O FANTASMA DE UMA JARARACUÇU

O FANTASMA DE UMA JARARACUÇU

Em minha bucólica infância, nas noites estreladas de inverno, como escurecia muito cedo, a distração de todo mundo era fazer visitas. Durante o dia já ficava combinado que a gente iria se encontrar à noite na casa de algum empregado ou eles iriam na nossa casa. Meu pai era amigo de todos, ao contrário de hoje, que na grande maioria, tanto o patrão é inimigo do empregado quanto o empregado é inimigo do patrão. Por causa do tal do capital, todo mundo se acha lesado.

Naquele dia, fomos na casa do Nêgo. Noite linda de lua cheia onde tomava-se café com quitanda enquanto a prosa fluía. Contaram histórias de cobras umas duas horas e o assunto não acabava nunca. O Nêgo falava que, num certo dia, enquanto quebrava milho encontrou com duas cascavéis enroladas uma na outra, achou que era briga por território, depois que as matou descobriu que só estavam cruzando porque foi depois do carnaval. Dizia a lenda que a quaresma era a época de reprodução das cobras. O Zezico contou que enquanto jogava o feijão no carro de boi, sentiu uma coisa gelada no pescoço, era uma jararaca que ele estava carregando sem ver. Em cada história foi aumentando meu medo. O irmão do Nêgo contava que guiso de cascavel dá sorte, meu pai já falava que esta história que cobra não mata cavalo é mentira porque certa vez, uma cobra cascavel que estava escondido debaixo do capim seco da trilha, mordeu o cavalo em que estava montado e ele morreu. E foi indo... Dizia o João Preto que se tivessem levado o João do Taliba para a cidade ele não teria morrido, no dia que tomou aquela mordida de cascavel. Em vez do Taliba fazer um bangüê e levar o filho para a cidade tomar soro, chamou a Sá Rita benzedeira e mordida de cascavel não tem benzeção que salva.

Chamei meu pai:

- Pai, vamos embora?

Disse o Nêgo:

- Agora que é sete horas, Zé.

E a prosa continuou. Teve um que contou a história que matou uma jibóia e pendurou na cerca de arame para o gavião comer porque naquela época todo mundo falava que espinho de cobra tinha veneno igual a uma mordida. Depois de três dias esqueceu da cobra, passou perto da cerca e ela tentou enrolar no seu pescoço. Nesse dia fiquei sabendo que cobra jibóia não morre só com uma paulada porque ela parece uma esponja, tem que cortar a cabeça dela. A última foi do Tonho do João Preto que contava que achou dois filhotes de maritaca no chão, trouxe para criar numa gaiola de bambu. Certo dia, enquanto chegava da labuta, escutou as maritacas gritarem forte, quando foi ver, tinha uma jararacuçu subindo a parede para pegá-las. Eu, que tinha pouca história para contar só perguntei:

- Mas cobra sobe em parede?

Respondeu o Tonho:

- Eu também achava que não mas vi com meus próprios olhos.

Bom, não estava gostando daquele assunto porque teríamos que ir para casa de noite, embora fosse perto tinha que passar em trilhas de vaca. Chamei meu pai de novo e dessa vez me atendeu. Comemos mais uma broa de fubá, mais um gole de café e fomos embora. Mesmo sendo noite de lua cheia, coloquei o Peri (meu cachorro) na frente porque ele percebia cobra de longe, meu pai no meio e eu atrás, segurando na correia da calça dele. Mesmo nesta segurança, qualquer raminho que me encostava eu dava um pulo.

Meu pai falando:

- Deixa de ser medroso, meu filho.

Graças a Deus, no começo de minha infância era época do carro de boi, da lamparina, do colchão de palha de milho, do dar sem pensar em receber. Era um desconforto confortável porque a gente não precisava correr para nada.

Chegamos em casa, minha mãe já estava dormindo. Nossa casa era igual a todas as casas simples daquela época: Uma escada de dois degraus, uma sala, dois quartos ligados nesta sala e lá no fundo, a cozinha, onde minha mãe sempre deixava uma lamparina acesa quando a gente saía. Naquele dia, quando coloquei os pés na escada, me senti aliviado. O Peri chegou e logo foi deitando na escada, onde era sua casa. Meu pai foi para a cozinha beber mais café e buscar a lamparina para me levar para o quarto. Assim que fechava a porta da sala, numa luta danada com o prego da tramela que estava bambo e não deixava ela parar fechada de jeito nenhum, vejo um vulto atrás da porta. Aquilo realmente foi um susto! Depois de escutar tanta história de cobra, a hora que estou fechando a porta de minha casa que achava segura, vejo um vulto em pé no canto da parede. Comecei a gritar como um louco. Meu pai veio ao meu encontro, trombei com ele e derrubei a lamparina. Meu pai não sabia se me consolava, se ajudava minha mãe acalmar minha irmãzinha que a estas horas já estava aos berros naquela escuridão ou se procurava um isqueiro que naquela época era uma binga que, para ascender tinha que fazer promessa. Eu tinha hora que subia na mesa, outra hora subia nas traves da casa, meu pai procurando fogo. Pensei em sair pela porta da cozinha e ir atrás do Peri, mas e se a cobra já tivesse saído, estaria lá no terreiro. Para completar o Peri não parava de latir. Meu pai falou para parar de gritar porque afinal de contas eu era o segundo homem da casa - pensa bem, com sete anos! De repente, meu pai conseguiu ascender uma palha de milho no fogão de lenha, ascendeu a lamparina e foi atrás da cobra. Lamparina numa mão e cartucheira na outra, falando para minha mãe ir para o terreiro com minha irmã para ela não se assustar mais com o barulho do tiro:

- Cadê ela meu filho?

Eu, em cima da mesa da cozinha, falando que ela estava atrás da porta da sala, no cantinho da parede. Só lembro-me dele perguntar:

- Você tem certeza, meu filho?

- Tenho sim, pai.

Foi um dos poucos tiros que meu pai errou. Minha casa não tinha forro, então a luz da lamparina não se acalmava por causa do vento. Quando a gente se locomovia com uma, tinha que colocar a mão na frente para ela não se apagar. Naquela penumbra e com as duas mãos ocupadas, meu pai acabou dando um tiro num pedaço de pau de barbatimão que eu tinha deixado ali para bater na Mantiza, vaca ladrona que não me dava sossego. Depois de tudo serenado eu só lembro-me da maior gargalhada que meu pai deu em minha presença.

Mas também, depois de escutar tanta prosa de cobra!

JOSÉ EDUARDO ANTUNES

Zeduardo
Enviado por Zeduardo em 05/11/2010
Código do texto: T2598598
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.