VIAGEM INESQUECÍVEL

O relógio velho, parado, na parede suja daquele arraial que os nativos chamavam de estação rodoviária, marcava vinte para as nove, na verdade eram quase quatro horas da madrugada daquela noite extremamente fria a meio caminho entre Campina Grande, primeira e única cidade importante no Planalto da Borborema paraibano e Juazeiro do Norte encravado na Chapada do Araripe cearense, ponto final da viagem que se iniciara no Recife e cuja duração estava prevista para dez horas, percorrendo a BR 230, conhecida nos anos 70 como a Rodovia Transamazônica que ligaria o porto de Cabedelo à cidade de Lábrea no Estado do Amazonas, bem pertinho do fim do mundo.

Ônibus semi leito, novo, com o ar condicionado funcionando às mil maravilhas. A empresa disponibilizara cobertores para os passageiros, nordestinos na maioria, acostumados às temperaturas próximas dos trinta graus, dormirem encolhidos nas poltronas. Na parada para o cafezinho em João Pessoa, durante o cigarro, conversei com o motorista. Homem simpático com mais de vinte anos de profissão e mais de três nessa linha. Durante a conversa seu Astrogildo se queixou de uma pontada na barriga. Depois riu muito falando no sarapatel que havia comido no jantar na barraca de Zefinha, bem próxima à rodoviária do Recife.

Quando paramos para o outro cafezinho em Campina Grande, Astrogildo reclamou da dor forte no pé da barriga. Aquele tipo de cólica seca que vem acompanhada apenas de suor frio e nada mais.

No frio da cabine, ouvindo o ronronar macio do motor, encolhido como os demais passageiros, adormeci. Acordei com a pancada do ônibus se enganchando numa pedra enorme já bem distante da pista em obras. Astrogildo estava desmaiado sobre o volante. Gritos por nossa senhora e pelo padre Ciço encheram o ônibus. Abri a porta da cabine e desliguei o motor. As luzes de emergência acenderam automaticamente. Acomodamos o motorista na primeira poltrona. Ninguém sabia onde estávamos. Alguém se lembrou de telefonar para o socorro. A dúvida era para quem ligar numa situação daquelas. Verifiquei no meu bilhete. Nenhuma indicação, nenhum número. Astrogildo permanecia desmaiado com aquela palidez esverdeada dos quase defuntos. Alguém disse que deveríamos ligar para o 190. O policial que atendeu informou que iria entrar em contato com a Polícia Rodoviária Federal porque assuntos com BR são da competência deles.

Um rapaz disse que se tivesse uma lanterna, iria para a pista fazer sinais de pedido de socorro. Achamos uma na mala de ferramentas e ele foi com mais dois outros fazer o sinal luminoso de SOS (três traços, três pontos, três traços, três pontos, três traços...)

A patrulha que nos atendeu, quase uma hora depois, pediu ambulância para remoção do motorista cada vez mais pálido. Com muita habilidade um dos policiais retirou o ônibus de cima das pedras e dirigiu até chagarmos naquilo que diziam ser estação rodoviária.

Naquele fim de mundo a única coisa que estava funcionando era o bordel. Fui em busca de um conhaque para tentar aquecer, pois a lanchonete da “rodoviária” estava fechada. Junto com os rapazes que estiveram fazendo sinais na pista fui para a pensão de dona Júlia. Era o retrato vivo da decadência. Aquilo sim podia ser chamado de degradação.

- Acorda meninas, tem freguês!

Pedimos uma garrafa de conhaque.

- Garrafa fechada não tem não. Só tem essa aqui e eu só posso vender na dose.

- Pois então bote quatro doses. Tem alguma coisa para tirar o gosto?

- Só se for sarapatel.

- Não. A lembrança do Astrogildo materializou-se em nossa frente. O paramédico havia diagnosticado apendicite aguda com a possibilidade de estrangulamento devido ao desmaio persistente, isentando de responsabilidade o sarapatel de Zefinha, mas o diagnóstico podia estar errado, além do mais, pelo ambiente em que estávamos não era um prato recomendável. Bebemos a primeira rodada e quando a segunda estava sendo servida, as meninas apareceram.

Sonolentas.

Uma lourinha vestida de camisola e enrolada no lençol estampado com flores grandes segurou meu braço e com voz sumida suplicou.

- Paga um café para mim. Hoje eu só comi de manhã. Não teve freguês e dona Júlia só dá comida à gente quando arruma dinheiro.

Entreguei a ela uma cédula de vinte reais e mandei-a dormir. Paguei o conhaque e dei dez reais às outras duas mocinhas. Uma morena, gorducha, com peitos fartos à mostra e a outra, magra, resfriada assoando constantemente o nariz vermelho de frio.

Estava amanhecendo quando chegou o socorro com o pessoal da empresa. Passageiros e carga foram transferidos para outro ônibus. O que nos trouxera até ali estava com a suspensão comprometida.

Astrogildo, nosso motorista, havia sido operado para remoção do apêndice e a parte do intestino comprometida pela infecção.

Agora, estável clinicamente, estava em coma induzido na UTI do Hospital Geral de Patos, mais morto que vivo.