BIOPIRATARIA
- Marcílio, oh! Marcílio.
- Hum!
- Estás ouvindo?
- O quê?
- Passos.
- É. Nós estamos sendo seguidos.
- Como é?
- Isso que você ouviu. Trate de ficar quieto. Faça de conta que não notou.
- Como é que eu posso...
- Psii!
- Estou com medo!
- Eu também estou, nem por isso estou histérico.
- Vão nos matar?
- Acho que não. Se quisessem já teriam atacado. Os índios dessa região são pacíficos
- Eu estou com vontade de correr.
- Com todo esse peso que estamos levando você acha que conseguiria bater o recorde dos 100 metros rasos?
- Pelo menos ia-me ver livre desse frio na espinha.
- Deixe de ser frouxo e continue andando.
- Falta muito?
- Não. Acho que mais uns 50 metros e nós chegaremos num local que vai dar para colocar o barco na água.
- Muito ruim esse barco.
- É o que nós temos. E onde você pensa em conseguir um melhor que esse?
- Não sei.
- Esse barco é um primor. Consegue navegar com 250 quilos de carga numa lâmina d’água de dez centímetros.
- Eu acho que estamos nos afastando do rio.
- Esse ponto é aquele meandro em forma de ferradura que o satélite mostrou. Logo depois da queda d’água poderemos navegar outra vez. Aí vamos nos ver livres desse peso.
Os dois traficantes estavam carregando o caiaque como se fora uma rede, amarrado no cano da vela, pendurado nos ombros.
A pequena embarcação de fundo chato media 2,5 metros por 0,60 de largura e 0,40 de altura. Local para duas pessoas, local para vela com mastro de três metros para vela triangular e compartimento de carga para até sessenta quilos.
Seu peso, com os remos de duas pás, mastro e vela de nylon de pára quedas e as cordas chegava aos quarenta quilos. Argolas de bronze engastadas nas pontas finas e levantadas de popa e proa permitiam que fosse carregado sem muito esforço por duas pessoas e era assim que Joab e Marcílio estavam caminhando por dentro do mato a fim de evitar a sequência de quatro quedas do Rio Aruanã Mirim, na região onde se confundem a Zona de Cocais e o Serrado do alto sertão maranhense.
No compartimento de carga, acondicionados em minúsculas caixas e gaiolinhas, muitos ainda vivos, os besouros, borboletas, formigas, abelhas, vespas, lacraias, escorpiões, lagartas, crisálidas, larvas, ovos e sementes que seriam entregues aos outros contrabandistas que levariam de avião para Brasília e de lá para os laboratórios da Ásia, América do Norte e Europa alimentando o comércio ilegal da biodiversidade que movimenta bilhões de dólares por ano.
Do lado esquerdo da trilha, um bando de marrecos Irerê levantou vôo, denunciando a presença de mais alguém além dos dois. Num ato reflexo, Joab e Marcílio empunharam as pistolas e, parados, observaram a mata sem distinguir nada, embora soubessem estar sendo seguidos desde o acampamento quando iniciaram a viagem de volta. Viram apenas o movimento da mataria embalada pela brisa morna.
- Preciso beber um gole d’água.
- Quando chegar ao rio você bebe. Vamos sair logo daqui.
O terreno encharcado denunciava a proximidade do leito do rio, refletindo os raios de sol por baixo das copas das arvores mais altas.
Quando já havia calado para navegar, colocaram o caiaque n’água e prenderam o mastro com a vela triangular. Enquanto Joab abria o cantil para beber, Marcílio sentou no banco do proeiro e ouviu o estampido e o zumbido dos chumbos passando por sobre sua cabeça enquanto o corpo dilacerado de Joab caia batendo com força na popa do barco. Nesse mesmo instante sentiu a bala penetrar em seu tórax pelo lado esquerdo e sair pelo outro lado, levando consigo parte da musculatura e estilhaços do osso do braço direito.
Atônito por conta da surpresa e a dor aguda nas costelas procurou empunhar a pistola, mas o braço atingido não obedeceu.
O homem empunhando o fuzil que o atingira e o outro com a espingarda doze que matara Joab saíram de dentro do mato. Arrastaram Marcílio para fora do caiaque e embarcaram. A brisa enfunou a vela e Marcílio, agonizante, semi-deitado no rio tingido com o seu sangue, viu o barco se afastando ao mesmo tempo em que sentia o ataque das piranhas em seu braço descarnado.