A HERANÇA

A esposa

O Jair morreu com noventa e cinco anos. Um dos amigos mais velhos de minha família. Era mesmo vitorioso, ultrapassou quase todos os obstáculos que a vida lhe reservou. A primeira esposa, companheira da juventude e mãe de seu único filho o Jardel, morreu há trinta e tanos anos. Depois de uma longa temporada, vinte anos, presa em uma cama, inutilizada por várias doenças.

Um ano depois Jair casou-se com Sandra. Uma quarentona, solteira, sem filhos. Viveram juntos por vinte e tantos anos. Felizes, enamorados como dois pombinhos, viajava, namoravam, se amavam, viviam num mundo maravilhoso, numa verdadeira roda viva cheio de amigos, festas, passseios, enfim eram de causar inveja a qualquer casal jovem. Sandra tinha uma excelente situação financeira, que herdara dos pais, e isto contribuía para que tivessem uma vida rica em acontecimentos divertidos e muito confortável. A vida deu-lhes, companheirismo, cumplicidade, glamour, e esplendor.

Jair jamais envelheceu parecia um garoto. Perto do filho Jardel, o filho era o velho, e o pai era o jovem. As amigas de Sandra, cobiçavam seu marido, mesmo que ele tivesse quase noventa anos, fosse careca, as pernas flácidas e a pele apesar de conservada, esava enrugada. AO casar-se Jair passou a morar no apartamento de Sandra e adotou não só os hábitos dela como os amigos e tantos outros gostos que pareciam almas gêmeas, se é que não fossem.

Jardel não visitava o pai. Só quando precisava de dinheiro, pois mesmo aos sessenta e poucos anos, jamais se estabeleceu na vida. Não tinha renda própria, vivia dos aluguéis de uma vila de casas que a falecida mãe deixara e alguma ajuda que o pai lhe dava, escondido de Sandra, que não gostava da maneira de viver de Jardel. Jardel tinha casado algumas vezes tinha oito filhos, uma dúzia de netos e uma filhinha de meses.

A rotina do casal começou a mudar quando o apartamento ao lado do deles, foi alugado para um jovem casal, Alice e João. Sandra era muito conservadora e de imediato não gostou dos novos vizinhos. Talvez por que os antigos vizinhos um casal de libaneses sem filhos, eram muito unidos a eles, e também tinham morrido repentinamente, já com idade avançada. Um logo após o outro.

Alice conseguiu ganhar a simpatia de Jair, mas não a de Sandra, isto não foi nenhum obstáculo para que ela preparasse lentamente seu bote e entrasse na vida do casal de idosos. Começou ajudando em pequenos favores que João fazia questão de pagar com algumas gorjetas. Eles não tinham empregada, pois alegavam que gostavam de privacidade. Sandra começou a ficar enferma e esquecida, estava iniciando uma demência senil e precisava de cuidados médicos. Alice ofereceu-se para ajudar e Jair encantado com a gentileza da moça, ficou muito feliz. Sandra quebrou o fêmur em uma queda inexplicável, foi hospitalizada, quando voltou para casa ficou ainda alguns meses completamente dependente de Jair e Alice que se revezavam para cuidar da senhora idosa, uma vez que a doença senil avançava. Sandra faleceu. Jair inconformado pela perda da esposa, ligou-se cada vez mais a jovem Alice, sua amiga, confidente e vizinha.

Nos três anos que se passaram depois da morte de Sandra, Jair mudou completamente seus hábitos, não visitava os amigos, não passeava, ficou muito caseiro. Tinha uma saúde de ferro, enxergava bem, não tinha pressão alta, nada. Em uma revisão médica descobriu que tinha câncer na próstata. Foi operado, fez quimioterapia, e por milagre ficou completamente restabelecido, ainda subia no telhado do prédio para apanhar as pipas que lá caíam e os meninos não cansavam de pedir. Recebia seus rendimentos, ia ao banco, mas sentia-se só. Resolveu comprar um carro importado, último modelo, e como João estava desempregado, na verdade nunca trabalhava, e Alice vivia não sabe-se do que, o aluguel sempre atrasado, o bondoso Jair cobria praticamente todas as despesas do casal. Com a morte de Sandra, ele ficou muito bem financeiramente, era seu herdeiro, e Sandra tinha um patrimônio considerável, agora que Jair não fazia tantos gastos, as despesas cessaram e o dinheiro se acumulava. Jardel não visitava o pai, às vezes ligava e Jair depositava o dinheiro que ele precisava. Ele estava bem ao completar noventa e quatro anos no Dia de Finados no ano passado ainda fui na sua festinha, organizada, naturalmente, é claro, por seus queridos vizinhos, João e Alice, e suas sobrinhas Sonia e Sueli. Foi num clube, todas os amigos e amigas de Jair estavam lá, menos o filho, os netos e os bisnetos. Tinha muita gente na festa, a maior parte jovens de vinte e tantos anos até os trinta e cinco. Eu não conhecia quase ninguém ,até fiz um comentário com minha mãe, que me explicou que aqueles não eram os amigos de Jair, eram os amigos de Alice e João, os queridos vizinhos.

Alguns meses se passaram, não soube mais de Jair, passei uma temporada fora do Rio com minha mãe e meu filho , duas semanas após minha volta, fui avisada da morte de meu amigo. Alice telefonou para minha mãe, avisando que o enterro seria em duas horas. Corremos para o cemitério, e um percurso que normalmente faria em quinze minutos , foi feito em mais de uma hora e meia, o trânsito estava engarrafado, ao chegar no cemitério e estacionar o carro, soube queo enterro tinha saído mais cedo e não pude nem acompanhar meu amigo em sua última caminhada nesta Terra. Voltamos para casa, eu e minha mãe desapontadas, meu carro resolveu não funcionar e tivemos que ser rebocadas do cemitério até a garagem de casa, onde o carro ficou.

Na missa de sétimo dia notei que Jardel apareceu com a última esposa e antes de terminar a missa ele estava imapciente como se quisesse ir embora. Na hora dos cumprimentos o padre chamou a esposa do falecido, e para nossa surpresa, Alice encaminhou-se para a frente dos presentes para receber os cumprimentos, enquanto o seu marido João esperava ao lado. Jardel ficou tão surpreso que saiu logo após o fim dos cumprimentos, sem falar com ninguém. Voltamos para casa e minha mãe me perguntava: - Ele se casou com a Alice? Mas o João não é o marido dela. Não respondi para minha mãe porque eu não sabia de nada.

Na semana seguinte recebemos a visita de Alice e João. Ela veio com a cara mais deslavada do mundo pedir nossa ajuda. Queria que fôssemos suas testemunhas, pois Jardel inconformado de ter sido chutado nos seus direitos, ameaçava procurar a justiça. E Alice dizia-se injustiçada, pois o Jair como ela se referia ao finado, era apaixonado por ela, e tinha oficializado sua união civil. Como João era apenas seu companheiro, não via nada demais no ato, pois Alice ficaria com uma parte da herança e as duas pensões de Jair. Ele era militar reformado da Marinha, Comandante de Mar e Guerra e herói praçinha da segunda guerra mundial, e ainda tinha uma aposentadoria do governo americano. Minha mãe ficou indignada com a safadeza do golpe da moça, pois Alice jamais foi esposa de Jair e iria receber duas pensões que eram mantidas pelo governo a custa dos impostos dos contribuintes que iriam mais uma vez ser lesados. Recusou-se a ser uma provável testemunha e os colocou para fora de nossa casa com palavras severas. Eles se retiraram silenciosos. Não pareciam surpresos com a reação de minha mãe, pois antes de falarem o verdadeiro motivo da visita, explicaram que João tinha sido adotado como filho, por Jair logo após a morte de Sandra e que este para diminuir os incômodos da administração de todos os bens, fora constituído seu procurador.

Um ano se passou, Jardel está cada vez mais pobre, pois sua família numerosa, sempre gastou e ainda contava com a ajuda de Jair. Soube por uma de suas primas que está deprimido, diabético e vive na casa da Sueli, implorando ajuda ao marido dela que é medico e trabalha no SUS. O medico lhe arranja remédios e os amigos antigos de seu pai, lhe abastecem a dispensa com mantimentos da cesta básica. As casas alugadas que pertenciam a mãe de Jair ficaram velhas e não foram reformadas, estão imprestáveis para morar. Jardel já recorreu a Defensoria Publica por duas vezes, mas não conseguiu provar nada.

Alice e João estão cada vez mais prósperos. Acabaram de comprar um terreno imenso em um bairro próximo a Barra da Tijuca, em uma área comercial e são os fundadores de uma nova religião, desculpe, não é nem religião, é uma seita, que promete ajudar aos necessitados com uma vasta obra social, e também aceita, doações a partir de mil dólares. Você também pode associar-se se quiser, é só contribuir com uma quantia mensal fixa, os valores não sei direito pois são bem elevados e impróprios para meus rendimentos. Esta seita tem ramificações em muitos países da América Latina e seus fundamentos foram estabelecidos na América do Norte. Ah!, esqueci de narrar que João é o tesoureiro para o Brasil e Alice a diretora financeira.

Jardel definitivamente cansou-se de procurar a justiça, pois foi informado por um advogado, que foi seu colega de infância, para não se intrometer nos negócios de Alice e João pois eles são Chapa Quente e nesses casos, a filha mais nova de Jardel poderia ser prejudicada.

Ao contar-lhes esta história as eleições ainda não tinham se processado. Ao ler a lista dos deputados federais eleitos tive uma surpresa, ao ver João encabeçando a lista dos mais votados. Tiveram uma trajetória fantástica de vizinhos pobres e quase despejados do s meus amigos, hoje são celebridades. Vá entender os critérios de escolha de políticos e outras coisas nesse mundo de meu Deus.

Aradia Rhianon
Enviado por Aradia Rhianon em 06/11/2010
Código do texto: T2599539
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