O Caso da Penhora da Boiada

I

Nós mineiros temos um ditado antigo e muito citado atualmente por brasileiros de todas as regiões: “dou um boi para não entrar numa briga e uma boiada para não sair dela”.

Antes de darmos as boas-vindas à leitura deste caso da penhora da boiada, vamos tentar desvendar como se originou esse ditado popular?

Com certeza será necessário que retornemos no tempo e no espaço: o desbravamento e a colonização da região de Minas Gerais tiveram início por volta do século XVI e foi principalmente levado à efeito pelos bandeirantes que partiam do povoado de São Paulo em busca de ouro e pedras preciosas.

Muito da nossa história e dos nossos costumes começam de fato a se formar e a se constituir exatamente ali. Em 1693 - por exemplo – foram descobertas importantes jazidas de ouro na serra de Sabarabuçu, próxima aos ribeirões do Carmo e do Tripuí. Essa e outras descobertas provocaram um intenso fluxo migratório para a região das Minas.

Este crescimento populacional trouxe como consequência imediata o desenvolvimento do comércio: para atender às necessidades de toda aquela gente tornou-se essencial a presença de comerciantes, principalmente daqueles que lidavam com produtos alimentícios básicos derivados da agricultura e da pecuária.

O gado teve então um papel preponderante tanto no que concerne ao desbravamento inicial da região quanto na posterior interiorização do processo de colonização do Brasil. Na medida em que os “tropeiros” iam adentrando pelo território brasileiro rumo às terras localizadas a oeste de Minas Gerais e no atual Estado de Goiás, ao mesmo tempo em que expandiam a colonização portuguesa eles tomavam posse de terras ainda pertencentes ao domínio espanhol.

Diante de todos estes fatores, deu-se certamente o enriquecimento de muitas famílias de mineradores e comerciantes. É possível então que uma das primeiras fontes na origem do referido ditado tenha sido exatamente o seio dessas ricas famílias, muitas delas proprietárias de uma grande quantidade de cabeças de gado.

Outro dado importante nesse estudo reside no fato de que a exploração do ouro desencadeou muitas rivalidades e guerras entre as variadas populações da colônia. Temos como exemplo maior a sempre citada Guerra dos Emboabas, confronto travado entre os são paulinos (os moradores de São Paulo) e os demais habitantes da região das minas (portugueses, etc.) pela exploração das jazidas de ouro. É possível então que se tenha tornado muito comum entre a população daquele tempo dizer que se “dava um boi para não entrar numa briga (ou numa guerra), mas uma boiada para não sair dela”. E – cá para nós - aqueles em verdade eram mesmo tempos de várias “brigas” e muitas boiadas!

Vemos assim que muito da nossa cultura e dos nossos costumes – e entre estes certamente se encontram os ditados populares - descende diretamente do tempo passado, da história não muito distante da vida de homens, mulheres e crianças que nos antecederam no tempo e no espaço.

II

Deixemos, entretanto, de lado o estudo da nossa cultura e nos refresquemos numa outra história mais recente e igualmente repleta de bois e vacas pastando solenes em nossos jardins.

É possível que num momento ou noutro da leitura de alguns desses textos, venha o leitor a desconfiar da veracidade do mesmo. Este é deveras um risco. Devo lembrá-los, no entanto, que cada uma dessas histórias tem o seu fundamento na realidade. Todas elas aconteceram de fato nessa Terceira Região do Tribunal Regional do Trabalho.

O que não raro pode ter ocorrido foi o fato deste contador de histórias que vos fala ter preenchido com um tanto mais de músculos e carnes o esqueleto magro de alguns desses enredos. Mas se isso de fato tiver acontecido, não há outra coisa a fazer senão perdoá-lo. Afinal, sabe-se muito bem que às vezes quem conta um conto acaba aumentando um ponto!

III

Este caso aconteceu no fórum trabalhista de Belo Horizonte.

Um oficial de justiça recebeu um mandado expedido pela Secretaria de uma das Varas da Capital e se dirigiu até o local designado para o seu cumprimento. Determinava o Juízo que o oficial procedesse ali à penhora de determinada quantidade de cabeças de gado suficiente para garantir o pagamento daquela execução, não se determinando ao certo nada a respeito do sexo ou da idade dos animais.

Até aqui tudo ia muito bem. O estranho nessa história, porém, é que o endereço para o cumprimento do referido mandado era o de uma sofisticada residência urbana localizada numa das ruas mais movimentadas do bairro Anchieta.

Então – visando não deixar de cumprir o que lhe havia sido determinado pelo Juízo - registra o senhor oficial de justiça as seguintes palavras na certidão que anexou ao mandado:

“Certifico e dou fé que em cumprimento ao r. mandado, compareci ao endereço nele indicado. Chegando lá fui recebido pelo Sr. Fulano de Tal, o proprietário daquela residência. Este franqueou-me imediatamente todas as portas de sua casa, permitindo que eu desse entrada e observasse cada um dos cômodos ali existentes, inclusive no dormitório e no banheiro da secretaria daquele lar. Certifico que não encontrei naquela residência qualquer sinal de bois, vacas ou bezerrinhos e que tudo ali se apresentava da forma mais limpa e asseada possível. Diante do exposto, inviável se torna neste local a penhora dos referidos bens. Devolvo o mandado à origem para considerações superiores. Belo Horizonte, 23 de setembro de..., Fulano de Tal, Oficial de Justiça”.

Conclusão: apesar do presente caso não ser exatamente um daqueles “do tempo em que os bichos falavam”, não vejo outra forma mais correta de finalizá-lo do que com uma quadrinha que muitas vezes ouvi de meu pai nos tempos de eu menino:

“Entrou no bico do pinto, saiu no bico do pato,

Quem escutou essa conta quatro;

Entrou no bico do pato, saiu do bico do pinto,

Quem escutou essa conta cinco”