O Velho Bruxo

A história se passou na minha infância, época linda, cheia de brincadeiras e travessuras. Coisas inocentes onde a única responsabilidade se resumia aos estudos. Estudo este, onde nunca fui brilhante, que se diga. E muito menos entre os atrasados. Sempre fui um aluno médio, oscilava entre as notas cinco e oito. Gostava de ler, mas nunca as histórias longas que me dão sono. Preferia as ilustradas, assim as paginas iam mais rápido.

Certo dia, Zezinho o moleque mais malvado das redondezas, e também o mais destemido, capaz de proezas inimagináveis para mim, que sempre fui mais comedido nas minhas brincadeiras, embora nunca deixasse de aprontar as minhas. Só não podia dar bobeira, porque mamãe não dava folga e sempre me castigava quando fazia alguma coisa errada, e que se diga a verdade ela sempre tinha razão.

Zezinho me desafiou, para uma partida de bolinha de gude, valendo à ganha, ou seja: quem ganhar a partida leva a bolinha do outro. Eu que nunca fui de fugir a um desafio topei logo, principalmente porque ganhar dele seria um grande orgulho para mim e motivo de sucesso entre a molecada do bairro, porque nós dois vivíamos disputando a liderança nas brincadeiras e éramos uma espécie de rivais. Neste dia não poderia perder por nada essa disputa, tinha que ganhar a qualquer custo. Fui até o quintal, remexi umas tralhas velhas que o meu pai guardava há muito tempo, lá onde eu escondia a minha caixinha de bolinhas, ali estava todo o meu arsenal. Tinha de todas as cores, umas trinta ou mais não sei bem, não deu tempo de contar. Pois o combate não podia esperar. Apenas tirei da caixinha, a bolinha azul esta é a minha preciosa, poderia perder todas, menos esta. A bolinha azul estava fora de qualquer disputa, é raro encontrar uma naquele tom claro de azul, todos os moleques do bairro já tentaram comprá-la de mim, chegaram a me oferecer dez bolinhas em troco dela, mas resisti e não quis negociá-la

Nós dois encaminhamos até o terreno baldio, que fica a apenas a dois quarteirões de casa, onde então seria o nosso grande combate. À medida que caminhávamos os outros moleques vendo que estávamos indo em direção ao terreno e eu com a caixinha de bolinhas na mão já imaginavam que aquilo só poderia ser um desafio entre nós dois, e de repente já reunia mais de dez moleques atrás de nós, uns falando em torcer pelo Zezinho, aqueles que não iam muito com a minha cara. E outros torcendo por mim, a minha torcida pareciam ser a maior, o que aumentava ainda mais a minha responsabilidade.

No caminho vi a D. Maria limpando a velha janela da sua casa, passando um trapo de pano. Coitada, a janela não tem nem mais pintura, mas mesmo assim ela limpava toda a manhã.

D. Maria, mulher viúva muito brava chamava as crianças de: tentação, pelas bagunças que fazíamos na rua. Mesmo assim eu gostava dela, todo sábado me pedia para ir ao açougue e comprar dois bifes, do mais barato; dizia ela. Alem de chata era também avarenta, e me pagava com algumas moedinhas que não davam para comprar nada.

Ao dobrarmos a segunda esquina, a ultima até o fim da rua onde ficava o terreno baldio, de repente toda a molecada parou, meio que paralisados por medo. È o senhor Oride, gritou Robertinho, sim é ele mesmo já recuando para sair correndo. È o Bruxo, ele é muito mal, consegue transformar as coisas. Transforma as pessoas em bicho.

S. Oride, homem idoso, roupa suja. Cabelo e barba compridos. Usa só roupas velhas mal costuradas. Mora sozinho na ultima casa da rua, a que dá de frente para o terreno onde seria a minha disputa com o Zezinho. Só que nesse momento toda a torcida já tinham ido embora e o meu oponente ia longe quando o chamei e ele respondeu quase chegando à outra esquina, que era melhor deixar para outro dia que hoje ele não poderia. Claro que o Zezinho estava com medo do bruxo, assim como todo os outros, pois a fama do velho se espalhou por toda a redondeza.

De repente me vi sozinho, todos foram embora e para meu desespero o velho bruxo estava vindo em minha direção e me chamando. Agora não daria mais para correr, tive que ficar e encarar a situação com as pernas meio bambas de medo, afinal eu com treze anos já era quase um homem. Fiquei ali esperando do outro lado da rua,enquanto S. Dito passava com sua Brasília branca soltando fumaça, coisa de carro velho, o único morador do bairro que possuía automóvel .

--- Meu filho, por favor: você pode me ajudar com essas sacolas de mantimento? Estão muito pesadas e a minha artrite amanheceu atacada hoje. --- Tudo bem, respondi com a voz meio tremula, nunca tinha chegado tão perto do Velho Bruxo, e assim de pertinho a sua boa aparência era ainda mais assustadora, pensei comigo sem procurar demonstrar a minha covardia diante dele. A boa educação que os mais pais me deram falou mais alto nessa hora. Minha mãe sempre repetia as boas maneiras que eu deveria ter: respeitar as pessoas, ser sempre educado com os mais velhos e procurar ajudar o próximo. E nesse momento o meu próximo era velho, e não tive como recusar ajuda.

Com certeza os moleques estavam escondidos sondando a minha situação e todos morrendo de rir de mim, mas tudo bem, eu não me importava com eles; só queria me livrar do velho.

Quando chegamos a sua casa, ele abriu o portão e me mandou entrar, eu com a curiosidade de um gato espiei por todos os lados para ver se tinha algo de diferente: um caldeirão soltando fumaça ou aqueles potes de ervas que vemos nos filmes. Nada disso apenas uma casa bem limpa, toda arrumadinha e sem nada das coisas que eu tinha imaginado. Na sala uma prateleira enorme com um monte de livros que não dava nem para contar quantos tinham. No centro uma linda Bíblia aberta no livro de Jó. Não tinha televisão, apenas um radinho de pilhas numa mesinha próximo a uma cadeira de balanço.

--- Deixe as sacolas aqui meu filho, quer tomar um suco de frutas para refrescar a garganta? --- Afinal está fazendo muito calor hoje. Eu não disse nem sim nem não, temia que fosse uma poção mágica e eu vira-se algum bicho, pois o quintal estava cheio deles, e se de repente todos esses bichos fossem pessoas que ele transformou. Apenas balancei a cabeça, peguei o copo da sua mão e tomei um pequeno gole que quase nem molhou a minha garganta e fiquei esperando a reação. Passou alguns segundos e nada aconteceu, tomei um gole maior e esperei, também não teve reação. Então tomei todo o resto e fui perdendo o medo, estava gostoso só que meio sem açúcar.

---Viu como não aconteceu nada! --- Disse o velho, eu estranhei, mas não falei nada. Esperei ele continuar a falar. ---- Todos acham que sou um Bruxo. Esse povo e mesmo muito ignorante. --- Eu continuei em silêncio, achei melhor não interferir. --- Sou apenas um velho cansado e doente, não tenho forças para nada, nem para lavar e arrumar as minhas roupas. Apenas vivo quietinho aqui no meu canto, não mexo com ninguém, nunca fiz nada, não sei de onde tiraram essa história de bruxo.

Desse dia em diante nos tornemos grandes amigos, ele me emprestava livros e me ajudava nas duvidas dos deveres da escola, pois era um homem muito inteligente e culto, sabia conversar sobre qualquer assunto, principalmente da Bíblia que ele gostava de ler para mim e depois explicava o texto.

E assim foi até a sua morte, dois anos depois. Eu fiquei muito triste, pois tinha perdido um verdadeiro mestre na vida.

Após sua morte a molecada teve coragem de me perguntar se o S. Oride era mesmo um bruxo, eu respondi que sim, um bruxo muito poderoso.