UM PEDAÇO DE CHÃO MOLHADO E DUAS ENXADAS.

Ultimo de onze. Quatro desses morreram do mal de umbigo, em um tempo em que a assepsia era efetuada à base de mel de fumo. E como se produzia esse mel? A parteira mastigava a masca de fumo, mastigava que mastigava. Cuspia na palma da mão esquerda e nesta ensopava uma mecha de algodão. Punha sobre o umbigo do recém-nascido. De dois em dois dias repetia a operação. Somente porque Deus é grande sobravam mais nascituros do que iam do mal do sétimo dia. Dona Amaralina salvou sete. Sendo que o Delfim por um milagre. Um prático de farmácia recém-instalado no povoado de Ribeirão Grande com uma botica visitou a parturiente e ao ouvir falar no mel de fumo, disse ao marido:

- Não, não, não deixe fazer isso. Não se cura mais umbigo com cuspe, se limpa com álcool. Espere um pouco.

Correu à botica, trouxe meia garrafa de álcool e um pacote de algodão.

- Ta aqui. Mande por uma mexa de algodão no umbigo do menino depois do banho e deixe que fique até secar. Repita isso diariamente, sempre depois do banho. Só uma vez ao dia. Até o umbigo cair.

E assim salvou-se o bedelho. Quando foi o dia do batizado, dona Amaralina consultou Zé Pionoro, o marido. Queria o boticário como padrinho de seu filho. Tantos tinham morrido do mal dos sete dias, que temeu que fosse também aquele. Considerava que o moço Jorge Xavier da farmácia o salvara. Pronto e alegre foi o atendimento:

- Muito bem, muito alegre acolho o pedido. E o nome?- perguntou.

- O senhor é quem bota.

- Ainda pretende ter outro?

- Ave Maira, doutor nessa idade... Deus me livre de mais!

- Então bote Delfim. Em minha terra o último filho príncipe é o herdeiro do trono.

Salta a garota Alventina, a mais idosa dos irmãos, 10 anos e diz:

- E sou eu que quero cuidar desse principezinho.

E cuidou mesmo. Caído o umbigo, o que significava fim do risco do mal, passou a banhar o pequeno, empoar de talco, oferecer a mamadeira... Só saía de suas mãos para o peito da mamãe. Só disso ela não podia cuidar. Não podia, porém olhava com um gosto... Pensava, “eu também vou ter um filho e amamentar”. Com essa idéia encostava o irmãozinho no mamilo e fazia que ele buscasse sugar. E deu que ele começou a mover a mãozinha na tentativa de buscar o seio. Pronto. Foi o primeiro gozo sexual da garota, que se excitava e o espremia sobre si. Ampliava cada dia mais a experiência e a cada dia maior era a sensação – o gozo, o vamos dizer. Não demorou muito. Aos onze anos lá está Alventina apontando os nascentes seios. Aos doze, já o Delfim não era o seu xodó. Antes, largava-o à vontade, mexendo com os bonecos e se deixava esfregar nos seios pelo garoto vizinho, um rapazote de quinze anos.

Com pouco...

- Mãe tou sentindo umas tontura...

- Deixa de besteira, menina, isso passa. É coisa da idade. Tua idade de mocinha chegou ligeiro...

- Mãe, fala dias depois a garota, tou sentido uns enjôo, umas ânsias de vômito...

- Cumo é menina? Ânsia de quê? De... De... De vômito? Menina, meu Deus do céu!

Posta a confissão a guria disse que andou fazendo umas coisas com o Godofredo.

- Virge Nossa Senhora, qué qui vou dizê a Pionoro. Esse home me mata! Cuma acuntece isso, meu Deus! Dois minino... E o cachorrinho bem qui já tá rapaz. Disgramado! Comeu minha filha. Disgramado. E agora, meu Deus, que qui vou dizê...

- Que qui vai dizê, o qué, que qui vai dizê a quem? – pergunta o marido que chegando por detrás ouviu parte das lamentações.

- Oi, você tá í home de Deus? Ouvindo a gente pelas costa?

- Num tava ouvindo, cheguei quando falava “disgramado” e invocava Deus. Qué qui houve pra tamanha agoniação?

- Qué qui houve, ah! Qué qui houve? Sei qui você vai me matá. Tá grave! – fala apontando a filha, tá grave.

E ele que não percebeu o gesto, só ouviu as palavras, abriu um meio riso dengoso:

- De novo? Num dixe que´ra o último e num chamou Delfim? É vê qui vem u´a Delfina?

- É eu não, home de Deus, é ela - e apontou mais uma vez a filha.

- Cumo? Quem? Qui disgrama me diz? E quem foi o cachorro atrevido?

Silêncio.

- Fala, mulé, fala logo – sacudiu-a o marido pelo pescoço.

- Nun me bate qui não tenho nada cum, isso. É ela mesma, essa cabritinha e o colega dela o Godofredo...

-... Godofredo? Aquele menino? Moleque disgramado! Vou fala com o pai dele agora mesmo! Capo aquele moleque! Casa imediatamente ou capo!

- Casa pa vivê de quê, home de Deus? Dois minino...

- Minino uma ova! Pra emprenhá num é menino. Pa trabaiá e sustentá a famia é? Casa ou capo. Vou dize ao pai dele agora mesmo. Nun janto sem acertá essa conta.

No dia seguinte o padre. No terceiro dia o novo casal de enxada na mão. Um pedaço de chão molhado, duas enxadas sustentam uma família. Todo ano mais uma barriga. Logo mais outras enxadas. A terra, da qual veio o homem e para a qual irá ao fim de seu tempo, o sustenta. Um casal na área rural, um pedaço de chão, duas enxadas, oferecem o pão, a casa e a veste. Com empenho e boa vontade sobra para a escola do filho, Deus seja louvado.

Assim foi com Godofredo e Alventina, assim com a gente da área rural que alcançou a fortuna da gleba própria. Uma sociedade não poderá ser somente de doutores e professores, empregados públicos. Sim e também e, sobretudo, de trabalhadores rurais que plantam e colhem o pão da mesa da comunidade. Que todos tivessem a felicidade de Godofredo e Alventina, duas enxadas, um pedaço de chão.