O causo do dente siso*

Precisava extrair um dente siso devido a questões ortodônticas. Então marquei uma hora com um dentista da cidade, o melhor, ou um dos melhores, que trabalham aqui na minha cidade. Cidade essa que é muito tranquila, mas deixa um pouco a desejar no sentido de oportunidades de trabalho e diversão.

Falta trabalho e não temos quase diversão. Bem, se não tem trabalho, como alguém iria se divertir sem dinheiro para pagar seus gastos? Acho que por isso que aqui tem pouca diversão. Ninguém vai ficar por aí pagando festinha pros outros. Oras, ficar abrindo pontos de diversão se não tem dinheiro para movimentar. Então, todos pagam por isso. Até quem tem um pouco de dinheiro pra gastar, não tem onde gastar. Mas indo ainda mais longe, se houvesse diversão, emprego à vontade, a cidade estaria cheia de gente, daí sérios problemas sociais ou cidade cheia de gente e cheia de problemas sociais. Isso é a mesma coisa, né? Dá no mesmo! Só queria colocar meu ponto de vista! Eu só estou sem sentido, devido a um fato perturbador: uma colega, posso afirmar amiga, que me chamou de garota ficando trash, uma pessoa trash! Quando ela me falou isso, fiquei chateada, daí percebi que nem sabia direito o que queria dizer. Então, pesquisei no nosso amigo do dia a dia, Google, descobri muitas coisas, mas a principal é que ela acha que não falo coisa- com –coisa, tipo “sem sentido”.

Era quinta feira. Acordei cedo, pronta, ou pelo menos quase para ir até o “paga-pecado,” é assim que chamo um consultório de dentista. Chegando lá, aguardei minha vez, meio desconfiada, mas segura de mim. Risos. Quando me chamaram, Bianka, logo percebi que ninguém mais tinha feito força nas pernas, ensaiando um levantar. Daí saquei o que já tinha sacado há tempo: sou eu né?.... Busquei força na lembrança de minha mãe que dizia “a beleza custa caro!” Então, forçada pelas pernas que queriam entrar, me levantei e a garota que estava de jaleco branco me deu um copinho com dois dedos de solução “não cheia mal,” um enxaguante bucal de gosto forte, que mata até bactérias da semana passada. Claro que eu já havia escovado os dentes. Não que isso seja do meu costume diário, —brincadeirinha— mas às vezes esqueço que sou obrigada a escová-los. Só quando estou apressadinha, esqueço! Bochecha pra lá e pra cá, uns dois minutos depois fui cuspir. Daí a mocinha de jaleco branco, olhos amendoados, me disse “a senhora pode entrar!” Eu senhora?! Só tenho 19 anos!! Deve ser pelo jeito que eu estava: roupa longa, olho vermelho, boca seca, bochecha inchadinha. Em consultórios que pagamos, nos tratam assim!

Daí eu me lembrei de minha amiga Ester, na época pobre, que tinha que ir ao SUS. Sim, porque SUS agora está é bom de mais, já foi pior. Ela me contou que sua mãe, que era lavadeira, adquiriu um plano de saúde daqueles que pagamos metade e a outra sai pelo SUS, então sua mãe nordestina, pé no chão, simples mulher do campo, sonhava em dar o que ela podia oferecer de melhor para sua filha caçula. Com muitas lutas, lavava, passava e ainda fazia doces e tapioca com café para vender. Ainda cuidava de seis crianças, sozinha, porque seu marido tinha ido embora pra “Sum Paulo” (São Paulo) e a deixou com essas crianças, em Fortaleza.

História de Dona Raimunda, ela era de um interior do Ceará e não conhecia a cidade, ou seja, não conhecia Fortaleza, mas sua mãe (avó de Ester) havia dito que ela deveria acompanhar seu marido para a cidade grande e assim, Dona Raimunda o fez, seguindo o pedido (ordem) de sua mãe. Mas o danado do marido acabou deixando Dona Raimunda pelas luzes intensas de São Paulo à noite. Ele estava vendo uma reportagem e, nesta mesma reportagem, foi mostrado um avião sobrevoando São Paulo à noite. Daí, já viu. O marido de dona Raimunda ficou com os “oinhos” olhos brilhantes para ver de perto essa belezura!... Então, voltou pra casa do serviço, pediu comida quentinha pra dona Raimunda, e contou a novidade. Ele tinha decidido ir tentar a vida na cidade luminosa. Disparou montão de coisa sobre como seria bom sua partida –“muié meninada fica bem, tu trabaia nas patroas e eu trabaio fazendo obra, tu vai vê, logo nos fica tudo junto, mando passagem pra tu e a mulecada, daí vamo viver bem lá, muie.” Logo o pai de Ester sumiu na vida e nunca mais mandou notícias nem de vida nem de morte, assim falava sua mãe. Dona Mundinha, como o povo a chamava, até Ester a chamava de mãe Mundinha Sua mãe a levou  pro dentista, pois, reclamava de dor e estava colocando algodão com perfume no dente. Era a única solução! Bem, chegando lá, dona Mundinha foi logo dizendo “tô pagando um planinho e deu um cartão.” A moça parece ter dito o plano era uma furada. Mesmo assim mandou Dona Raimunda entrar com a filha, que estava cheia de medo, sentou e ficou apavorada com a mão do mostro do dentista, que logo anestesiou e extraiu, sem pudor, o seu dente: nada tinha, apenas uma cárie superficial. Nunca mais ficou à vontade num dentista, mesmo pagando. Agora, como pode pagar, ela evita ao máximo entrar num consultório. Trata seus dentes como relíquias!

Como eu ia dizendo depois do bochecho a mocinha de jaleco branco me mandou entrar. Acomodei-me confortavelmente. Ele disse “oi,” e começou. Pediu isso e aquilo pra moça de jaleco branco, daí pegou a minha indicação do ortodontista. Mandou-me por uns óculos desses grandes, parecendo um besouro. Daí a moça colocou um avental sem cor em mim. Deu-me um papel, no caso de cuspir limpar. Ele, que aqui vou chamá-lo de “olho pequeno,” começo a me anestesiar. Ora anestesiava, ora perguntava se tudo estava bem. Daí mais anestesia. Depois parou e pediu que eu relaxasse, como se fosse possível diante daquelas mãos fortes e robustas.

Como seria se eu tivesse visto o rosto dele antes? Porque, quando entrei, já estava com aquela máscara que só dava pra ver os olhos pequenos, mas tinha uma sobrancelha grossa, daí valorizava um pouco seu rosto, desconhecido por mim. Ele, tão sedutor, falava manso, mas tinha uma força nas mãos de dar gosto pra esposa ou namorada, agora, pra mim, que naquele momento era paciente e estava odiando aquelas mãos e toda sua força: Esses olhos, se eu pudesse vê-los em outro lugar, talvez até me apaixonasse. Agora, aqui, morrendo de medo e dor (sim, porque exatamente naquele momento em que pensei em me apaixonar, também pensei em fugir)!Não; na sala grande e branca a menina até some: E ele, o olho pequeno, também está todo de branco, como se fosse médico. Ele é higiênico, porque percebi que seus sapatos estavam impecáveis. Pensei em tanta coisa enquanto ele socava minha boca em solavancos primordiais, dignos de um louco querendo fugir de um manicômio. E eu gritava em voz baixa e acho que ele nem ouvia. Tá bom, o olho pequeno não socava minha boca, apenas tentava amolecer o dente com um troço de ponta, depois com alicate. Aí me perguntou “tá doendo?” Tá! (cachorro louco, espuma na boca)! Claro que eu não disse isso, apenas falei que sim, e muito!!! Daí ele reaplicou anestesia e pediu que eu relaxasse novamente, e eu relaxei...

Lembrei-me de Isolina, menina amiga pra caramba! Sempre ia lá a minha casa me chamar para comer pastel, mas nunca trazia dinheiro, só a boca! Eu penso que ela era minha amiga por causa disso! Nunca mais vi Isolina! Isolou-se mesmo de mim! Aí!!!!!! Tá doendo, olho pequeno, digo dentista! Daí, anestesia novamente, e ele solavancava minha boca toda, querendo se ver livre de mim, de vez! Ester pensava: “dentista ruim é só quem não paga”. Que nada! Todo lugar tem dentista ruim. Claro, não era o caso do meu, apenas queria rapidez, mas ele era seguro no que estava fazendo. Também, eu me atrasei, né! Ele disse 10h, eu cheguei às 10h30min. Ele também tinha outras pessoas para atender e também iam pagar. Talvez tivessem mais valor que eu, ($R130). Aaaaaaaaaaaaaaaai! Tá doendo muito! Então o olho pequeno parou e disse que eu deveria me acalmar senão a anestesia não pegava. Daí aplicou outra dessa vez até ela doeu muito. Nossa, quando eu sair daqui, vou direto ficar debaixo de um cobertor porque está frio mesmo!... Bem, ele ficou tão aborrecido que começou a solavancar com força mesmo mais ainda que antes e disse: você menina, tem o dente duro demais! Tomou muito leite de cabra, é? Balancei a cabeça, aceitando tudo. Naquela hora só queria me livrar, esquecer tudo aquilo. Então não me agüentei! Comecei a gritar muito e ele parou de mexer no meu dente, dizendo: calma, menina, logo acaba! E eu não queria saber! Agora vou embora! Ponha minha gengiva do jeito que tava antes. Ainda tem mais, não quero sangue, ou coisa parecida, porque eu paguei tá, olho pequeno? “Filha, calma! Isso passa logo! Sente-se novamente que eu termino rápido! Não, você quer me matar! Eu sei, seu olho pequeno, depois de ter retirado todos os meus dentes, como fez um dentista de Brasília, que de maldade retirou os dentes de um garoto quando na verdade era apenas para extrair um. Ele veio com sua mão forte pegando no meu antebraço, como se quisesse mandar em mim. Eu fiquei muito triste com ele, porque nada eu tinha feito para ele me tratar daquele jeito, feito cliente que não paga. Depois, sentei e pensei no dente, o quando ele era bom pra mim, e, na verdade, nunca tinha me dado trabalho! Estava ali sem nada fazer, por que alguém tinha que dizer que não podia ficar com ele mais na boca? Daí, disse ao olho pequeno, para ele não fazer nada com meu dente, só costurar a boca, que já estava cheia de solavancos. Ele tentou me acalmar, chamou a moça de jaleco branco, e ela me deu uma água. Tomei e logo adormeci.

Mesmo adormecida, entendia tudo e ouvia também! Ele dizia pra moça de jaleco branco: Ela é doida, como você deixa uma paciente assim entrar no meu consultório? Depois, o que vão falar de mim? Doutor, ela marcou como todo mundo, quem disse que a gente conhece gente doida? Tem gente que camufla a loucura! Mesmo assim alguém tem que pagar por isso, daqui a pouco vem televisão aí e eu não posso pagar por isso. Será você, porque tem culpa de não ter percebido que um dente siso viraria caso de reportagem! Mas, senhor! Preciso deste trabalho, sou moça solteira, mas tenho dois irmãos pequenos.  Minha mãe é viúva, precisa também de minha ajuda. Pensasse nisso antes! Isso o que? Olha aqui, ou você assume sua responsabilidade diante da sociedade ou... Ninguém precisa assumir nada! Eu deixo o senhor, olho pequeno extrair meu dente! Do que ela me chamou? Deixa doutor, atenda logo à senhora para que ela vá embora. “Agora só tem uma coisa, quero meu dente todo perfeito, senão...”

Daí, o Olho pequeno aplicou anestesia novamente e ainda foi atencioso. Dava solavancos bem de leve para não me machuca mais. Então eu pedi pra parar, mas desta vez levantei a mão como ele havia me pedido quando entrei. Diga, Bianka! Pode me dar meu dente, senhor? Claro! Entre solavancos e carinho que ele me dava, quando afastava meu cabelo que teimava em ficar perto da minha boca, escutamos um barulho de gente, muita gente! A moça de jaleco branco falou: Tem repórter aí e estão ao vivo, na televisão local! Viu, Bianka, o que você fez? Agora estamos em apuros! Calma, Olho Grande! Não era pequeno? Falou a moça do jaleco.

Depois de tudo isso, olho pequeno é o meu, o dele é olho grande! Conhece tudo e vai saber se safar disso, né? E sem acusar a moça do jaleco branco. Mais um solavanco e pronto, o dente saiu perfeito!

Lá fora a multidão se aglomerava esperando que o dentista dissesse o que tinha ou estava havendo, no consultório. Ele saiu e disse: Minha gente, estamos aqui com um caso raro de se ver! Dente siso, duro demais! Data mais ou menos uns 2000 anos que essa moça, coitada, carregava! Ninguém entendeu nada, mas como ele falou com firmeza e parecia que acreditava no que dizia, todo mundo aplaudiu o Olho grande. Eu fui embora logo depois da multidão. Antes, porém, me dirigi à secretária para marcar uma hora para extrair outro dente siso!

 Tudo isso é uma forma de dizer que a vida é inusitada e devemos rir dela!”

 

Bianka Luz
Enviado por Bianka Luz em 15/08/2010
Reeditado em 15/08/2010
Código do texto: T2439171
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