia, uma pessoa tão prestativa. Rara mesma”.

Ao abrir a porta da frente da casa, sua esposa veio em sua direção, apreensiva. Queria saber se ele havia conseguido tirar o atestado de sanidade mental. Ao receber a afirmação que sim, ela correu para o quarto do casal e, diante da vela, agradeceu à Santa de sua devoção. Jorge olhou da porta do quarto. Admirava a religiosidade da companheira. Para ela, tudo se resolvia através da oração e da fé. E ele também achava isso, porém não era muito afeito a orar. Não porque quisesse. Muitas vezes o seu dia-a-dia o impedia, fazendo-o esquecer dos compromissos espirituais. No entanto, para seu alívio e proteção, a sua parceira, escolhida através do matrimônio, orava pelos dois. Sabia que isso não era desculpa, mas, também por isso era que ele, vez por outra, se voltava para professar a sua fé no seu Deus. Olhou novamente para o relógio, desta vez, o de parede de sua casa: eram 15h45min. Resolveu que precisava descansar. Aliviar a tensão e o arrebatamento de sua alma. “Finalmente as coisas estavam acontecendo. Obrigado, Senhor!” – disse antes de se deitar e cair num sono profundo.

Ele nem imaginava, no entanto, o que estava por vir. Se ele soubesse, talvez nem dormisse – o que seria ruim para ele –, pois ele precisava – e muito – de estar descansado, relaxado e consciente das tarefas a serem cumpridas. Se mal comparando, mas proporcionalmente, seria como realizar os doze trabalhos de Hércules.

Ao acordar à noite, por volta das 19h00min, Jorge aproveitou a calmaria de sua residência para adiantar alguns afazeres, tipo planejamento de aula, estratégias de aula particulares, correção de trabalhos e provas, atualização de diários. De todos, Jorge não se acostumava nunca era com o tal do diário. Apesar de saber da sua importância para a prática pedagógica, era a parte mais enfadonha, espinhosa e exaustiva de se trabalhar na educação. Ele, o diário, era o vilão de tudo quanto era modelo de estudo. Para começar, ali em seu interior se colocava a real situação de quem estava inscrito nele: as notas – azul ou vermelha. Ali também se colocava uma espécie de diagnóstico sobre a vida escolar do aluno. Se ele era uma pessoa comprometida com os estudos, estava registrado lá; se era um aluno relapso, que dava alterações, não gostava de estudar e apenas cumpria os protocolos elementares para passar de ano, estava lá, também, registrado. Porém, o pior era ter que ser uma espécie de médico toda vez que se fazia necessário entregar aquele aluno para o seu próximo professor. E isso era a parte menos prazerosa da profissão de repassar conhecimentos.

Entretanto, como um fiel cumpridor de seus deveres, Jorge se empenhou em realizar seu trabalho, de forma profissional, avaliando corretamente, sendo justo e proporcionando, de acordo com cada aluno, uma tática para que, cada aluno que estivesse precisando superar metas e conceitos, fosse agraciado e tivesse oportunidades iguais aos outros que estavam acima da média. Na sua visão, a educação se fazia – apesar da heterogeneidade de uma sala de aula – igual para todos quando o educador conseguia repassar conhecimentos de forma que cada um de seus discípulos conseguisse assimilar, por um patamar nivelado, o que fora repassado.

Ao fechar livros, diários, folhas de provas e de trabalhos, e terminar de anotar todas as suas observações, Jorge olhou para o seu relógio de pulso: eram 22h00min.

“Como tempo passa depressa quando estamos absortos em nossas tarefas!” – balbuciou baixinho.

Levantou-se, guardou em seu armário todo o material e foi direto para o banheiro. Ao terminar de tomar banho, passou pela cozinha, abriu a geladeira, tomou um copo de leite e dirigiu-se para o quarto das crianças. Quando abriu a porta, percebeu que elas já estavam dormindo. Observou apenas se estavam cobertas. Estavam. Voltou a fechar a porta do quarto e foi em direção ao seu quarto. Assim como no quarto dos filhos, no seu, a sua esposa já estava recolhida, cochilando. “Uma guerreira” – ajuizou.

Ao deitar-se, sem fazer barulho ou fazer movimentos bruscos para não tirar da sonolência em que se encontrava a sua cônjuge, Jorge agradeceu por ter se casado com uma mulher devotada e consciente de seu papel de mãe e esposa. Ele tinha tido muita sorte na vida conjugal. Sua esposa era, acima de tudo, uma companheira. Já tinham enfrentado muitas provações, porém, em nenhum instante ela tinha deixado escapar uma fraqueza na luta. Pelo contrário, sempre estava do seu lado, lhe dando força, estimulando-o a prosseguir, incentivando-o na caminhada. E, quando as coisas estavam brabas mesmo, o improviso vinha, com certeza, aliviando todas as necessidades presentes.

Ao fazer suas orações, o agradecimento maior foi para quem era o porto seguro de sua nau. Em seguida, adormeceu.

O domingo se apresentou, logo cedo, feito sol claro, despejando raios dourados por sobre toda a cidade, mostrando que aquela região era banhada o ano inteiro pela sua presença, elevando, com isso, a temperatura tão exaustivamente cantada e declamada em versos de poesias, letras de músicas e mini-séries para a televisão. E o que era melhor: rendia dividendos em propaganda para quem vinha do exterior – os famosos turistas dos países frios – que pagavam fortunas para conhecer nossas praias, sertões escaldantes – as famosas caatingas secas do interior – onde morava o “matuto”, que de matuto não tinha mais nada, pois já havia pegado o manejo da cultura do turismo e já estava faturando com o novo, alugando jumentos, cavalos, carros de boi para fazer esse turista andar em cima e apreciar a sua região.

Jorge não parou para fazer nenhuma reflexão desta vez. Tinha um dia para se alimentar de coisas leves, evitar muito açúcar, massas, pois na segunda, logo cedo, tinha que fazer os exames clínicos, laboratoriais. Por isso, além de se cuidar na alimentação, evitou ter aborrecimentos de qualquer natureza, principalmente, com a questão salarial, alvo constante de suas preocupações. “Bem, pelo menos se eu cumprir com as tarefas e conseguir o cargo que estou a ponto de assumir, essa parte será substancialmente substituída pela fartura de um salário três, quatro vezes mais “gordo” do que agora eu ganho”, refletiu.

O dia, portanto, transcorreu sem novidades. Aqui e acolá, a presença de um amigo, uma conversa fiada, uma piada, uma risada. Outras vezes, a televisão e seus supérfluos preencheram o restante da tarde – e da noite – daquele típico domingo de quem fazia do dia de descanso, descanso mesmo. Finalmente, a hora de se recolher. Ao desligar o televisor, Jorge providenciou o material necessário – os famosos frasquinhos – para recolher fezes e urina para levar na hora dos exames laboratoriais. Assim, tendo deixado tudo providenciado, deu adeus a mais um domingo de suas lembranças.

Segunda feira, seis horas da manhã. Jorge já se encontrava na Policlínica para a retirada do seu sangue para exame. Em um saco plástico, discreto, os dois vidrinhos contendo as amostras coletadas no alvorecer. Tinha chegado ali na garupa de uma moto-táxi. R$ 3,00 (três reais) a corrida. Só de ida. Até que era barato, pois o percurso era de mais ou menos, uns quatro quilômetros. De qualquer modo, pensou, o serviço de moto-táxi permitia o deslocamento, com certa facilidade, e com um tempo mínimo, se comparado com a espera e o traslado feito pelo coletivo.

Ao terminar de retirar o sangue e entregar o material dos frasquinhos, Jorge perguntou à atendente quando ele teria o resultado daqueles exames. A resposta da atendente o desanimou.

– Senhor, o seu exame vai estar pronto no final da tarde. Pode vir buscá-lo por volta das 17h00min.

Jorge gelou. Se isso acontecesse, ele estaria “frito”. Podia dar adeus ao emprego. Para começar, na capital, ele teria que realizar outros exames e, por isso mesmo, precisava estar lá ainda na segunda para poder aproveitar o tempo.

– Minha senhora, me disponha um pouco do seu tempo para eu poder lhe falar sobre a minha necessidade de ter esses exames ainda pela parte da manhã, disse Jorge com a voz embargada, trêmula, quase se deixando trair pelo desespero que começava a tomar conta do seu organismo.

– Senhor, eu não posso fazer nada, respondeu a atendente depois de ouvir as explicações do quase futuro técnico do MP. A norma daqui é a entrega dos resultados no final da tarde, pois o volume de exames é muito grande. O senhor nem imagina! – disse ela mostrando uma quantidade significativa de sangue para exames, em seus respectivos tubinhos de ensaios, e de frasquinhos com rótulos dos nomes de seus respectivos donos.

Jorge baixou a cabeça e, automaticamente, pôs as mãos nela. É, daquele jeito, não iria cumprir com as suas tarefas. Lamentou, no entanto, que o representante – e futuro ex-colega – só o tivesse contatado tão próximo da data de vencimento. E, ainda por cima, ele tivera o problema de ser uma sexta-feira, véspera de um feriado municipal, o que impossibilitava algum andamento no sábado – se tivesse expediente, ele poderia ter feito os exames no sábado e, naquela data (segunda-feira), estaria recebendo os resultados. Mas não podia culpar o representante da instituição. Com certeza, ele não deve ter tido a possibilidade de entrar em contato antes. Como ele não era o primeiro da lista, quem o representante havia contatado primeiro talvez tenha sido o causador da demora de ele ter sido avisado.

A atendente ficou observando a amargura daquele rosto – que tinha chegado tão esperançoso, portanto, cheio de vida – e sentiu uma inquietação espontânea. Inquietação causada pela consciência que lhe mandava ajudar no que fosse preciso para poder proporcionar uma chance real de aquele jovem ter condições de lutar pelos seus objetivos. E ela podia, dentro de suas limitações, ajudá-lo, sim.

– Olhe, eu vou ver o que posso fazer pelo senhor. Não vou garantir, mais venha por volta das 10h00min para ver se o resultado está pronto, certo? – falou de uma forma reconfortante, passando esperança para o desesperançado “Hércules”.

– Obrigado. A senhorita não sabe o quanto lhe serei grato se esse exame estiver pronto. Só para a senhorita ter uma ideia, ainda preciso realizar alguns exames, aqui e na capital, ainda hoje. Por isso, preciso correr. Mais uma vez, obrigado, disse Jorge, manifestando sua gratidão.

Ao sair dali, a motivação e a disposição de lutar haviam voltado. Apesar de não ter recebido o resultado ainda, Jorge riscou o obstáculo, classificando-o como o terceiro trabalho do mitológico guerreiro grego.

Porém, não tinha tempo para ficar pensando em mitologia grega. O caminho para se chegar ao restante dos trabalhos era árduo e, por isso mesmo, o melhor era ir ultrapassando-os, para depois filosofar.

Uma moto-táxi, mais uma vez, foi a solução. Desta vez, ele precisava ir até a Justiça Federal. Ficava, de onde estava para lá, cerca de 3 quilômetros, já nas cercanias dos bairros mais afastados da cidade. Ficava próximo à UFERSA (Universidade Federal Rural do Semi-Árido). Olhou o mostrador do relógio: eram 07h00min.

O moto-taxista o deixou na porta de entrada do complexo da Justiça. Era um bloco de prédios, lado a lado, que dava a dimensão da importância daquele local. O terreno em volta da parte física era bem cuidado, cercado de um muro alto, guarita com guardas nas entradas – e uma infinidade de vagas no estacionamento do mesmo. Jorge pagou, desta vez, R$ 4,00 (quatro reais) pela corrida e se dirigiu para o guarda que o olhava com atenção.

– Bom dia, senhor vigilante. Como eu faço para poder retirar o comprovante de idoneidade contra danos provocados ao patrimônio da União?

– O senhor se dirige para a ala norte do prédio. São autoindicativas as informações nas paredes, não se preocupe, disse o guarda. Só tem um problema, senhor: o expediente normal só começa às oito horas.

– Não tem problema, disse Jorge. Eu posso ficar esperando lá dentro, na porta principal? – interrogou.

– Sim, claro. Fique à vontade.

Jorge se encaminhou para o interior do espaço da Justiça. Na porta principal, a postos, outro guarda. Desta vez, um policial militar. Jorge olhou a sua camisa e viu quatro divisas na sua manga esquerda. Entendia um pouco disso, e soube, de cara, que estava diante de um 2º sargento.

– Bom dia, Sargento. – cumprimentou.

– Bom dia, senhor. – retribuiu a gentileza o militar perguntando, em seguida, no que poderia ajudar.

Jorge explicou. O policial, então, lhe mostrou onde era o corredor que se retirava o atestado. Assim como o seu companheiro de guarita, adiantou que ele tivesse um pouco de paciência, pois o expediente começava às oito. Dito isso, o sargento o deixou à vontade, sentado em um sofá amplo, macio, tendo ao lado, um móvel onde se colocavam revistas variadas para que o visitante pudesse absorver o tempo sem a ociosidade de alguns lugares públicos onde se andava.
Ali, pelo menos, a leitura, o conhecimento e a atualidade caminhavam juntos. Jorge pegou uma revista do móvel ao lado. Aleatoriamente. Era uma revista semanal, de circulação nacional. Na sua capa, com destaque, três fotos de parlamentares colocando dinheiro, ora na cueca, ora nas meias, ora em uma bolsa de papelão – dessas em que se colocam objetos comprados em lojas de shopping.

“Uma vergonha!” – falou baixinho, balançando a cabeça negativamente. “O ser humano é interessante mesmo. Tantos homens com vocação para a vida pública lutam para estarem lá e, quando estão no poder, fazem de tudo para que esse poder acabe com eles”.

O pior, pensou Jorge, é que a maioria dos escândalos contra o patrimônio público vinham de pessoas que eram eleitas para proteger esse patrimônio. No caso específico da capa da revista, os parlamentares estavam recebendo propinas por atos ilícitos, de favorecimentos, e contra a maioria da população. Também não podia deixar de fora aqueles que, através de um alto cargo público se achavam no direito de estar acima do bem e do mal e passavam a praticar as improbidades no cargo que ocupavam.

Jorge continuava a ler a matéria do escândalo do mensalão – nome denominado pela imprensa de um modo geral – enquanto esperava o momento de ser atendido, quando se lembrou de um episódio que caracterizava muito bem a questão da idoneidade administrativa do bem público. Numa certa época, quando ele trabalhava numa escola perto de sua casa, os rumores que se ouvia era que a diretora da instituição desviava a merenda, levando-a para sua casa e repartindo-a entre seus familiares. Um belo dia, quando o carro do supermercado que vinha deixar a merenda chegou, o vigia da escola preparou um saco grande e, na medida em que os alimentos eram colocados na despensa de mantimentos, ele ia escolhendo o que queria e colocando dentro do saco. Questionado, por alguns funcionários presentes, sobre a sua atitude, e dizendo que iam denunciá-lo à direção, ele não se fez de rogado e disparou:

– Se ela pode tirar, sem precisar disso, o alimento da boca das crianças que se alimentam, muitas vezes, somente do que comem aqui, imagine eu que ganho pouco, saio de casa sem tomar nem um café preto e deixo lá uma “reca” de filhos passando fome! Se quiserem, podem dizer a ela.

Isso dava a dimensão de como a falta de ética estava presente no dia-a-dia de muitos servidores. Era uma cadeia de maus exemplos: servia-se o maior e, através dessa corrente, cada um do patamar inferior vinha abocanhando o seu pedaço até chegar ao mais simples deles.

“Quem sabe um dia a gente consiga ver homens sérios, pois competentes nós já temos, para gerir a coisa pública. É claro que para toda regra há de haver exceção”, finalizou suas reflexões diante da matéria, o quase funcionário público federal.

Finalmente, o policial veio ao seu encontro e anunciou que o expediente estava aberto e que ele podia se dirigir à sala indicada. Jorge olhou no relógio: eram exatamente 08h00min.

Na sala indicada, o funcionário o atendeu com presteza e atenção, consultando o sistema e constatando que nada havia contra a pessoa que estava pedindo o atestado. Rapidamente, a impressora já imprimiu o documento e, em seguida, ele estava dentro de um envelope, assinado e pronto para ser entregue ao destinatário.

Jorge se despediu do funcionário agradecendo a rapidez no atendimento, fazendo o mesmo quando cruzou, na porta principal, com o policial. Sem perder mais tempo, ele se dirigiu para a saída do complexo e, ao passar pela guarita, acenou para o vigilante desejando-lhe um bom dia de trabalho.

“Agora, só espero que passe logo um moto-taxista!” – falou.

Sim, ele precisava, urgentemente, de uma condução para levá-lo de volta para o centro da cidade, já que seu tempo estava ficando exíguo para o que ainda tinha que fazer antes de viajar para a capital do seu estado.

Por sorte, passados uns cinco minutos, apontou uma moto-táxi. Sem precisar dar com a mão para o seu condutor pará-la, a mesma estacionou ao seu lado, já o piloto perguntando-lhe para onde ele queria ir. Um fato interessante no serviço de moto-táxi da cidade onde Jorge mora é que o serviço é sempre bem prestado. Talvez seja pela grande concorrência existente, onde se vê pessoas, por toda parte, com macacões amarelos que denunciam a prática da prestação de serviço, ou quem sabe, seja pela necessidade premente dessas pessoas de adquirirem o sustento próprio e o de suas famílias, já que o desemprego no município é muito grande. Quiçá as duas sejam os motivos que levam tantas pessoas a se arriscarem no trânsito, todos os dias, para tentar sobreviverem.

“Uma coisa curiosa”, ponderou Jorge ao colocar o capacete de proteção e subir na moto, “o ser humano é incrivelmente contraditório. Para ele poder ‘tentar’ viver ele arrisca, constantemente, a sua vida”.

De onde estavam até o local onde estava o quinto trabalho a ser cumprido, a moto-táxi percorreu cerca de 4 quilômetros. Ao chegar ao Fórum da cidade, o condutor do serviço disponibilizado lhe cobrou R$ 4,00 (quatro reais). Jorge pagou e agradeceu, se dirigindo para a recepção da instituição. Precisava, lá, retirar o Atestado de Antecedente Criminal Estadual. Ao chegar ao balcão, olhou para o relógio na parede ao fundo. Ele marcava exatamente 08h45min.

– Bom dia, disse Jorge ao recepcionista. Por favor, para retirar o Atestado Antecedente, como eu faço?

– Por aqui, cavalheiro, informou um senhor que estava ao lado do balcão, pelo lado de fora, justamente para dar as explicações e orientar aos visitantes para onde eles deveriam se dirigir. Siga por esse corredor e ao dobrar à direita, a primeira porta à esquerda. Não tem erro. Lá, procure a senhora Lourdes Garcia.

– Obrigado, senhores, agradeceu Jorge se encaminhando para o local indicado.

Ao chegar à referida porta, à esquerda do corredor que se dobrava à direita de quem vinha, Jorge olhou pelo espelho do mesmo e viu uma senhora sentada atrás de uma mesa onde em cima havia um aparelho de computador. Bateu na porta e, em seguida, foi autorizado a entrar pela senhora que, de onde estava, acenou-lhe, sorridente, que ele podia entrar.

– Bom dia. É a senhora Lourdes? – perguntou-lhe Jorge.

- Sim. Sou eu mesma. Em que posso ser útil? – respondeu-lhe a simpática atendente.

Jorge desfiou, novamente, a velha ladainha das outras vezes, acrescentando, com veemência, a questão tempo.

– Não se preocupe senhor Jorge, disse ela olhando para o documento de RG do mesmo – documento, esse, pedido assim que ele adentrou ao recinto -, não vai levar nem um minuto para conferirmos a sua situação de antecedentes. Aguarde um instante, volto logo. – disse ela se levantando e abrindo uma porta lateral que dava acesso à sala do seu chefe imediato, no caso, um juiz, com certeza.

Jorge ficou ali na sala esperando ela voltar. Como das outras vezes, a sua mente começou a querer fazer profundas reflexões, analisando as diversas situações vividas da sexta-feira passada até o dia em que se encontrava agora. Para ele, aquele universo distinto era enriquecedor.
Tinha visto e conversado com as mais variadas pessoas, recebido apoio e congratulações, ao mesmo tempo em que se viu às voltas com gente mal-educada, grosseira e entediada e teve a nítida certeza que, na vida, o equilíbrio se dá justamente pela vivência que deveremos ter com os inúmeros segmentos de nossa sociedade. Sem essa gama de interligações com as mais variadas formas de raciocínios, interpretações, condutas, costumes e moralidades, o ser humano não evolui, nem busca o pensamento crítico, assim como, não desenvolve a sua capacidade de pensar, criativamente, de como agregar valores às novas concepções de enxergar as coisas do mundo em que vive.

Não demorou muito e a senhora Lourdes estava de volta. Na mão, um papel em folha timbrada da instituição. Jorge recebeu o documento e agradeceu o empenho. Recebeu, de volta, o desejo de muita sorte na nova empreitada.

Jorge saiu dali totalmente confiante. As coisas estavam caminhando bem. O tempo estava sendo bem administrado. Olhou para o relógio: eram 09h20min. Ainda tinha que correr para completar mais um trabalho, ainda na sua cidade de origem, antes de pensar em viajar.
Na porta do Fórum, o serviço de moto-taxista era intenso. Pelo fluxo de pessoas que vinham e iam, nunca deixava de ter, na frente do mesmo, umas cinco motos para dar apoio aos que precisavam de uma corrida com urgência. Por isso, não perdeu tempo, somente o necessário para chegar a ela, colocar o capacete, montar na garupa e indicar a direção a ser seguida.

– Jovem, por favor, dirija-se ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral), lá no bairro da Abolição IV.

O moto-taxista, experiente, seguiu pelo melhor caminho, mesmo porque, no caso de moto-táxi encompridar caminho não era sinônimo de ganhar dinheiro. Pelo contrário, encompridar caminho significava perda de tempo, aumento na despesa com o combustível, além da insatisfação do cliente.

A moto rodou, atravessando a cidade, de uma ponta a outra. Jorge, na garupa, ia acompanhando o trajeto, passando pelas ruas, desviando de carros e admirando, quando podia, a vertiginosa presença dos arranha-céus na sua cidade. Lembrou-se que até pouco tempo os habitantes dali daquela cidade interiorana apenas moravam em casas na horizontal. Hoje, via perplexo, que a moradia tinha se tornado vertical, com o aparecimento de grandes prédios – alguns com mais de vinte andares – que tornavam a cidade um verdadeiro espigão em busca dos céus. Não era contra o progresso. Apenas pensava que a questão de se morar em apartamentos, e em condomínios, de certa forma, mostrava o quanto a sociedade estava se tornando violenta, pois a segurança imposta por esses conglomerados mostrava o desejo da população de escapar da selvageria, que era cada vez mais frequente, contra cidadãos que moravam em casas isoladas e sem segurança particular. Se por um lado enfeava a vista panorâmica, por outro lado impedia o avanço desses incidentes já que, normalmente, nesses condomínios, a segurança era rigorosa.

Em 15 minutos a moto estacionou diante do prédio do TRE. Jorge desceu, tirou o capacete, perguntou quanto era a corrida e o prestador de serviços lhe disse que custava R$ 3,00 (três reais). Jorge pagou. Novamente, ao se dirigir para a recepção, teve que desfiar o assunto, apesar de ser preciso somente dizer que precisava de um Atestado de Antecedente Eleitoral, ou seja, ele precisava confirmar que estava quite com as obrigações eleitorais, ou seja, que havia votado nas últimas eleições e, portanto, apto como cidadão brasileiro.

Da mesma maneira que das outras vezes, não demorou muito, foi encaminhado para o setor onde um rapaz colocou seus dados no computador e, rapidamente, veio a resposta. Aí, foi só imprimir, levar para o encarregado e voltar, depois, com o documento assinado. Estava cumprido o sexto trabalho de Hércules. Ao colocar o documento na pasta que levava consigo, a necessidade de olhar o relógio se fez presente. Os ponteiros marcavam 10h00min.

Precisava correr. Tinha que ir para a sua casa, tomar banho, pegar roupa, comer alguma coisa rapidamente, voltar ao ambulatório de exames clínicos e, depois, arriscar encontrar, àquela hora – o que era bem difícil –, condução em algum alternativo que o levasse ao seu destino.

Mas, primeiro, precisava de outra moto-táxi. E ela não demorou a aparecer. Assim cortando a cidade em todas as suas paralelas, retas, perpendiculares e oblíquas, Jorge lembrou-se de um pequeno detalhe, talvez o mais árduo dos trabalhos, pois implicava em atualizar o Cartão de Vacinas em um Posto de Saúde Público. Como todo mundo sabia, o horário não era o mais propício, pois já passava das 10h00min e, nessa hora, o posto já podia estar fechado. Mas, como tinha que passar de qualquer forma, em frente do mesmo, orientou ao moto-taxista que o deixasse, se estivesse aberto, no Posto de Saúde do CAIC do Carnaubal. Ao se aproximar, percebeu, pela movimentação, que seus funcionários estavam se preparando para deixar o local. Desceu rapidamente, pagou os R$ 4,00 (quatro reais) cobrados e seguiu apressado para o interior da Unidade. Por sorte, e por morar ao lado, era conhecido da maioria dos seus funcionários. Ao se dirigir à recepção, a enfermeira não fez questão de atualizar o cartão de vacinas, desde que ele tomasse a vacina contra o tétano.

– Dos males o menor, disse em tom de brincadeira, já se dirigindo para o ambulatório onde estavam guardadas as vacinas.

Lá, a enfermeira aplicou-lhe, na região glútea, a referida vacina. Na volta, o cartão devidamente assinado e datado para comprovação.

Como era pertinho de casa, dali mesmo ele foi andando, porém com certa dificuldade, já que a vacina era doída demais. Por fim, apontou na frente de onde morava e entrou na sua casa. Como havia previsto, a sua mochila já estava pronta. Sua esposa, mais uma vez, se antecipara e já providenciara o que era necessário para ele não perder tempo. Encaminhou-se, então, para o banheiro. Lá dentro, deixou a água cair forte em seu couro cabeludo, molhando seu corpo por completo. Deu-se ao luxo de perder alguns minutos pelo prazer de ver seu corpo sendo massageado e revigorado pelo líquido que curava tudo.

De volta ao quarto do casal, trocou de roupa, penteou-se e, ao chegar à mesa, tudo já estava postado para o desjejum. Lembrou-se, naquele exato momento que ainda não havia ingerido nada sólido, pois, para fazer os exames de sangue tinha ido em jejum. Comeu devagar, mastigando bem os alimentos, dando preferência ao suco e às frutas e evitando comer muita comida pesada.



Continua...







Obs. Imagem da internet
Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 23/05/2010
Reeditado em 19/04/2011
Código do texto: T2274689
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.