A SAGA DE JORGE - PARTE II

Continuação...

Quando terminou, voltou ao quarto, escovou os dentes, passou perfume no corpo, verificou se estava levando tudo que precisava, despediu-se da esposa e dos dois filhos e foi para a esquina esperar uma moto-táxi. Olhou no relógio: ele marcava 10h40min. O sol estava a pino. Debaixo da marquise do estabelecimento comercial em que se encontrava, alguns conhecidos conversavam para passar o tempo. Dentre os que estavam lá, pelo menos dois deles, pais de família, estavam desempregados. E, para passar o tempo, sem terem o que fazer, vinham jogar conversa fora, tomar uns aperitivos ou até mesmo pegar um “bico” e arrumar uns trocados para comprar o “feijão” do dia. Assim era a realidade de muitos que moravam naquele bairro, se lembrou Jorge. Era comum ver pai de família ter que se deslocar de sua cidade para ir procurar trabalho fora até do seu estado. Com isso, passavam anos fora de casa. Muitas vezes, quando chegavam, os filhos já estavam grandes. Isso quando não terminava o casamento, às vezes, por motivo de eles arranjarem outra mulher onde estavam e por não quererem voltar e viver a mesma vida; outras vezes, eram as próprias esposas que, diante da solidão, arranjavam novos parceiros e não queriam mais a volta de seus antigos companheiros. No final, prevalecia a lei da sobrevivência, em todos os sentidos.

Uma moto-táxi parou. Jorge subiu e disse para onde queria ir. Assim como fez, logo cedo, ele foi na direção primeira de onde tudo tinha começado. No caminho, seu pensamento estava voltado apenas para a sua viagem. Precisava que tivesse, lá na parada onde todos costumavam pegar, um carro alternativo que fosse para o seu destino. A moto rodou os quilômetros que separam a sua casa da Policlínica, onde ele havia realizado os seus exames, em pouco mais de 15 minutos. Ao descer da moto, já foi dando os R$ 3,00 reais (três reais) ao seu condutor. E, sem perda de tempo, adentrou ao recinto, indo diretamente para o local onde se entregavam os resultados dos exames. Jorge ia com o coração na mão. E se a enfermeira não cumprisse com o trato de lhe entregar os exames naquela hora? Ele estava “frito”. Ia, mais uma vez, lamentar o tempo e sofrer as consequências da falta dele. Ao chegar ao local, a viu. Ela também o viu. De onde estava ela lhe acenou espalmando a mão pedindo-lhe um “tempo”. Jorge aliviou o coração. Se o gesto era para esperar, isso significava que ela havia cumprido com o trato. Esperou. Foi uma espera longa e nervosa. O pensamento de Jorge ia do negativismo ao melhor do positivismo, tudo em frações de segundos. Finalmente, depois de 20 longos minutos, ela apareceu, trazendo nas mãos, um envelope de cor amarela, em tamanho médio e, por fora, ele estava encoberto por um invólucro de plástico lacrado.

– Pronto, senhor Jorge. Aqui está. O senhor é um homem de sorte, pois os especialistas clínicos não fizeram objeções com relação ao prazo de entrega, apesar de não ser norma de eles aprontarem antes do período da tarde. Estão todos aqui. Boa sorte!

Jorge agradeceu, colocou o envelope dentro da pasta e, quando ia saindo, a moça ainda lhe falou:

– Ah! E não se preocupe com os resultados. Estão todos dentro da normalidade.

Jorge agradeceu a informação, pois não teria que abrir e olhar com olhos de leigo e ficar tentando adivinhar o que significava isso ou aquilo, escrito em textos acadêmicos, específicos.

De onde estava para onde ia tentar pegar uma condução para a capital, o percurso era mínimo, se comparado aos percursos que ele estava acostumado a cumprir todos os dias. Por isso, foi andando mesmo. E, não adiantava muito pegar uma moto-táxi, pois o trânsito àquela hora estava confuso, devido ser hora do término do primeiro expediente. Portanto, o melhor era ir a pé, cortando caminho e evitando os engarrafamentos.

Assim, driblando os carros, encurtando o caminho, logo ele chegou ao ponto de alternativos. De cara, já viu um automóvel parado à espera de passageiros. Um bom sinal, pensou. Aproximou-se do seu motorista.

– Bom dia! Tem algum transporte para a capital nesta hora? – disse olhando para o relógio. Eram 11h30min.

– Bom dia, respondeu o homem ao lado do veículo. Tem o meu. No entanto, eu acho muito difícil a gente ir agora, pois o senhor é o primeiro passageiro que me procura e, como o senhor mesmo sabe, só compensa fazer a viagem se for com os quatro passageiros que a condução permite.

Jorge não pôde responder. O que podia fazer era esperar. Esperar que aparecesse mais passageiros à procura de ir à capital e naquele horário. Como era o destino! Com todo o esforço feito e ainda assim ele se via emperrado na parte onde deveria fluir mais rápido: a condução.

– Sente-se aí, senhor. Vamos esperar e torcer para que apareça mais gente querendo viajar. Olha, pela experiência que eu tenho, vai ser difícil, mas, quem sabe? Pode ser que aconteça um milagre – disse, entre um sorriso e uma meia vontade de que o milagre acontecesse de verdade, o jovem motorista, também prestador de serviço.

– Tem razão numa coisa, motorista. Milagres acontecem. Pode acreditar, disse Jorge, convicto que precisava, de fato, de um milagre.

Enquanto o milagre não acontecia, Jorge fez os cálculos de quanto tinha no bolso. Contado os gastos com as motos-táxis, ele tinha no bolso a quantia de R$ 47,00 (quarenta e sete reais). Desse dinheiro, R$ 35,00 (trinta e cinco reais) ele teria que entregar ao serviço de alternativo. Porém, tinha suas vantagens andar nesse tipo de transporte: ele ia deixar na porta da pessoa ou no lugar que a pessoa indicasse. Com isso, economizaria dinheiro que gastaria com coletivos ou táxis lá na capital, pois serviço de moto-táxi não tinha por lá, o que encarecia os custos com serviço de translado interno.

“Bem, de qualquer forma, eu estou mal de dinheiro”, pensou. “Ficar com R$ 12,00 (doze reais) no bolso e, ainda por cima, ter que pagar deslocamento que, com certeza, irei ter, não é animador”, continuou com o seu pensar. “Tem nada não, quando chegar lá na Casa do Professor, eu consigo dinheiro emprestado de algum amigo sindicalista”, concluiu.

De repente, o celular do motorista toca. Jorge fica atento para a conversa e, percebendo que o diálogo é com relação à viagem, ele se anima. O motorista olha para ele e aponta o polegar para cima. A conversa não dura muito. Ao desligar o celular, o motorista olha para Jorge e diz meio que incrédulo:

– O senhor é um homem de sorte! Sabe quem me ligou? Foi um embolador de coco (espécie de cantador de improviso e de rimas) que veio cantar na Festa de Santa Luzia. Ele está com mais dois amigos querendo ir agora para Natal. Acabaram de receber o dinheiro pela apresentação e estão querendo ir embora o mais breve possível. Com o senhor a lotação se completa. Vamos?

Jorge agradeceu a Santa que, com certeza, tinha uma parcela no milagre alcançado por eles.

Entrou no carro e foram, os dois – motorista e passageiro –, pegar os outros três ocupantes que faltavam.

Como o carro já estava abastecido, pneus calibrados e os itens de segurança verificados, assim que os três emboladores de coco entraram no veículo, esse zarpou rumo ao destino tão esperado.

No início da viagem, o silêncio se fez companhia entre os ocupantes do veículo. Na verdade, o silêncio só era quebrado pelo silvo constante do vento que entrava pela janela do mesmo e pelo ronco do motor sendo acionado ao seu limite permitido. Porém, quando as coisas foram se normalizando, quando os ocupantes perceberam que a distância a ser cumprida era longa demais para tanto silêncio, as conversas começaram a fluir.

– Cara, disse um dos emboladores, a Festa da Santa estava demais! Era gente por tudo que era canto! Menino, a procissão foi uma coisa espantosa. Nunca vi tanta gente andando junta. Parecia um mar de pessoas. E, na hora do show, na noite anterior? Nunca havia embolado coco para tanta gente! Graça a Deus, e a Santa Luzia, eu estou voltando para casa com o feijão do mês garantido.

Jorge entrou na conversa falando das festas que havia participado, sempre lembrando que a cada ano que passava o público aumentava, as novenas eram mais procuradas, a parte profana, com suas barracas, cada vez mais sofisticadas e, para completar, o concurso tão esperado da Mais Bela Voz se esmerava na inovação tecnológica.

– Verdade, senhor, disse o embolador. Já tinha vindo antes e, desta vez, está tudo mudado, para melhor, claro.

A conversa continuou no mesmo tom. Jorge confidenciou porque estava indo à capital, e contou, também, a sua aventura até aquele momento. E, depois de eles rirem com a sua história, ele também confidenciou que escrevia versos em forma de poesia de cordel e, para atestar o que falava, recitou alguns para eles ouvirem.

– Excelente! O senhor faz, de fato, literatura de cordel. – disse um dos emboladores.

Assim, eles chegaram à metade do destino: a cidade de Lajes. Encravada ao pé do Pico do Cabugi – que em tupi-guarani significa “peito de moça” –, foi por muitos anos o ponto mais alto do Rio Grande do Norte, com cerca de 500 metros de elevação, sendo considerado o único vulcão extinto do Brasil – a cidade é o ponto onde a maioria dos motoristas faz parada para descansar um pouco, tomar um café ou uma água. No caso deles, como se tratava do horário, entre meio-dia e meia e treze horas e meia, pararam para almoçar.

Todos os ocupantes do veículo desceram, esticaram as pernas e se dirigiram para o interior do restaurante que, àquela hora, estava apinhado de gente, pois dois ônibus estavam estacionados ao lado. Jorge, antes de entrar, aproveitou para ir ao banheiro. Na volta, não quis entrar. Não podia se dar ao luxo de almoçar. Tinha comido em casa e a fome não era tão grande. Por isso, ficou sentado em uma das mesas colocadas na parte exterior do restaurante.

Estava concentrado em seus pensamentos, olhando para o asfalto onde passavam carros, caminhões e as grandes carretas quando ouviu a voz de um dos emboladores de coco, chamando-o. Para não parecer mal-educado, Jorge se levantou e foi ao encontro do rapaz que o chamava insistentemente. Assim que chegou, o versátil poeta convidou-o para almoçar junto com eles. Jorge agradeceu a gentileza, mas recusou o convite.

– Meu amigo, não se preocupe. Eu estou convidando, eu estou pagando. A festa foi boa, não se preocupe, disse o rapaz, já sabedor da real situação de Jorge.

– Bem, eu vou aceitar apenas para não magoá-lo com a minha negativa, disse Jorge. Assim fez, pegou um prato e serviu-se de saladas e verduras, um pouco de arroz e um pedaço de frango assado. Quando passou para pesar, o valor foi de apenas R$ 5,00 (cinco reais).

Comeram, todos, na mesma mesa. O motorista contou um pouco de suas histórias no percurso que fazia. Algumas eram hilárias, outras traziam o sofrimento estampado no rosto de quem ia à procura da saúde. Falou também dos riscos que envolviam a profissão, das vezes que tinha sido obrigado a vir debaixo de chuva torrencial, com a estrada toda esburacada, enfim, naquela conversa, Jorge passou a ter uma visão mais positiva e compassiva do profissional que guiava um transporte e, com ele, dava de comer a sua família. Em certo aspecto, o motorista é o senhor do destino de todos aqueles que se encontram no interior do veículo. Todos ali dependem de sua destreza, raciocínio, experiência e agilidade diante do inesperado. Só se conhece um motorista, de fato, quando há perigo na estrada. E, para quem não dispunha de automóvel próprio, ou condições de trafegar em distância que o combustível pesasse no bolso, o bom era ter a sorte de se pegar com um bom profissional do volante. Aquele, com certeza, era um deles.

Quando terminaram o almoço, o rapaz mais falante dos emboladores pegou os tickets de cada um deles e foi ao caixa registrador. Lá, sem cerimônias, pagou por todos eles. Isso significava que a dele e a do motorista tinham sido incluídas.

Enquanto dois deles fumavam seus cigarros, Jorge olhou o bendito relógio: eram 13h30min. “Bom, na pior das hipóteses, eu estou no horário. Ainda dá para fazer algum exame quando chegar lá”.

Voltaram para o carro e, consequentemente, para a estrada, assim que os outros três passageiros se dispuseram a isso.

Jorge ia sentado na lateral direita, logo atrás do carona que ia ao lado do motorista. Do seu campo de visão, aproveitando que todos estavam envolvidos com os seus próprios pensamentos, ele passou a fazer uma retrospectiva breve de sua vida de professor.
Lembrou-se do primeiro emprego de educador. Foi na E.E. Francisco Antonio de Medeiros, substituindo um professor titular. Em troca da metade da remuneração, paga pelo titular, ele dava a carga horária do mesmo. Apesar das condições difíceis, foi nessa época que ele adquiriu experiência em lidar, diretamente, com o público. Assim, já tendo adquirido o manejo, ele pediu para os amigos divulgarem, entre os pais conhecidos, que ele dava aulas particulares. Com isso, somava mais um pouco de grana, no final do mês, e ia sobrevivendo.

O carro fez uma manobra arisca para desviar de um buraco na pista e isso o trouxe de volta de seus pensamentos. Olhou para a janela do carro, à direita do mesmo, e viu, lá longe, no pasto, os animais apascentando. Ao redor, as aves a fazer companhia. Ele sempre se admirava com essa convivência pacífica entre os bichos. Parecia que eles raciocinavam e percebiam que viver em coletividade, uns ajudando aos outros, era o melhor meio de sobreviver às intempéries da natureza e ao desgaste do tempo. Toda vez que ele passava ali, observava o trabalho de limpeza que as aves faziam nos animais, esses, bois e vacas. O interessante era que os bichos ficavam parados esperando o fim da “vistoria” e, consequentemente, da limpeza, para poderem sair de perto das aves. E elas não se faziam de rogadas: subiam nas costas das reses e, através das bicadas, iam retirando os carrapatos que tanto incomodavam os bichos maiores. “E nós é que somos civilizados!” – sorriu Jorge ao reconhecer a total falta de senso coletivo da maioria dos seres humanos.

Era engraçada essa questão, pensou. O ser humano só sobreviveu ao tempo passado, aquele da pré-história, porque se aliou a outros seres e passou a conviver em grupos, se ajudando mutuamente. Assim, eles conseguiram superar os grandes obstáculos da busca de comida – pois os animais eram enormes e ferozes –, das adversidades da natureza que lhes eram desfavoráveis, assim como, ao viver em bandos, eles se reproduziam com mais facilidade, repondo, de certa forma, os que sucumbiam às desventuras da própria época em que viviam.

E hoje, continuou em seu raciocínio – e para si – Jorge, o homem faz de tudo para se isolar do seu próximo. Inventa a tecnologia que o permite ver e ouvir pessoas que estão do outro lado do mundo, ao mesmo tempo em que não atende a porta para o seu vizinho, chegando ao fato de não saber quem mora ao seu lado. E, quando quer ver ou falar com alguém, ele simplesmente telefona ou passa um e-mail. “A sociedade está se transformando num invólucro hermético onde a senha está sendo deixada de lado, esquecida e, daí a pouco não será possível mais resgatá-la”, completou a sua filosofia superficial sobre a humanidade e os seres da natureza.

Finalmente, Natal. Enfim, estavam chegando. Como fosse uma ordem mandada pelo cérebro, o corpo de Jorge passou a ter arrepios constantes. A ansiedade, o medo de acontecer algo que não tivesse ao seu alcance para solucionar, levava o seu organismo a experimentar estranhas sensações: ora estava eufórico com a possibilidade de estar perto do desfecho de ser nomeado em seu novo emprego; ora se compadecia e se lamentava prevendo algo negativo na sua chegada. “Apenas superstição besta!”, cogitou Jorge, abanando a cabeça de forma a espantar tais pensamentos.

– Bem gente, disse o motorista, primeiro vamos deixar dois emboladores de coco ali, na frente, em Neopólis. Em seguida, no mesmo caminho, o terceiro embolador de coco lá no Via Direta, certo?

Todos assentiram que sim. Jorge já havia dito ao motorista onde deveria ficar. Só restava esperar o “descarrego” dos outros passageiros e, depois, o dele próprio. Enquanto o caminho não era encurtado em sua chegada ao local, Jorge ia olhando o movimento na rodovia e em suas adjacências. Como o mundo capitalista era dinâmico! Da outra vez que andara por ali ainda não havia o que ele estava vendo agora: eram construções gigantescas de novos supermercados, fábricas diversas e concessionárias de automóveis. O progresso imprimia um ritmo fortíssimo ao meio ambiente. A Mata Atlântica, antes preservada, agora não passava de mera lembrança dos mais velhos. Por toda parte prevalecia o poder do capital, com suas imobiliárias loteando o que ainda restava de terreno desocupado.

O carro, de repente, parou. Desceram os dois primeiros passageiros.
Deram-se adeus e seguiram, pela passarela, para seus destinos.
Talvez, pensou Jorge, nunca mais voltasse a vê-los de novo. Como a vida era estranha! Conhecemos pessoas – e até gostamos delas – e, de repente, elas somem. Passam em nossas vidas e não voltam mais a passar. É como se fosse o trem da vida: alguns sentam no vagão ao lado e nós nem os conhecemos durante a viagem. Assim como, os que sentam no mesmo vagão que o nosso, nem sempre podemos sentar ao lado deles para conversarmos. Pelo contrário, passamos a viagem inteira e não nos cumprimentamos. Muitos descem na estação primeiro que nós e nós nem os notamos descer. Outros, no entanto, quando estão ao nosso lado, nós nos tornamos seus amigos. Fazemos festa, admiramos, torcemos, vibramos e até tomamos as dores, em determinados momentos, quando eles precisam de nós. Esses, ao descerem nas estações antes que nós, nós sentimos, choramos e, na despedida, o coração parece que vai morrer de tanta tristeza.

O carro voltou a andar. Jorge continuou a fixar o olhar no progresso. Lembrou-se, ao passar pelo viaduto que levava os carros para o lado de Ponta Negra, que um amigo seu, o professor Raimundo, lhe dissera um dia: “Jorge, aqui neste lugar, até o ano de 1976, era só mato. A selva ia daqui até a beira da praia. Só existia uma estradinha de areia para levar os banhistas que se aventuravam, nesta mata, a ir até o morro do Careca. Hoje, é uma selva sim, mas de pedra. Onde antes havia a beleza natural de suas árvores frondosas que serviam de sentinelas para os invasores, hoje existem os arranha-céus e seus preços elevados de moradia. O homem está devastando a natureza! E olha que só faz mais ou menos uns 300 anos que ele, o homem, começou a intervir na natureza. Pobre Terra! Que adiantou passar 5 bilhões de anos para moldar tudo isso e entregar de presente aos donos dela? Deus, na sua infinita sabedoria, talvez não tenha avaliado o significado de Suas palavras quando disse: ‘que o homem reine sobre todas as coisas’”.

O carro deu outra parada. Desta vez desceu o terceiro embolador de coco. Despediu-se de Jorge desejando muita sorte e dizendo que, no ano seguinte, estaria de volta à terra de Santa Luzia e fazia questão de conversar dois dedos de prosa com o futuro técnico do MP.

Pronto. No carro só ficaram Jorge e o motorista. Ao sair dali, o carro seguiu na direção do Ministério Público. Jorge apenas informou que o local era na Candelária, portanto, já tinham passado pelo local.

– Não se preocupe, disse o motorista. Se eu for por aqui pelo Machadão corto caminho e se torna pertinho. Sem problemas!

Jorge olhou no relógio, como de costume: estava pertinho das quinze e trinta. Como tinha combinado com o César, ele, assim que chegasse a Natal iria logo deixar os documentos que já estavam em seu poder e receber orientação dos que ainda faltavam para ele providenciar na terça, último dia de prazo para seu ingresso (ou não) no novo ambiente de trabalho.

O carro contornou o viaduto que dava acesso ao estádio de futebol e retornou pela Prudente de Morais, em direção a Candelária. Jorge se deliciava com as estruturas arquitetônicas dos prédios por onde eles passavam. Eram construções belíssimas, moldadas para oferecer conforto e praticidade para quem ali morava. Percebeu, no entanto, os grossos portões de ferro e as guaritas de vidros e os seus seguranças. “O homem vive cercado de homens para lhe dar condições de viver uma vida mais tranquila”, pensou.

O carro, finalmente, chegou ao seu destino. O prédio a sua frente era imponente, grandioso. Todo revestido em mármore, o seu aspecto arquitetural mostrava a seriedade do poder a ele inferido. Jorge, quando o motorista parou, desceu e pagou os R$ 35,00 (trinta e cinco reais) pela passagem de sua cidade até ali. Era barato, não restava dúvida, mesmo porque, se fosse para pagar um táxi da rodoviária até o prédio onde ora se encontrava, teria que desembolsar, no mínimo, uns R$ 15,00 (quinze reais). E esse dinheiro ele não iria ter de forma alguma.

– Obrigado! – agradeceu Jorge. Espero que você consiga, logo, os passageiros de volta e que a viagem seja tranquila, assim como foi a da vinda.

– Obrigado, seu Jorge. Se Deus quiser, será. – respondeu o jovem motorista, acenando para ele e, rapidamente, saindo em direção à rodoviária. Lá, com certeza, iria esperar, pacientemente – em um lugar pré-determinado, e longe das vistas dos fiscais urbanos –, por passageiros que quisessem ir para a cidade de onde ele havia vindo, ou seja, a cidade de Mossoró.

Jorge olhou, depois que se viu sozinho, para a entrada do prédio a sua frente. Pomposo, foi a sua primeira impressão. Dirigiu-se, então, para o hall. Na porta, dois seguranças armados. Era de praxe. Quando se aproximou dos mesmos, deu boa tarde, sendo, imediatamente, correspondido, com educação, pelos homens que faziam as suas atividades preventivas. Entretanto, ele – Jorge – observou que cada um deles lhe fez uma vistoria completa, discreta, mas eficaz, de sua figura e valise, demonstrando, os dois, conhecerem bem o ofício que desempenhavam.

– Senhores, eu gostaria de falar com o senhor César, dos recursos humanos, disse, se dirigindo aos dois.

–Pois não, cavalheiro, respondeu o segurança que estava postado do lado direito da porta de quem ia entrando. Posso, no entanto, saber o que o senhor deseja com ele?

Jorge compreendeu que a segurança, de fato, funcionava. Não bastava apenas você dizer com quem gostaria de falar. Era preciso que você dissesse o conteúdo – ou parte dele – para ser encaminhado ao mesmo. Assentiu que isso se fazia necessário. E até elogiou – para si mesmo – o profissionalismo dos mesmos, já que, em nenhum momento se sentiu incomodado com o interrogatório a que fora exposto.

– Eu fui convocado para assumir uma vaga no Ministério, como técnico, e estou aqui para entregar uma parte da documentação exigida, e receber, do senhor César, orientações para prosseguir com o restante da documentação.

– Ah, pois não, senhor. A sala do seu César é no primeiro andar do prédio e de número 108. Lá, o senhor irá ser recebido por uma assistente que lhe encaminhará para a pessoa com quem o senhor deseja falar.

– Obrigado pelas informações e pela educação em transmiti-las, falou Jorge, relembrando os episódios que ele tanto refletiu sobre atendimento do setor público estadual e do setor público federal.
Realmente, tinha uma grande diferença no atendimento.

Assim, pensativamente, ele subiu as escadas que o levavam ao primeiro andar. Quando lá chegou, o corredor era extremamente limpo e, em seu piso de mármore, um tapete que o encobria, pelo centro de quem passava, dava um ar majestoso ao ambiente. Um misto de sóbrio e magnificente decorava aquele andar. Visualizou enormes colunas que davam sustentação ao andar, todas elas em estilo grego-romano, como a dizer que o direito nascera por lá e, nas paredes, quadros de grandes vultos históricos que foram destaques, em suas áreas, através dos tempos. Drácon (séc. VII a.C.), Sólon e Clístenes (séc. VI a.C.) estavam lá. Jorge lembrou-se que foram eles os primeiros legisladores gregos a utilizar a justiça de forma escrita, diferentemente de como era empregada pelos reis, essa de maneira arbitrária e até, para os nossos dias, espantosa. Segundo ainda se lembrava, os imperadores impunham a sua vontade e a vontade divina para justificar as leis orais ditadas por eles. Os três não. Eles tornaram a justiça uma regra comum a todos, com norma racional, sujeita à discussão e modificação, portanto, a lei escrita passava a encarnar uma dimensão propriamente humana.

Sim, refletiu Jorge. Entretanto, o direito mesmo nasce na Roma Antiga, lembrou-se ele, com a Lei das Doze Tábuas, que foi um documento para a posteridade dos corpos jurídicos do Ocidente e não apenas para a História de Roma.

Ainda olhando os quadros – alguns deles, completos desconhecidos, porém, com certeza, de grandes figuras do Direito – Jorge chegou à sala 108. Na antessala, uma jovem senhora, elegantemente vestida, estava sentada por trás de um birô, cujo tampo, era de vidro.
Extremamente moderno, em cima, um monitor de computador. Um telefone sem fio, duas ou três revistas no lado inverso do telefone, uma agenda e teclado do próprio monitor.

– Boa tarde, senhora. Por gentileza, o senhor César? Sou Jorge, de Mossoró. – se apresentou, sentindo a adrenalina subir um pouco mais.

– Boa tarde, seu Jorge, disse a charmosa atendente. Queira me seguir. O senhor César está a sua espera.

Jorge a seguiu até a abertura da porta da sala onde se encontrava o senhor César. Neste intervalo, o cheiro do perfume francês, que a encantadora funcionária usava, estava deixando-o inebriado e convicto de que um dos prazeres do olfato é usufruir de fragrâncias tão distintas das demais. Aquela, por exemplo, devia ter sido extraída de alguma planta só nascida nos montes Olimpos – morada dos deuses.

A porta abriu-se em seguida. Seus pensamentos foram abruptamente interrompidos para dar lugar à realidade da figura que vinha na sua direção, para cumprimentá-lo.

– Jorge, que prazer!- falou César. Seja bem-vindo!

– Obrigado, César. Pois é, demorei, mas cheguei, respondeu Jorge.

A porta já havia sido fechada atrás deles, pela atendente, e César indicou uma cadeira para Jorge sentar-se.

– Trouxe a documentação? – perguntou César, assim que se sentou na cadeira de sua mesa de trabalho.

– Sim, uma parte, disse Jorge. O restante eu devo tirar aqui. Ainda tenho mais um dia, não é?

– Sim, tem. Na verdade, você tem até as 14h00min da quarta-feira, que é o prazo máximo para que seu nome seja incluído no Diário Oficial e seja publicado antes do recesso. Se por acaso você não conseguir trazer toda a documentação até quarta-feira, no horário previsto, infelizmente, você perderá a vaga. E, por mais que eu sinta, nada poderei fazer. São as regras do jogo. Aliás, continuou César, você é um sortudo, pois nem de longe você imagina como foi que eu consegui seu telefone depois de tanto tempo. Então, se você quer esse emprego, e eu sei que você quer, caia em campo para providenciar o restante da papelada.

Jorge compreendeu o recado. O que ele, César, estava fazendo era algo que, talvez, ele não fizesse por mais ninguém. Até prorrogar o prazo ele tinha acabado de prorrogar. Isso, sem sombra de dúvidas, o motivava ainda mais, ao mesmo tempo em que lhe dava uma responsabilidade extra. Não podia decepcionar. Não. De forma alguma.
Entregou a documentação que levava. A cada uma delas que ia entregando, várias perguntas eram feitas. Respondeu a todas, inclusive, citando os pormenores de sua aventura. César parecia gostar daquela conversa, observou Jorge. Enquanto ele olhava a documentação para ver se estava correta, Jorge passou a analisá-lo melhor. Era um homem de altura razoável, talvez entre um metro e setenta, um metro e setenta e cinco, cor clara, ligeiramente calvo, aparentando estar em boa forma física e seu semblante demonstrava ser de uma pessoa em quem se podia confiar. Passava essa imagem: a de um homem confiável. A sua sala era simples, porém bem arrumada. Cada coisa em seus devidos lugares e o cheiro era agradável.

Novamente foi interrompido em suas divagações, pelo tilintar do telefone na mesa do chefe do RH. Aproveitou esta interrupção para avaliar sua condição financeira. Tinha, no bolso, apenas R$ 12,00 (doze reais). Saindo dali, ia direto para a Casa do Professor, no Tirol. Portanto, dali a pouco estaria desfalcado de mais R$ 2,00 (dois reais). Não tinha problema, avaliou, o pior que podia acontecer era ele pedir dinheiro emprestado e não conseguir. Desviou o pensamento. Não era hora para se preocupar com esses detalhes, ajuizou.

– Bem, até aqui está tudo certo, disse César, se levantando. “Jorge, o restante da documentação será fácil você tirar aqui em Natal. Portanto, te desejo sorte e espero você, aqui, na quarta-feira, até as 14h00min. Se você me der licença, fui chamado, pelo telefone, para uma reunião com o Promotor”, completou, rodeando a sua mesa, estendendo a mão a Jorge e fazendo-o entender que, de fato, ele precisava se retirar para o andar do seu superior.

– Ok, César, falou Jorge apertando a mão do (talvez) futuro companheiro de profissão e se dirigindo à saída de sua sala. Na sala ao lado, ao passar por ela, o cheiro embriagador do perfume da atendente se fez penetrar em suas narinas. Era um cheiro devassador para pobres mortais como ele. Lembrou-se sobre as lendas das sereias que, em alto-mar, seduziam, com seus cantos, os marinheiros desavisados e que não se amarravam aos mastros das velas e, muito menos, não vedavam seus ouvidos para não ouvi-las. Talvez, acompanhado dos cantos, elas usassem aquele tipo de perfume. Assim, ficava irresistível não cair na água e ir à busca, no fundo do mar, daquele cantar e, quem sabe, do cheiro do perfume que elas usavam.

Ainda sentindo o cheiro pelo corredor, Jorge veio conversando com César até o início da descida dos degraus para o térreo. Lá, despediram-se. Jorge desceu e César subiu. Apenas uma metáfora, brincou para si mesmo. Quem sabe se, em estando empregado ali, um dia ele subisse junto com o companheiro. Aliás, isso seria o lógico. Estando na repartição, em dia de reunião, ou de chamamento, ele, fatalmente, seria convocado a subir.

Na saída, perguntou aos seguranças, aonde poderia pegar um coletivo que passasse na Praça Cívica. Foi informado, pelos mesmos, que todo ônibus que passa em frente ao prédio, passa na referida praça.

Com sua mochila a tiracolo, R$ 12,00 (doze reais) no bolso e uma vontade enorme de descansar da viagem e, com isso, coordenar melhor as atividades que iria fazer no dia seguinte, Jorge olhou para o papel que lhe fora entregue por César. Lá, estava todo o restante da documentação que iria precisar tirar e os seus respectivos lugares.

– Ainda bem, pensou. Tendo os lugares, facilita minhas idas e, até, o meu dinheiro, pois evito gastar mais do que o necessário. Riu de sua infantilidade. Gastar mais o que do quê? Ele já não tinha como gastar mais nada! – completou seu raciocínio.

O ônibus finalmente passou. Ele deu com a mão, ele parou, ele entrou e o mesmo saiu em disparada até o próximo ponto. Era sempre assim. Os ônibus das capitais andavam numa corrida desenfreada à procura de cada ponto de parada. Era alucinante o seu corre-corre. Cada motorista daqueles tinha os nervos de aço, pois andavam no limite da velocidade permitida e, mesmo assim, não causavam acidentes. Eram profissionais de verdade.

Sentado em uma poltrona, tendo ao lado, uma senhora já de meia-idade, ele olhava a cidade pela janela do seu lado. O vai-e-vem das pessoas, o ritmo acelerado da capital se mostrava por inteiro na multidão que caminhava, apressadamente, pelas calçadas de suas avenidas. Eram pessoas que passavam despercebidas. Ninguém as notava. Isso era um reflexo de quem vivia na cidade grande. Não tinham tempo para nada, muito menos de fazer amizades. Por isso, cada uma daquelas pessoas poderia dizer que estava sozinha no mundo, pois ninguém conhecia ninguém e ninguém tinha tempo de conhecer alguém. A selva de pedra engolia a coletividade, tornando o individuo único, apesar de toda aquela multidão.

O ônibus, finalmente, chegou ao seu destino. Jorge desceu e se dirigiu para a rua onde ficava a Casa do Professor. Não era distante. Poucos quarteirões. Poderia ter descido antes, mas estava tão envolvido com seus pensamentos que nem notou que a rua havia passado. Não tinha nada não, disse.

Depois de uma caminhada de uns 15 minutos, ao dobrar a esquina da Ceará - Mirim, entrando à esquerda, pela Avenida Afonso Pena, número 650, Jorge percebeu, de cara, a mudança na estrutura física da casa. Havia passado por uma reforma geral. O que antes era antiquado, retrógrado, passado no tempo, hoje, estava moderno, com uma fachada nova, bem pintada, um portão que dava segurança a quem ia no seu transporte, deixando-o protegido dos maus elementos, assim como, a sua entrada estava completamente mudada. Onde antes havia madeira, o vidro estava ali substituindo. O cheiro de novo, assim que ele entrou, fez-se notar. Era o cheiro característico de pintura nova e móveis novos. Enquanto fazia o cadastro, deu para ver que a sala de estar tinha sido ampliada e, agora, cabiam mais poltronas e estava confortável para quem queria assistir televisão lá.

De posse da chave do quarto, Jorge se dirigiu à cozinha. Estava com sede. Ao entrar, viu que o espaço tinha sido mexido também. Estava mais dinâmico. E maior. Tomou água e foi para o seu quarto. No caminho, notou os quartos de casais, a lavanderia com várias máquinas para as pessoas lavarem suas roupas, um varal moderno, dois banheiros bem equipados – para os homens e, no corredor onde se encontrava o seu quarto, mais um banheiro com o conforto necessário para um bom banho.

Abriu a porta do quarto onde ia ficar. Não tinha mais ninguém. Não achou ruim. Precisava daqueles momentos de solidão para poder concatenar suas ideias. Colocou a sua bolsa na parte de cima do seu beliche e tratou de pegar toalha e sabonete para poder tomar um banho. Um banho, naquele momento, era a coisa mais importante. Estava cansado, suado, enfadado, e precisava restaurar um pouco de sua energia. Depois, ia tentar dormir um pouquinho. Olhou para o relógio. Eram 17h00min. Dali a pouco, por volta das 18h00min, ele pretendia tomar um caldo numa padaria próxima. Lá, a sopa custava, exatamente, R$ 4,00 (quatro reais). Com a toalha no ombro, o sabonete em uma das mãos, Jorge fechou a porta atrás de si e encaminhou-se para o banheiro. O banheiro permanecia vazio àquela hora. Talvez, pensou, a Casa esteja vazia. Entrou debaixo do chuveiro. A água fria que caiu lhe fez recobrar a firmeza dos pensamentos que estavam um tanto adormecidos. Foi um banho restaurador. Deste modo, parado embaixo da água que caía mansamente por sobre sua cabeça, molhando-o por inteiro, Jorge se deixou ficar. Não quis pensar em nada. Não se deu ao luxo de tentar pensar. Quis apenas que a água fria invadisse sua alma e de lá trouxesse, de volta, a sua energia. Iria precisar, com certeza. Estava assim, sem pensar em nada, quando o celular que havia levado e deixado na parede do banheiro, acima de sua cabeça, tocou. Mais do que depressa, pegou a toalha, enxugou um pouco o lado da cabeça onde ia colocar o celular, depois, imaginando ser sua esposa, pegou o celular na parede onde ele se encontrava e atendeu-o:

– Alô! Quem é?

– Jorge, sou eu, César. Tudo bem? Desculpe eu estar te ligando, mas é que eu me esqueci de lhe falar algo muito importante. Está me ouvindo bem?

– Sim, estou ouvindo. Pode falar.

Aquele “algo importante” soou como um alerta para Jorge. Como poderia algo importante não ter sido dito, a ele, por César, enquanto eles estavam juntos? – raciocinou, rapidamente, Jorge.

– Jorge, eu me esqueci de lhe dizer que, para você assumir o cargo, se faz necessário que a pessoa que estava na sua frente, na ordem de admissão, nos mande uma declaração, por escrito, de que não é do seu interesse assumir tal cargo. Infelizmente, nós já tentamos contato com essa pessoa, mas ela não se prontificou a nos atender.

– Mas, César, homem, como pode um detalhe como esse não ter sido dito desde Mossoró? Se você tivesse me alertado para esse detalhe, eu já teria providenciado o contato e, talvez, já estivesse tudo resolvido. Tem nada não. Dê-me o número do celular dessa pessoa, o nome dela e onde ela mora. Vou ver o que eu posso fazer – falou Jorge, desapontado.

– Certo. Ela é uma advogada, inclusive, é da sua cidade. O nome dela é Valéria. Espero que você tenha sorte. Nós não tivemos. O número do celular é esse. Anote aí.

Jorge, com muita dificuldade, conseguiu memorizar os números dados e, assim que César desligou o telefone do outro lado, tratou de gravá-los no seu aparelho.

Em seguida, acabou de se enxugar. Agora, o que ele tinha que fazer não requeria pressa, mas, sim, estratégia. E calma. Precisava falar com uma pessoa que era advogada, que não estava interessada no emprego e que não queria mandar sua desistência, por escrito, para o Ministério.

– Meu Deus! Vociferou apenas para si, Jorge. Como é que pode!
Quando ele pensava que seus problemas se resumiam apenas a tirar a documentação e ao dinheiro, que precisava tomar emprestado, eis que apareciam fatos novos para que ele tivesse que se preocupar com mais coisas.

Acabou de se enxugar. Voltou para o seu quarto e de lá, já sentado na sua cama, ele acionou o número já gravado no seu celular. Esperou, com uma visível impaciência, o característico toque de chamamento de linha. Finalmente, alguém do outro lado atendeu.

Jorge, pacientemente, se identificou, e foi explicando à advogada a razão do seu telefonema. Ela, no entanto, parecia irredutível. Não aceitava que, para que alguém assumisse em seu lugar, fosse preciso ela declarar sua desistência por escrito. Chegou a perguntar a Jorge se havia alguma coisa que desse sustentação a essa determinação do Ministério. Jorge, sem perder a calma, falou que não sabia dizer. Só sabia dizer que, segundo haviam lhe informado, há poucos minutos, era que, se assim não fosse feito, ele perderia a vaga.

– Dona Valéria, eu tenho certeza que a senhora está coberta de razão, porém, eu gostaria que a senhora olhasse com carinho a minha situação. Saí de Mossoró na esperança de poder assumir esse emprego e, com isso, dar mais condições a minha família, e me vejo, no momento, quase que perdendo essas esperanças. Se a senhora puder me ajudar, eu lhe seria grato para o resto de minha vida.

Do outro lado da linha se fez silêncio. Jorge rezou para que a linha não tivesse caído. O silêncio persistiu. Com medo de que seus créditos não aguentassem mais alguns minutos, Jorge passou a rezar para que a resposta, do outro lado, fosse dada imediatamente.

– Tudo bem, seu Jorge. Vou fazer isso pelo senhor e pela situação que o senhor me descreveu. Não é porque eu tenha esse dever. Na verdade, já estou fazendo a declaração. Já entrei no site e já estou enviando-a. Espero que o senhor consiga o cargo e que seja feliz.

– Obrigado, dona Valéria. Deus lhe pague. Se um dia eu puder fazer alguma coisa pela senhora, como retribuição, por gentileza, ao desligar, grave esse número de celular. Eu lhe serei eternamente grato. Boa tarde.

Quando desligou o telefone, Jorge suava. O banho havia se transformado numa doce cascata de aflição e medo que aflorou de dentro de seu corpo. Os minutos foram angustiantes. Felizmente, a compreensão da situação, por parte da magistrada, veio ao encontro da obtenção da vaga.

Agora mais tranquilo, Jorge se preparou para ir tomar seu caldo. Ia, ao passar pela recepção, ver se tinha algum conhecido hospedado ali. Se não tivesse, bem cedo, antes de ir fazer o primeiro exame, ia ali pertinho, na Avenida Rio Branco, local onde estava localizado o Sindicato dos Professores, tomar dinheiro emprestado a algum conhecido sindicalista.

De passagem pela recepção, não encontrou ninguém conhecido. De fato, a Casa estava praticamente vazia. Apenas algumas professoras estavam por lá. Não tinha nada. No dia seguinte ia conseguir dinheiro. Já tinha chegado até ali e não seria por falta de dinheiro que ele não ia conseguir seus intentos.

Caminhando e pensando, recebendo a brisa fresca da noite em seu rosto, Jorge se dirigiu à padaria onde se servia o famoso caldo que todo professor, que estava de passagem pela Casa, tomava quando estava ali. Na padaria, entrou, pegou a tigela funda e serviu-se com o apetitoso caldo. Tinha de dois tipos: de carne e de frango. Preferiu o de frango. Aproveitou as torradas de pães e colocou algumas fatias no prato por baixo da tigela. Olhou em volta. Uma dúzia de pessoas se aglomerava nas mesas, apertados pelo espaço diminuto onde se encontravam. Por sorte, ele conseguiu sentar-se em uma mesa onde havia um lugar desocupado. Pediu licença aos seus ocupantes – uma senhora e um senhor de meia-idade – e lhes fez companhia. Não quis conversa, nem tampouco prestou atenção no que os dois conversavam. Seus pensamentos falavam mais alto que qualquer conversa que pudesse atrapalhá-lo. Além do mais, o gosto do caldo estava excelente e ele não queria perder esse detalhe gustativo. Assim, ao terminar, pediu licença e levantou-se. Colocou a tigela e o prato no balcão, depois se dirigiu ao caixa para pagar.

– R$ 4,00 (quatro reais), disse a mocinha do caixa.

Jorge retirou do bolso a única nota que tinha: R$ 10,00 (dez reais). Entregou-a a jovem e recebeu de volta os R$ 6,00 (seis reais) que lhe era devido.

– Seis reais! – pensou. Só tenho esse dinheiro para qualquer circunstância que me aparecer.

Neste momento, o celular toca. Jorge, ao atender, ouve, do outro lado, a voz de César.

– Jorge, rapaz, o que foi que você fez para que Valéria mudasse de ideia e nos enviasse a declaração?

– Nada, César. Eu apenas contei a minha situação. Acho que ela se condoeu disso e prestou essa solidariedade. César, o ser humano é prestativo nesses momentos.

– Ainda bem, Jorge. Agora, graças a Deus, só depende de você. Tenha uma boa noite. Até amanhã.

– Até amanhã, César, respondeu Jorge, desligando o celular.

Quando chegou de volta, poucas pessoas continuavam na recepção. Jorge sentou-se e aproveitou para assistir ao Jornal Nacional. Gostava de estar informado. Gostava até da Hora do Brasil, por isso, quando podia lia e ouvia tudo que fosse relacionado a notícias de interesse comum aos cidadãos.

Quando o referido jornal acabou, o sono se fez presente. O bocejar constante indicava que se fazia necessário o descanso. Jorge se levantou de onde estava e se dirigiu aos seus aposentos. Ao entrar nele, percebeu que ainda continuava sozinho. Não achou ruim, assim como na vez anterior que havia pensado. Pelo menos, por experiência própria, não ia ter a companhia de alguém que roncasse ou passasse a noite falando ou se levantando. Precisava de total silêncio para descansar o máximo. O dia seguinte prometia ser de tarefas árduas. Antes de dormir, lembrou-se: cumprira com mais um dos trabalhos de Hércules.

O dia da terça-feira amanheceu com um sol a pino. Jorge, ao ouvir o despertador do seu celular, levantou-se rapidamente. Era um costume que tinha. Ao ouvir o despertador que ele colocava, a primeira coisa que fazia era se levantar. Se ficasse deitado, podia voltar a dormir. Aprendera isso com um erro seu e, por isso, não errara mais.

Munido de escova, pasta, sabonete, toalha e roupas limpas, ele se dirigiu para o banheiro. A água acabou de acordá-lo. De volta para o quarto, acabou de se aprontar. Precisava de todo tempo do mundo e, por isso mesmo, não tinha tempo a perder. Colocou as suas coisas na mochila, depois a deixou em cima de sua cama e dirigiu-se para o refeitório. “Preciso tomar um café reforçado. Com certeza não terei tempo nem dinheiro para almoçar”, pensou. Assim fez. O café estava delicioso, acompanhado com cuscuz e salsichas, tapioca, pãozinho francês, frutas e um suco de goiaba. Devorou tudo.

Na rua, olhou para o papel que César havia lhe dado. A primeira coisa a fazer era bater um raio “x” do tórax, no Instituto de Radiologia, que ficava pertinho de onde ele estava. Aliás, na mesma rua, no quarteirão seguinte. Quando chegou lá, a atendente, uma senhora simpática, o atendeu.

– Bom dia. Em que posso servi-lo? – perguntou a distinta senhora.

– Bom dia. Preciso bater um raio “x” do tórax. – respondeu Jorge.

– Por convênio ou é particular? – continuou a atendente.

– Particular

A senhora retirou de uma gaveta, uma tabela. Passou os dedos por sobre vários tópicos e, quando chegou num deles, parou. Verificou com a máxima atenção e anunciou:

– O raio “x’ do tórax, em situação particular sai por R$ 120,00 (cento e vinte reais).

Jorge quase cai para trás. Cento e vinte reais! Onde ele ia arranjar tanto dinheiro assim?

Porém, para que a senhora não notasse a sua preocupação, respirou fundo e explicou que não era dali e, que, infelizmente, não tinha aquela quantia.

– O problema, minha senhora, é que eu preciso desse exame, para hoje, como sem falta. Olha, eu sou de Mossoró, vim chamado às pressas a Natal para assumir uma vaga de emprego. E eu preciso muito dessa vaga, pois é um bom emprego e, em eu assumindo, vou mudar a minha situação de vida, minha e de minha família, para muito melhor. Será que a senhora poderia fazer alguma coisa por mim, por favor?

Jorge olhou de uma forma tão pedinte que despertou, naquela senhora, um princípio de compaixão.

– Meu filho, o que eu posso fazer por você é colocá-lo como se o raio “x” fosse feito por convênio. Eticamente, eu não estou sendo responsável, porém, pelo lado humano eu tenho a prerrogativa de fazer algo pelo meu semelhante. E se esse algo é para poder ajudá-lo a conseguir o seu emprego, que se dane a ética. Além do mais, tem um exame pago aqui, de convênio, e o senhor que o fez não veio fazê-lo. Assim, o senhor vai fazer o exame como se fosse de convênio, pagando apenas R$ 40,00 (quarenta reais), e eu verei, depois, como farei para encaixar o exame que a outra pessoa já deixou pago.

– Obrigado, minha senhora. Costumo dizer que ainda existem pessoas gentis e caridosas, independente da situação, neste mundo de Deus. A senhora é uma delas.

A senhora encaminhou Jorge para o técnico em radiologia. Lá, depois que o técnico colocou as vestes com o aparato de chumbo e Jorge ficou por trás do visor onde a radiação lhe tiraria a chapa, a demora foi pouca. Em poucos minutos, a chapa já havia sido tirada. Jorge colocou a camisa, agradeceu ao técnico e dirigiu-se à saída. A simpática senhora o esperava.

– Pronto, aqui está o protocolo. Quando o senhor vier pegar à tarde, por volta das 17h00min, o senhor mostra esse protocolo, certo? – indicou a atendente.

– Certo, respondeu Jorge. E eu posso pagar com vier buscar?

– Não é norma. O raio “x” é pago na hora em que é tirado. Porém, como sei que o senhor está bastante necessitado, quando vier pegar, o senhor paga.

Jorge saiu dali agradecido. O ser humano ainda tinha salvação mesmo! Quanta gente boa existia no mundo! Gente prestativa, que não apenas se interessava por dinheiro e status! 

Ainda exultante por o dia ter começado bem, Jorge se dirigiu para a próxima tarefa. Uma a uma, as tarefas estavam sendo cumpridas. Riu-se, de bom humor, do que ele chamava de tarefas.
Caminhando para a próxima parada, ele tentou contar quantos “trabalhos” havia realizado. Contou nove. Talvez fosse mais. Não tinha certeza.

Na parada de ônibus, o destino para ele era o Centro Administrativo do Estado. Teria, ao chegar lá, que autenticar o seu histórico escolar. Confiante, ele entrou no primeiro ônibus que passou e que ia em direção à Ponta Negra, solicitando ao motorista que, se possível, parasse ao lado da entrada do Centro Administrativo. Em seguida, explicou ao condutor o motivo daquele pedido: era porque não conhecia muito bem as paradas de ônibus e tinha medo de passar do ponto. O motorista disse para ele não se preocupar que pararia no ponto certo para ele. “Mais uma alma boa”, respirou aliviado.

Assim que desceu no ponto, depois de agradecer ao motorista do ônibus, Jorge se dirigiu para o interior daquilo que se chamava de Centro. Era, na verdade, o conjunto de várias Secretarias de Estado, formando um conglomerado, facilitando, com isso, a vida das pessoas que tinham compromissos com o governo.

Na rampa que dava acesso ao departamento que lhe autorizava a autenticação do histórico, Jorge a comparou com uma via de penitência. Ela, a rampa, era feita de um aclive muito acentuado e impunha, a quem a subia, pesado esforço físico. Se ele a subisse duas vezes por dia, talvez baixasse o “lombo” bem rapidinho. Ficou, no entanto, pensando nas pessoas que trabalhavam ali, principalmente, os estafetas, que iam e vinham, constantemente, cumprindo as ordens, levando e trazendo correspondências. Deveriam, eles, os estafetas ou office-boys, ser todos magrinhos. Bobagem, pensou. Depois de muito esforço, chegou ao final da rampa. No lado esquerdo de quem entrava, um balcão onde um soldado militar – um sargento – dava as informações necessárias. E era preciso mesmo. Ali era um mundo. Um emaranhado de salas, em labirintos que, se a pessoa não marcasse, com novelos de lã, se perderia, com toda certeza.

Ao pedir a informação que necessitava, o policial indicou o seu caminho. Alegre e disposto, Jorge se encaminhou para a sala indicada. Ao chegar lá, abriu a porta da mesma. Sentada, lendo um jornal, uma senhora de meia-idade, de cara amarrada, que nem se deu ao luxo de levantar a cabeça para ver quem tinha chegado, continuou na mesma posição, lendo o seu jornal – em horário de trabalho –, sem se incomodar com a chegada de estranhos.

– Bom dia, disse Jorge, na esperança de que aquela servidora se dignasse a atendê-lo ou, no mínimo, levantasse a cabeça para olhar para ele.

– Bom dia, respondeu ela, sem tirar os olhos do jornal.

– Por gentileza, insistiu Jorge, eu estou precisando de um carimbo de autenticação no meu histórico. É com a senhora?

Neste momento, ouviu-se um suspiro de resignação. A servidora fechou o jornal, colocou-o dentro de uma gaveta e só então olhou para quem lhe falava. Jorge percebeu, nitidamente, no semblante dela, o desgosto que ela estava sentindo por ser tirada de sua leitura matinal. De uma forma quase que grosseira, ela retirou das mãos do visitante, o papel que ele trazia e passou a olhá-lo. De repente, um ar de satisfação inundou a sua fisionomia. Parecia que o fato que ela acabara de ver lhe vingava a intromissão daquele desconhecido ao seu ambiente “particular” de leitura.

– Primeiramente, o carimbo de autenticação quem autoriza é a escola onde “você” trabalha. Segundo, a pessoa que carimba aqui, ainda não chegou. Só chega no período da tarde. Terceiro, mesmo que ela quisesse, ela não poderia carimbar, pois o histórico está plastificado. Dessa forma, o melhor que “você” faz é voltar na sua escola, pedir um histórico novo e, em seguida, carimbar.

 Jorge não podia acreditar no que estava ouvindo. Aquela servidora estava visivelmente alegre com a sua desgraça. Notou que, no início, ela parecia chateada com a sua presença, a sua intromissão a sua leitura, mas, depois que ela, mal-educadamente, retirou o histórico de suas mãos e observou os detalhes, o seu rosto se modificou. A satisfação contida no olhar era impressionante!

– Minha senhora, eu sei que está plastificado, porém, como eu sou de Mossoró e estou distante de casa, procurei o órgão competente para tentar resolver o meu problema. De fato, se eu voltar para Mossoró, lá eu vou conseguir um novo histórico e carimbá-lo. O problema, minha senhora, é que não terei esse tempo para fazer isso. Preciso desse carimbo para hoje e, se a senhora puder me ajudar, eu lhe serei grato.

– Infelizmente, eu não posso fazer nada. Venha na parte da tarde e tente com a “chefe”. Se ela se dispuser a fazer isso – que eu acho errado, pois o documento está plastificado e, mesmo assim, a secretaria de sua escola é quem deve fazer – tudo bem. Por mim, eu não faria.

Dizendo isso a servidora retirou o jornal de dentro da gaveta do seu birô e voltou a folheá-lo como se nada ali na sala tivesse valor e a presença daquela pessoa não fosse uma justificativa para que ela procurasse resolver, da melhor maneira possível – e com educação – o que estava sendo pedido.

Ainda em pé, vermelho de raiva, Jorge se controlava para não dizer algumas verdades àquela rude servidora que, talvez, pelo fato de ser antiga no cargo, de estar perto de uma aposentadoria, de ter uma vida particular amarga – e que ela confundia com a sua vida profissional –, descarregasse, em quem ela atendia, as suas mágoas e recalques. Mas ele se controlou. Fez o contrário dela. Agradeceu o atendimento e se retirou dali, prometendo voltar no período da tarde.




Continua...



Obs. Imagem da internet













Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 23/05/2010
Reeditado em 12/04/2011
Código do texto: T2274783
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.