O Técnico nosso de cada dia

Normalmente se acredita que fazer um bom serviço é a melhor coisa que pode acontecer com um profissional, e também que a “propaganda do beijo” (também conhecida como propaganda boca a boca) é o melhor tipo de divulgação de um bom serviço. Muitas vezes eu concordo com isso, mas, em certos momentos eu penso que teria uma vida melhor se eu fosse um profissional um pouquinho pior. Calma, vou explicar:

Comecei cedo na informática, de maneira autodidata aprendi a programar e a manipular o hardware. Obviamente, no começo a minha habilidade de programar não era muito profissional, comecei então a ganhar dinheiro fazendo manutenção e configuração. Com o passar dos anos minha programação foi melhorando e acabei adquirindo um tremendo pavor de manutenção. Abrir um computador e trocar peças é algo que simplesmente não quero mais fazer na minha vida, discos rígidos queimados me partem o coração, não consigo suportar mais a agonia de olhar pra um usuário descuidado e ter que lhe dizer que anos e anos de trabalho sem backup foram perdidos, ver aquele rosto que tenta parecer sereno e aquele brilho triste no fundo dos olhos, de alguém que não quer chorar na frente de um desconhecido, me da um nó na garganta. Sinto-me uma pessoa terrível de precisar cobrar por dar uma noticia dessas, a vontade é de ir embora em silêncio, mas, eu preciso comer, preciso fumar, então dou uma aulinha sobre como salvar os próximos anos de trabalho e cobro pela aula (uma aula bem cara). Sempre imaginei o que acontece quando saio de uma casa ou empresa que perdeu tudo, imagino claramente aquela moça que perdeu a monografia quase terminada chorar e se xingar na frente do espelho, vejo aquele gerente que mandou fazer o backup no servidor escrevendo a carta de suicídio, amassando, jogando no lixo e depois botando a culpa no pobre coitado do estagiário, fico com pena do estagiário, mas, não existe nada que possa fazer por ele.

Fico angustiado só de pensar que terei que inventar um desculpa para explicar por que o monitor de cinco anos de idade queimou, ou por que é que o micro velho não consegue rodar certos jogos. Tenho calafrios em ter que explicar por que não se deve ligar o micro-ondas na fonte do computador, meus dedos doem só de pensar na trabalheira de trocar uma placa de memória e principalmente, não tenho mais paciência de explicar que o CD-ROM não serve para colocar copos de plástico! Pombas! O plástico é muito mole e acaba amassando! Isso desperdiça todo o café!!! O pior ainda não veio, a pior coisa é quando o cliente não precisa realmente de um técnico, telefona para você falando o pouco que sabe do computador, mas, na verdade mesmo está precisando de aconselhamento psiquiátrico.

Eu me lembro como se fosse ontem, na verdade foi antes de ontem. Ontem eu ainda estava muito chocado para escrever. Ela me telefonou. Não sei ainda quem foi o filho da vizinha da cunhada do cara que trabalhava na empresa que eu atendi em 1997 que passou o meu telefone para ela, a questão é que ela me ligou e começou a conversa justamente da maneira que mais odeio:

---- Alo, é ai que tem um rapaz que faz programas?

Sempre odiei este trocadilho, principalmente quando a pessoa que pergunta não se da conta do trocadilho estúpido que está fazendo. Respirei fundo e respondi a pergunta.

---- Programas de computador sou eu que faço, outro tipo de programas só se a cliente for muito bonita. – Normalmente eu não respondo assim, mas, eu já estava atolado de serviço e, por algum motivo, talvez intuição técnica, eu queria desestimular a mulher de continuar a conversa.

Ela finalmente percebeu a ambiguidade da besteira que havia me dito e simplesmente deu risada.

---- Eu estou com um problema no meu programa.

---- Sim, que programa está dando problema? – Perguntei imaginando a remota possibilidade de ser uma secretaria nova usando algum programa meu.

---- O nome dele é para você ponto doc.

Só existe uma coisa que me irrita mais do que alguém confundindo documentos com programas, esta coisa é quando alguém lê em voz alta os números hexadecimais de uma operação ilegal do Windows e acredita que eu estou entendendo.

---- Quando eu abro esse programa ele da uma mensagem.

(NÃO!!! NÃO!!!) – Meus pensamentos temiam pelo pior...

---- O Vord executou uma operação ilegal e será fechado...

---- Ele abre outr... – Fui interrompido antes de perguntar.

---- Quando clica nos detalhes diz que o Vord cometeu uma operação ilegal no modulo umquinom esvaziamento de pilha...

---- Não precisa ler...

---- Zero xis Efe zero zero zero zero...

---- Por favor! Não!

---- ...Um efe zero xis zero zero dois be...

Nesse momento afastei o telefone de meus ouvidos até aquela ladainha infernal se transformar em um leve e suportável chiado. Esperei o silêncio dela e voltei a falar.

---- Ele só da problemas nesse documento, digo, ele abre outros documentos?

---- Deixa eu ver.

Enquanto esperava, eu podia visualizar ela movendo o mouse com muita dificuldade enquanto mordia a ponta do dedinho da outra mão.

---- Abre. – Disse ela após cinco minutos de uma grande procura por um outro documento. – Microsoft vord, tem uma poesia do meu marido, quer que eu leia?

---- Não, por favor. – Eu sempre gostei de poesia, mas, aposto que esta estava cheia de números hexadecimais rimando com operações ilegais. – Acho que o arquivo que você está tentando abrir está corrompido.

---- O programa?

---- Não, o documento.

---- Meu Deus! – Pelo desespero dela parecia algo importante – E o que eu faço?

---- Você digitou esse documento ou conseguiu de outro lugar?

---- Meu marido recebeu pela Internet.

---- Bom, então é só baixar ele outra vez.

---- Não dá. Meu marido não sabe que estou vendo as coisas dele.

Alguns momentos de silêncio barulhento ocuparam minha mente, estava tentando entender por que uma esposa ciumenta abre os arquivos do marido e liga pra um “técnico” depois de tentar abrir um arquivo que provavelmente só tinha algumas piadinhas bobas da Internet.

---- Bom, então não tem o que fazer se o arquivo está estragado.

---- Mas será que você não tem como abrir o programa e salvar alguma coisa? – Pior do que uma usuária que não sabe a diferença entre um documento e um programa só mesmo uma usuária obcecada por alguma coisa inútil.

---- Não posso garantir nada, mas, posso tentar. – Não devia ter dito isso, mas, no momento, imaginava que poderia ganhar alguns trocados simplesmente abrindo o documento com o bloco de notas e copiando o texto que por ventura tivesse permanecido intacto. – Você tem como me enviar ele por e-mail?

---- E-mail é aquele programa da cartinha azul?

---- Sim - Entendi essa pergunta como um sim, mas, não imaginei que meu e-mail fosse tão difícil de soletrar e nem que a mulher fosse meio surda.

Depois de uns quinze minutos, estava quase terminando de soletrar meu e-mail.

---- Ponto simples?

---- Isso.

---- Ponto simples Be erre?

---- Isso.

Passei alguns segundos verificando meus e-mails compulsivamente, enquanto ouvia as paranóias da mulher sobre seu marido estar encontrando secretamente outra mulher muito mais jovem e bonita do que ela, de como ela se sentia mal com esta suspeita. Tentando ser politicamente correto, tentei explicar que a Internet deixa o mundo muito pequeno e que nem todas as mulheres que um homem conversa virtualmente são efetivamente amantes. Ela é claro, ou não entendeu, ou achou que minha explicação estava técnica demais…

O e-mail chegou. Passei o antivírus, tentei abrir, e mágica, operação ilegal no módulo unknow blábláblá blábláblá. Abri com o bloco de notas e fui procurando o texto, não achei nada, parecia criptografado, talvez o marido tivesse realmente algo a esconder.

Olhei o inicio do arquivo para identificar a maneira como foi criptografado, e as duas primeiras letras me chamaram a atenção: “PK”. Como é de conhecimento comum entre técnicos, programadores e nerds em geral, todos os arquivos compactados pelo Winzip começam com essas duas letras.

A criatura não parava de tagarelar as coisas terríveis que faria com o marido se descobrisse que ele a estava traindo. Eu tentava ignorar simplesmente dizendo “ahã” a cada minuto e meio. Renomeei o arquivo para um ponto zip. Abri o arquivo, e encontrei varias fotos compactadas.

Abri uma delas, e não pude deixar de notar que haviam dois homens nus em um ato sexual repugnante. Nada tenho contra os homossexuais, creio que cada pessoa deve fazer sua própria escolha para alcançar a felicidade, mas, aquele era sem nenhuma duvida o casal homossexual mais feio que eu já havia visto. Ambos barbudos, peludos, gordos, e sorrindo de um jeito tão anti-fotogenia, que provavelmente não sabiam que estavam sendo fotografados.

---- Não consigo abrir ele aqui também. – Falei interrompendo as juras de morte ao marido do outro lado da linha – Este arquivo está realmente estragado.

Não sei onde acabava a ética e nem onde começava o bom senso na minha mentira, a questão é que eu não iria contar pra ela que seu marido era gay.

---- Será que se você vier aqui...

---- Acho que não – Interrompi tentando dar fim ao assunto – Eu não consegui abrir ele aqui, provavelmente não vou conseguir abrir nada ai também.

---- Quanto você cobraria por uma visita pra ver o que você descobre por aqui?

Realmente eu não queria participar de nenhuma destruição de casamentos, não queria fazer nenhuma visita técnica e principalmente não queria ver aquela foto outra vez.

---- São oitenta reais a visita mais cinqüenta por hora técnica. – Falei um preço bem maior do que imaginei que ela estaria disposta a pagar, visando um pronto “desconversamento” e uma rápida desligada do telefone.

---- Tudo bem, você pode vir hoje a tarde? Hoje meu marido não está em casa...

---- Deixe eu olhar minha agenda da tarde. – Meu Deus! Não imaginava que ela fosse aceitar o preço, assim como não imaginava que minha ganância fosse controlar minhas decisões neste exato momento onde a razão me dizia para bater o telefone na cara e mudar de número. - Acho que posso, mas não aceito cheque.

---- Tudo bem, eu tenho algum dinheiro em casa.

Combinamos o horário, desliguei o telefone e comecei a imaginar qual seria a melhor forma de agir para essa história ter um final feliz pra todo mundo. Elaborei minuciosamente meu plano, preparei o material necessário e atravessei a cidade para chegar ao meu destino.

Eu já havia atendido pessoas ricas, políticos, e assim, visitado várias mansões, mas esta casa era realmente a maior e mais luxuosa que já tinha visto na vida. Ao olhar para casa, primeiro pensei que deveria ter cobrado pelo menos o dobro, depois pensei que o ideal seria o triplo, em seguida, pensei que a senhora queria um pretexto para se divorciar e ficar com boa parte do dinheiro e, finalmente, antes de tocar a campainha, concluí que eu não devia ter vindo.

Uma voz masculina pelo interfone me atendeu. Tentando acalmar minhas paranoias imaginei que fosse um mordomo ou algo assim. Identifiquei-me, entrei e fui recebido pelo mesmo homem que eu vi naquela foto terrível: O marido.

Tentando não olhar diretamente para o homem, comecei a reparar nos quadros da sala de entrada, havia vários quadros de uma mulher horrorosa e alguns do outro sujeito que estava na foto de sexo, inclusive uma do marido abraçado com o sujeito.

É triste quando a curiosidade supera o bom senso, mas não resisti o comentário.

---- Eu acho que conheço este seu amigo, é parente de vocês? – Achei que este era um jeito bem discreto de perguntar.

---- Este é o meu cunhado, você conhece ele de onde?

---- Ele não trabalha na prefeitura? – Normalmente esta pergunta encerra o assunto, a pessoa diz que não, você diz que confundiu, e fica tudo bem.

---- Trabalhava, agora ele montou um negócio próprio. – Quando ele disse isso, percebi que havia me metido em problemas.

---- Na prefeitura de São Paulo? – Agora era impossível.

---- Isso.

---- É... Eu sabia que o rosto era familiar. – Se eu soubesse que estava tão bom em adivinhação teria jogado na loteria ao invés de atender essa casa.

Para me salvar desta desconfortável conversa a esposa apareceu logo em seguida, suando frio e com uma estranha maneira de olhar, como se estivesse tentando dizer: “Por favor! Improvise qualquer coisa que eu te dou apoio!”

Quando me atendeu pelo interfone, ele me deixou entrar imediatamente, o que significava que ele já estava avisado de minha chegada, logo, a esposa o avisou. Eu só não sabia qual era a justificativa que esposa usou para chamar um técnico. Se eu falasse qualquer coisa diferente do que ela disse ao marido, e considerando-se o clima de desconfiança mutua que parecia existir, ele acabaria concluindo que sua esposa horrorosa estava tendo um caso comigo! Não estava com medo de levar um tiro, ou de ser expulso do local na base dos pontapés, mas, a minha reputação masculina estava em jogo, aquela mulher era a rica mais feia que eu já havia visto na vida, nem por muito dinheiro faria outro tipo de programa com ela!

---- E onde está o computador? – Perguntei sem especificar meu motivo para estar ali.

---- Eu te levo lá – disse a esposa – Será que tem JEITO DE DEIXAR ELE MAIS RÁPIDO?

A discretíssima ênfase que ela deu a frase me revelou exatamente o que ela havia dito ao marido antes da minha chegada.

---- Por que ele está muito LENTO! PRECISA FICAR MAIS RÁPIDO! – Ela provavelmente achava que meu Q.I. era como o dela e continuou gritando frases semelhantes até que após uma longa caminhada chegamos ao escritório onde ficava o computador. – Desculpe, ele chegou de surpresa. – Ela me cochichou novamente imaginando que eu não havia percebido que seu marido estava em casa. – Inventa qualquer coisa pra fazer, eu te pago e você volta outro dia.

Inventar alguma coisa pra fazer é um ótimo serviço pra quem está ganhando por hora, mas, é péssimo pra quem está com pressa.

Liguei o micro pretendendo passar um scandisk, tirar alguns arquivos inúteis da memória e ir embora antes da primeira hora. O micro pediu uma senha de BIOS antes de permitir que o micro iniciasse, perguntei para a esposa, ela não sabia. Perguntei como é que ela estava usando o micro sem o marido em casa, ela explicou que ele deixou ligado fazendo downloads.

Olhei no relógio tentando lembrá-la que eu receberia por hora, ela imediatamente correu pra perguntar ao marido. Algum tempo depois, o marido entra no escritório com ela e pede para eu me virar de costas. Lembrando da porcaria da foto, virei-me com um certo receio. Ele digitou a senha e o micro carregou em menos de um minuto.

---- Tem certeza que o micro está lento? – Perguntei tentando fazer a mulher admitir que ele estava em perfeitas condições e me deixar ir embora.

---- Ele era bem mais rápido quando a gente comprou. – Diz a esposa, e o marido consente com a cabeça.

Eu bem que queria ter uma máquina tão potente e rápida em minha casa, mas se o cliente diz que ela está lenta, então, está lenta.

Comecei abrindo o utilitário de configuração do sistema, para ver se encontrava algum spyware, malware ou qualquer outra coisa inútil que o Bill Gates ache legal rodar nas máquinas dos usuários. Tirei alguns itens da inicialização e reiniciei o micro.

O Marido e a esposa observavam tudo com imensa atenção, ela provavelmente tentando aprender alguma coisa e ele provavelmente esperando o momento de evitar que eu abrisse acidentalmente os seus terríveis segredos.

Depois de digitar a senha novamente, o marido sugere a esposa que ela trouxesse um café para eu tomar. Inicialmente isso me deixou feliz porque eu adoro café, mas, logo após ela virar o corredor o marido perguntou-me algo intrigante:

---- Você que entende... É possível descobrir quem mandou um e-mail?

---- Se você tiver o e-mail original e for algo sério é possível descobrir sim. – Falei isto lembrando que o endereço do IP da máquina que enviou o e-mail fica registrado no e-mail original e que pagando uma cervejinha para algum funcionário do provedor, pode-se descobrir o telefone de quem enviou.

---- Chantagem. – Ele fez um segundo de silêncio, provavelmente analisando em seu mundo interior se deveria ou não confiar em um desconhecido para falar sobre esse assunto. – Isto é sério o bastante?

---- Com certeza! – Neste momento percebi que a ideia do café era apenas um pretexto para que a esposa se ausentasse.

---- Recebi um e-mail me chantageando a alguns dias atrás.

---- Você tem o original? – Perguntei imaginando que o tal “paravoce.doc” era um documento que também o incomodava.

---- Tive que apagar. Guardei só o anexo bem escondido. – Ele estava realmente convicto que sua técnica de renomear um arquivo compactado era uma ótima maneira de ocultar informações. Eu não contestei.

---- Então fica difícil.

A esposa voltou com um café requentado e o marido se calou imediatamente, eu tomava um pouco forçadamente enquanto abria e fechava programas de manutenção que no momento eram completamente desnecessários.

O telefone tocou bem longe.

---- É o telefone da sala de baixo. – Diz o marido – Você atende?

A esposa da com os ombros e sai da sala, imediatamente o marido me mostra o seu celular discando para o número de baixo.

---- Assim podemos conversar mais um pouco. – Fala o marido com o celular em um dos ouvidos, pronto para desligar quando a esposa atendesse.

Eu sorri, achando muito esperto o truque que ele usou, na verdade estava com medo de precisar tomar outro café daqueles para continuar a conversa.

---- Eu sei que as coisas no computador não são apagadas na hora. – o senhor marido finalmente demonstrava ter um conhecimento técnico superior a média dos usuários – Será que você não tem uma maneira de recuperar este e-mail original?

---- Pode ser, mas a quanto tempo foi isso? – Reparei que ele havia desligado o celular, sinal que sua esposa havia atendido o telefone de baixo.

---- Fazem umas duas semanas.

---- Hmmmm. – Eu estava tentando calcular a probabilidade de um e-mail apagado do banco de dados do outlook permanecer intacto mesmo depois de apagado. – Acho que existe uma chance. Mas é difícil.

---- Você poderia fazer isso pra mim? Eu sei que seu trabalho é caro, mas eu pago o seu preço. – Ouvindo os passos de sua esposa subindo as escadas, ele voltou a telefonar para o andar de baixo, fazendo com que sua esposa descesse tudo novamente. – Aliás, por que seu serviço é tão caro?

---- Bem, meu serviço é caro pela quantidade de coisas que eu sei fazer com um computador – É claro que eu não iria falar para ele que meu serviço era caro por que eu não queria trabalhar para sua esposa – Eu já brinco com os computadores desde meus seis anos de idade – este fato costuma impressionar as pessoas, que esquecem os próprios problemas para imaginar a droga de infância que eu tive na frente de um computador.

---- Você pode me ajudar? – Desliga o celular.

---- Imagino que sim, mas eu preciso de um pedaço do arquivo anexo para pesquisar no disco. – Terminei o café, meu estomago estava reclamando de maus tratos.

---- Tudo bem – Ele parecia receoso – mas eu preferia que você não visualizasse o arquivo. Você entende? – ele inclinava a cabeça para o corredor esperando pelos passos da esposa, mas, esta estava provavelmente parada na frente do telefone esperando ele tocar novamente.

---- Claro que entendo. – Na verdade eu entendia perfeitamente por que ele não queria que alguém visse aquela obscenidade, se fosse comigo e se eu fosse tão feio pelado, eu me suicidava.

Ele se aproximou da porta, para poder monitorar melhor os passos da esposa, e cochichou rapidamente:

---- Está nos meus documentos, “paravoce.doc”.

No momento eu estava editando o autoexec.nt, e adicionando comentários explicativos completamente inúteis ao arquivo para fingir que estava trabalhando, pretendia reiniciar o micro e retirar os comentários, mas, mudei de janela e abri os documentos daquele senhor (No bom sentido!).

Fingindo total espanto com a operação ilegal, mostrei a tela para ele. No exato momento ele estava ligando novamente para mesmo número, aparentemente sua esposa havia se mexido no andar de baixo.

Tentando reproduzir o processo que fiz em minha casa, abri o arquivo no bloco de notas, antes que ele me explicasse o complicadíssimo procedimento de renomear o arquivo para abrir.

---- Você abriu no bloco de notas? – Ele pergunta espantado com a incrível concentração com a qual eu fingia estar analisando aquele monte de caracteres desconexos.

---- Só estou procurando um trecho incomum para pesquisa– Inventei, para que ele pensasse que eu estava fazendo algo importante.

A esposa entrou no quarto e o telefone ainda estava tocando.

---- Você está esperando alguma ligação? – Pergunta ao marido.

---- Não, quem era? – Fala o marido com as mãos no bolso, tentando disfarçar o fato de ter acabado de esconder o celular. E olhando pra mim com o mesmo olhar que percebi em sua esposa quando cheguei, ele estava me dizendo: “Fecha esse negócio. Improvise qualquer coisa!”.

Com muita tranqüilidade, fechei o arquivo e voltei a fazer comentários inúteis no autoexec, enquanto isso, minha mente modificava o meu plano original, de um momento para o outro eu sabia exatamente o que eu precisava fazer para que todos terminassem aquele dia felizes. Não seria difícil, mas precisaria de muita cara-de-pau, e de um pequeno, porém muito dolorido sacrifício de minha parte.

---- Desculpe o abuso – Falei para a senhora – Será que você teria mais cafezinho? – Meu estomago virava apenas em imaginar aquele café nauseabundo, mas, era necessário para o bem de todos.

---- Ah sim! – Ela parecia um pouco decepcionada por ter que se ausentar novamente – Eu busco para você.

O Marido sorriu ao perceber minha iniciativa, ou talvez conhecesse o café de sua esposa e aquele fosse apenas um sorriso sádico, de qualquer forma, estava sorrindo.

---- Eu sei o que tem no arquivo. – Falei sério imaginando que ele apenas se assustaria um pouco, quando então eu confessaria o que vim fazer em sua casa, e faria uma proposta para resolver a questão. – São fotos suas.

---- Então foi você! – O brilho de raiva no olhar dele me indicava um sinal de imenso perigo, no exato momento eu percebi que havia me expressado mal e que ele havia somado o fato de aparentemente eu conhecer seu cunhado, com o fato do micro não estar lento, juntou com a minha estranha visita mal explicada e acabou entendendo que eu havia mandado o e-mail chantagista.

É incrível o tipo de besteira que uma pessoa é capaz de falar para se livrar de uma surra que não merece. Não sei de que filme eu tirei minha desculpa esfarrapada, mas, eu preciso assistir ele mais vezes.

---- Eu dei uma olhada no fonte do anexo, desculpe, não pude deixar de perceber que eram fotos compactadas. – Percebi os ombros do homem relaxando enquanto me olhava fixamente – Sabe? Com o tempo você se acostuma, você olha o código de uma foto e vê uma loira, uma morena...

---- Entendi por que você cobra tão caro. – A minha sorte é que ele provavelmente assistiu o mesmo filme e não entendia realmente muita coisa de computadores, senão, não tinha engolido essa. – Então você sabe que...

---- Sim – Interrompi tentando falar o que precisava ser dito antes que sua esposa voltasse com aquele néctar dos infernos que ela chamava de café. – Seria terrível se sua esposa visse isso...

Ele consentiu com a cabeça, eu coloquei um dos meus CDs no micro, ele parecia esperar que eu dissesse mais alguma coisa.

---- Confia em mim para resolver seu problema?

---- Tenho outra escolha? Minha esposa anda mexendo no micro, acho que ela está procurando isso. Deve saber de alguma coisa.

Eu apenas consenti com a cabeça e ele continuou.

---- Até achei que ela tinha te chamado para procurar...

---- É... Ela chamou... Por que eu sou o melhor – Um pouco de autopromoção sempre faz bem para a autoestima de um autodidata, ele parecia não saber como reagir. – E vai chamar mais gente até estar satisfeita. Eu posso dar a ela algo menos chocante, ela vai achar ruim, mas, não vai ser o fim do mundo. Tudo bem?

---- Tudo. – Ele falou baixo, meio que forçado, como se eu também o estivesse chantageando.

A mulher demorava para chegar com a água suja de café, provavelmente por que se deu conta da porcaria que estava oferecendo para um outro ser humano beber e resolveu passar outro, ou, o marido estava o tempo todo ligando para o telefone da cozinha, nunca vou saber.

Copiei o arquivo secreto para outra pasta, e marquei tudo como invisível, depois copiei um arquivo do meu CD para o diretório original. Eu preparei este arquivo com o mesmo nome, o mesmo tamanho, e até a mesma data, planejando abrir para a senhora ciumenta (que deveria estar sozinha em casa) e mostrar apenas algumas fotos de garotas de biquíni e seminuas, todas saídas diretamente de sites de revistas nacionais que seriam acessados por qualquer marido, por mais fiel que fosse, nas horas de lazer.

A mulher voltou, e me trouxe um café que pela demora deveria ter sido passado naquele momento. Bebi o primeiro gole e segurei a careta.

---- Desculpe a demora, eu tive que esquentar de novo. – Outra vez ela subestimava meu poder de observação.

Deixei o café, em um canto e comecei a explicar as coisas que eu fiz no micro.

Fui mostrando como os programas estavam abrindo mais rápido depois de uma hora fingindo estar fazendo alguma coisa, e provavelmente por autossugestão ambos se impressionaram com a velocidade.

Para mostrar a velocidade dos documentos, fui abrindo alguns documentos de poesias melosas do marido e “acidentalmente” abri o paravoce.doc que eu havia plantado no local.

Por mais rápida que tenha sido a abertura do arquivo e a operação ilegal do Word (que tomei o cuidado de reproduzir em casa implantando alguns caracteres extras no final do arquivo), pude ver em câmera lenta os dois se curvando extremamente ansiosos e assustados.

---- Opa! Parece que ainda tem algum problema aqui...

---- É, aproveite e veja o que isso – Disse-me a esposa com ares de satisfação, provavelmente achando que foi genial a minha ideia de abrir o arquivo na frente do marido que estava visivelmente constrangido.

Repeti o processo, abri no bloco de notas, me surpreendi ao perceber que era um zip:

---- Oras, é um arquivo compactado com o nome alterado – Falei com ares de grande descobridor.

Sem fazer perguntas, renomeei e abri. O nome das fotos eram os mesmos do arquivo original, compostos de letras e números sem sequência, porém facilmente identificáveis. Preparei os arquivos com o mesmo nome apenas por precaução, mas, isso fez com que o marido começasse a respirar visivelmente nervoso. Ele sabia que eu havia trocado o arquivo, mas, aparentemente o medo de que eu tivesse cometido algum erro o deixou muito nervoso, para total satisfação de sua esposa.

Abri o arquivo, e disse:

---- São fotos.

A esposa sorria maquiavelicamente, podia-se ver os pensamentos saindo de sua cabeça, ela imaginava fotos da amante secreta de seu marido, fotos de seu marido abraçado com ela em uma viajem de negócios, principalmente, fotos que serviriam para motivar um lucrativo divórcio.

Abri a primeira foto, fingi surpresa, mas, minha representação não chegou nem perto da expressão de total espanto no rosto dos dois. Era como se nunca tivessem visto uma menina de biquíni na praia. Fui abrindo uma a uma como se eu é quem estivesse curioso, e dizendo:

---- Hmmm, são só fotos de meninas que circulam na Internet. Acho que já as recebi por e-mail um dia desses...

Pude reparar que a esposa estava brava, mas, muito mais do que brava estava chateada, não era nada tão grave que pudesse justificar toda a desconfiança e pensamentos de assassinato. O Marido estava preocupado, porém segurando um sorriso cínico de quem sabia que jamais guardaria aquelas fotos que estavam sendo vistas.

Enquanto eu me levantava e arrumava minhas coisas, um insuportável silêncio se apoderou da sala. O clima estava perfeito para uma briga de casal, e tentando contornar o fato me desculpei:

---- Ops... Desculpe ter aberto as fotos.

---- Tudo bem - diz a mulher forçando calma.

---- Eu nem tinha conseguido abrir o arquivo, guardei para tentar abrir depois – Disse o marido provando que era ótimo em improvisações.

---- Bom, acho que meu trabalho aqui está terminado.

---- Eu o acompanho até a porta – oferece-se o marido.

Abandonamos a esposa sozinha no escritório com seus pensamentos, e fomos descendo as escadas em silêncio, o sorriso na boca feia daquele homem ia aumentando a cada degrau.

Ao chegarmos na porta, ele me lembrou de um detalhe que eu já havia esquecido:

---- E quanto lhe devo?

Olhei para o relógio, e cobrei cento e quarenta reais por uma hora e meia de embromação e por ter salvado a pele de um pobre rico homem.

Ele me pagou o dobro em dinheiro.

---- Você é bom mesmo! – Falou admirado. – Sempre que eu tiver um problema vou te ligar.

Depois daquela “ameaça”, coloquei-me rapidamente a caminho da minha casa, estava difícil para minha mente processar tudo o que havia acontecido naquela tarde. Cancelei meus outros serviços e sentei olhando para um documento em branco em meu micro, onde pretendia escrever este texto.

Quando digitei o primeiro título que me veio a mente: “Incidente tecnológico”, o telefone tocou. Era ele:

---- Estou ligando par agradecer novamente.

---- Tudo bem, não precisa agradecer...

---- Só tive uma pequena discussão com minha esposa, agora está tudo certo.

---- Que bom, fico feliz em saber.

---- Eu não saberia o que dizer se ela visse aquelas montagens.

---- MONTAGENS???

---- Sim, minha esposa não entende nada de computadores, e iria achar que as fotos eram verdadeiras. – Ele fez uma pausa, mas, percebeu o meu silêncio e continuou – Não sei ainda quem mandou, mas, pelo menos o problema está resolvido. Parece que por que eu não paguei o chantagista, ele ligou para minha mulher e disse para ela ver o computador.

---- Então ela não achou o e-mail, e me chamou... – Concluí esperando fechar o assunto.

---- Exato, ainda bem que eu renomeei o arquivo.

---- É... Foi muito bem pensado. – Na verdade eu não pensava isso, em teoria ele deveria ter apagado o e-mail e o anexo sem piedade, mas, na prática, salvou o dia.

---- Vou sempre lembrar de você em minhas orações...

---- Orações?

---- Que Deus abençoe sempre o técnico nosso de cada dia. – Ele riu, se despediu, e desligou.

Enquanto eu apagava vagarosamente o título que eu havia escrito, para depois abrir aquelas fotos terríveis outra vez, milhares de ideias passavam por minha mente.

Era evidente o fato de ser montagem, as tonalidades da pele não coincidiam, nem a luz, sem falar que ninguém poderia ser realmente assim tão feio. Na pressa de tirar aquela imagem de meus olhos a primeira vez que abri, não reparei nos detalhes. Abri uma por uma e em todas encontrei evidencias de uma montagem muito mal feita. Na ultima montagem, onde o marido cobria um cachorro de perfil, estava o texto chantageador: “Deposite R$ 20.000 na minha conta, ou providenciarei para que sua mulher veja estas fotos.”

Estranhamente não havia nenhum número de conta, talvez, estivesse no e-mail. Não sei, eu poderia telefonar e sugerir para que ele depositasse um real na conta do chantagista e descobrisse o nome dele pelo recibo, mas, ele já deve ter pensado nisso e eu realmente já abusei bastante de minha sorte com toda essa história.

A partir de hoje, eu juro que vou passar a triste noticia de anos de trabalho perdido por uma peça que queimou com um grande sorriso, eu prometo que vou recomendar amavelmente aos usuários que usem apenas copos de vidro nos CD-ROMs para evitar que o café derrame, vou esquentar um outro salgadinho no microondas ligado na fonte antes de mudar ele de tomada e finalmente sempre que alguém ler números hexadecimais para mim por telefone, vou escutar atentamente e fingir que estou entendendo. Por que nada poderá ser pior do que esta tarde bem remunerada que tive antes de ontem.

Uma coisa ainda me preocupa, ele disse que vai me chamar para resolver qualquer outro problema que ele tenha e, paga muito bem por meus serviços, mas tudo bem, isso não é nada que trocar meu número de telefone não resolva.

=NuNuNO==

( Que divide o mundo em 10 tipos de pessoas, os que entendem binário e os que não entendem. Hããããã hãããããã hããããã hããããã)

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 22/12/2010
Código do texto: T2685988
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