Um Dia na Vida de Uma Estagiária de Direito

I

13h02min – Acabei de chegar ao escritório. Primeiro dia de trabalho, já viu né?! Precisa dar tudo certo, sair tudo perfeito. Afinal já não agüento mais pedir dinheiro aos meus pais pra comprar um lanche ou comer uma pizza com os amigos.

Bem: expediente na mão, estou pronta pra sair. A Justiça do Trabalho e o Fórum que me aguardem! Talvez seja mesmo como disse aquele colega estagiário que começou a apresentar uns tiques nervosos e se viu afastado de repente do escritório: um olho na pauta e o outro na vida. O outro na vida, gatinha!

13h28min – Ufa, acabei de chegar à Justiça. Até me lembrei – não sei bem por que – dos primeiros versos de uma antiga canção que minha mãe tinha a mania de cantarolar. São mais ou menos assim:

E aí

Eu comecei a cometer loucura

Era um verdadeiro inferno

Uma tortura

O que eu sofria por aquele amor...

13h36min – O tempo voa! E que enorme quantidade de processos os advogados do escritório querem que eu veja nesse primeiro dia. Parece até que os autos se reproduziram durante a noite nas folhas do meu expediente em dezenas de filhotes-autos: processos de números 538/09, 649/05, 433330000/hgi-11 da 1ª. Vara de Família, 548/08 da 13ª. Vara do Trabalho; 00831/07 da 20ª. Vara; outro da 35ªa. e mais um da 6ª. Vara do Trabalho; outro dois da 18ª. e 19ª., este da 28ª e ainda aquele da...

A lista parece não ter fim! É uma mistura de números que saltam, pulam e rodopiam sobre as linhas desse expediente. Será que terei tempo suficiente para cumprir tudo hoje - eu me pergunto. E começo a ficar preocupada e a me sentir um pouco aflita. Mas certamente que o tempo vai dar de sobra! Afinal, a tarde só está começando! O outro estagiário – aquele que deixou o escritório e que depois foi encaminhado pelo médico a uma clínica de recuperação e repouso – me disse que sim, que o tempo costuma às vezes ficar meio curtinho e apertado, mas que dando uma corridinha aqui e uma apertadinha ali vem a dar tudo certo e que lá pelo fim da tarde talvez até me sobre um tempinho para tomar aquele delicioso suco natural de uva na lanchonete da esquina.

Bem: acho que é mesmo como diz o meu professor de direito comercial citando Júlio César ao tomar a decisão de cruzar o rio Rubicão com as suas legiões: alea jacta est, isto é, a sorte está lançada!

Felizmente eu já estou na fila do elevador. Vou descer no último andar e começar por lá o meu dia de trabalho. Foi exatamente isso o que os advogados do escritório pediram que eu fizesse logo que chegasse à Justiça.

(Mas: e essa fila que não anda? Parece até de propósito! Todos os elevadores subiram juntos e já faz quase dez minutos que estamos parados aqui, brincando de “estátua”...)

14h54min – Já passei pela 38ª. e a 40ª., pela 5ª., a 6ª. e a 8ª. Varas. Acabei de pegar uma senha e estou aguardando diante da porta da Secretaria. O chato mesmo é ficar esperando a chamada no painel eletrônico. Às vezes demora um pouco. Por outro lado, parece que ficou tudo mais organizado.

Pela janela da porta da Secretaria, vejo três advogados no balcão. Um deles é um pouco obeso e se parece com aquele meu ex-colega estagiário. Não é por nada não, mas aquele companheiro estava mesmo muito estranho. Quando o vi pela primeira vez no escritório ele um brilho esquisito no olhar, alguma coisa que me assustada e perplexa. E - de mais a mais – aquela sua boca meio torta e o olho estrábico repuxado pra um dos lados faziam com que o pobre ficasse feio mesmo!

Mas o pior era aquele tique nervoso retraindo ainda mais o seu olho toda vez que ele repetia o número de um processo no balcão das Secretarias. Perguntei a ele onde é que arranjara aquilo e o cara ainda teve a coragem de me dizer que não era nada e que ainda nem se apercebera da coisa.

Isso foi há três dias. Hoje eu soube que o internaram definitivamente naquele hospital psiquiátrico. Mas que aquele repuxo era muito esquisito, lá isso era! Mais tarde, se me sobrar um tempinho, ligo para saber notícias do colega...

Milhões de diabinhos martelando

O meu pobre coração, que agonizando,

Já não podia mais de tanta dor...

15h22min – Mas o que eu estou precisando agora é de ir ao banheiro. E urgente, senão vou acabar fazendo pipi aqui mesmo! Pego ou não a senha antes de ir ao banheiro? Pego sim! É só uma questão de segurar a bexiga um instante mais. E todo mundo está cansado de saber que as mulheres são boas nisso! Só mais um pouco, um pouquinho só...

Também não é pra menos: carregando nos braços essa quantidade de processos, o que admira é que ainda não tenha molhado a calça. Um colega do escritório disse que as estagiárias costumam chegar franzinas à Justiça do Trabalho, mas que saem de lá uns mulherões cheios de músculos e com uns braços de fazer inveja em qualquer halterofilista ou rato de academia. Ele comentou que esse é um dos efeitos de subir e descer escadas com os braços carregadinhos de processos. Mas o melhor nesse caso – concluiu o amigo com uma risada gostosa - é tentar ver as coisas pelo lado positivo: ao menos eu sei que estou economizando nas aulas de ginástica e musculatura.

Mas, e agora? O que é que eu faço? Não tinha percebido que o banheiro estava ocupado! Por essa eu não esperava, não contava mesmo! Não vai dar tempo...

Ai, graças a Deus que desocupou.

It’s now or never...

E aí

Eu comecei a cantar um verso triste

O mesmo verso que até hoje existe

Na boca triste de algum sofredor

(Sentada no vaso sanitário, a estagiária vai pensando e calculando: ainda tenho que ir na 18ª. e na 14ª., na 6ª., na 32ª., na 34, na 20ª. e na 39ª. Depois fica faltando só o Fórum)

15h58min – O tempo voa mesmo! Ainda agora quando olhei o relógio eram três horas e vinte e dois minutos. Já se passaram mais de trinta e eu nem percebi. E ainda me falta fazer tanta coisa!

Só naquela última Secretaria gastei quase quinze minutos. É certo que o balcão estava um pouco cheio mesmo. Teve uma hora em que chegou até a fazer fila do lado de fora. Mas aquele balconista também é um pouco lerdo, viu! Parece uma tartaruga manca com virose! É lento até para carregar um processo do armário para o balcão. Por outro lado, ficou tudo mais confortável e organizado.

(Nossa! O balconista acabou de atender um advogado muito gatinho! Fiquei só olhando: aquilo é m colírio para os olhos da gente! E que bundinha linda que o danadinho tem! É mara demais!)

Pronto: chegou a minha vez. Atendida! Vamos agora até a 14ª. vara para xerocar aquele laudo pericial....

Como é que existe alguém

Que ainda tem coragem de dizer

Que os meus versos não contêm mensagem

São palavras frias, sem nenhum valor

16h13min – Falta menos de uma hora para o fechamento das Secretarias. Acho que estarei numa boa daqui a meia hora. Vai dar tempo de sobra pra fazer tudo e até para aquele lanchinho. Bem que o estagiário maluco dizia que dava tempo!

(16h25min - Pausa: o celular da estagiária toca. É do escritório e pedem que ela vá à 4ª. e à 3ª. Varas para se informar a respeito de alguns outros processos)

16h44min - Agora é que danou tudo mesmo! Por mais que eu corra, é provável que não tenha tempo para cumprir o restante da pauta. Ainda me faltavam três Secretarias e o escritório me arranjou mais aquelas duas! Será que eles pensam que eu sou duas?!

(Pensando, distraída: até que não seria nada mal se eu tivesse um clone só meu. Duas estagiárias cumpririam muito mais facilmente todo o expediente. E fariam tudo num piscar de olhos. Até sobrava tempo para dar umas paqueradas!)

16h56min – Nossa! Só agora que eu percebi aquele processo marcado em negrito na penúltima linha do expediente. Só pode ser brincadeira! Ou será que não? Será que sim ou será que não? Que sim ou que não? Oh, dúvida cruel! Mas, e se não for brincadeira? E se eu não der bola e aquilo tiver alguma importância? Vê lá se um advogado de respeito iria escrever uma coisa dessas no expediente da gente: “A CARGA OU A MORTE”. E alguém ainda teve a audácia de completar à caneta: “se não conseguir fazer a carga desse processo, não precisa nem voltar...!”

16h58min - Como assim, “a carga ou a morte”? O que isto quer dizer afinal? Será uma brincadeira de mau gosto de algum advogado engraçadinho ou uma pegadinha jogada em cima da nova estagiária do escritório?

E colocaram aquilo logo no último item do expediente para dificultar a leitura! Acho melhor ligar para o escritório e tirar as dúvidas de uma vez. O problema é que o tempo já está ficando curto. Estou começando a ficar nervosa outra vez. Já deve ser quase cinco horas. Daqui a pouco as Secretarias vão começar a fechar. Deixa ver o relógio...

(17h01mim – Meu Jesus Cristo: Já passam das cinco! Não vou conseguir de jeito nenhum terminar o serviço! Tenho certeza que o balcão da 20ª. vara já vai estar fechado!)

17h02min – Corre menina, pula: salta os degraus de dois em dois como o estagiário maluco fazia! Pulo num zás do décimo quarto para o décimo terceiro andar. Estou até parecendo a Maurren Maggi nos Jogos Olímpicos de Pequim! Só mais alguns degraus e um último lanço da escada e pronto. Sei que não é certo, mas é possível que o balconista me atenda...

(A estagiária puxa com força a porta anti-incêndio que separa um andar do outro. A todo o momento ela dirige o olhar até o seu relógio de pulso)

Agora é só me apresentar ao funcionário, dizer que o meu nome é Fulana de Tal e que este é o meu primeiro dia de serviço nesse escritório de advocacia, que sou a nova estagiária de direito e que...

17h03min - Ah, o balconista da 20ª. Vara já me sorriu pela janelinha de vidro da porta da sua Secretaria. Uma das últimas coisas coerentes que o estagiário maluco chegou a dizer antes de adoecer completamente fora que o balconista da Vigésima Vara do Trabalho é gente boa à beça e que ele às vezes costuma quebrar uns galhos pra gente. Deus ajude que seja de fato “una brava persona”, senão estou frita! Vai dar o que falar no escritório se eu não conseguir concluir todo o expediente logo no meu primeiro dia de trabalho...

(A estagiária cruza os dedos por debaixo da pilha de processos que carrega com dificuldade...)

Com certeza ele vai me atender! Só faltam dois dias mesmo para o fim de semana e as pessoas parecem estar hoje mais relaxadas e felizes. Com certeza...

(Mas espera ai: e eu? Será que eu estou relaxada? Sei lá, acho que não! Estou é muito tensa, bem mais do que quando comecei o meu dia de trabalho. Será que foi por isso que o estagiário maluco pirou o cabeçote? E se eu entoasse aquele mantra que a menina da Psicologia me ensinou e que disse que tranqüiliza e acalma: haummmmm, haummmmmmm...)

Acho que não está dando certo! Continuo agitada, muito nervosa mesmo...

Mas também pudera: esse “A CARGA OU A MORTE” continua martelando fundo na minha cabeça, me impedindo de concentrar em qualquer outra coisa. Parece até que estou ouvindo vozes, feito aconteceu com o estagiário...

Não, não! Não é nada disso. O que estou ouvindo é a minha voz mesmo, cantando aquela música antiga que não quer mais se desgarrar da minha memória!

Oh! Deus: será que o senhor não está vendo isso

Então, porque é que o senhor mandou Cristo

Aqui na terra para semear amor

Pronto, o balconista já está me chamando por detrás da janelinha de vidro. Vou pedir mil desculpas e...

Com certeza vai dar tudo certo!

17h04min – Ops, a porta da Secretaria ainda está aberta!

Entro e finalmente dou “boa tarde” ao balconista. Ele me responde um “boa tarde” cansado, mas alegre. Digo que me esqueci de pegar a senha na maquininha das senhas e ele me diz que não tem problema não, pois o sistema do guichê já foi desligado há alguns minutos. Parece que o cara é gente boa mesmo como o estagiário esquisito havia dito. Tenho que guardar o nome dele...

Agora é só respirar, me recompor um pouco e solicitar que ele me faça a carga daquele “bendito” processo. Pronto: já está imprimindo as três vias do recibo de empréstimo dos autos. Assino uma delas e a devolvo ao balconista. Agradeço, digo até amanhã e me despeço completamente feliz. Afinal, consegui cumprir todo o meu expediente trabalhista! Vamos agora rapidinho ao Fórum.

II

(Na manhã seguinte o rádio-relógio dá início ao dia da estagiária às 05h50min. O aparelho desperta tocando uma música alegre e divertida. Alguns minutos depois a estagiária abre, sonolenta, um dos olhos, coça a barriga, se espreguiça e começa a se preparar mentalmente para mais uma difícil jornada de estudo e trabalho. Então, às...)

06h05min – Acordar cedo, tomar café com leite e comer uns biscoitinhos água e sal. Tenho que ter cuidado com a balança, senão depois fica difícil. Minha avó italiana me disse que a nossa família tem uma tendência absurda pra engordar.

Agora vou tomar um banho e em seguida me ajeitar. Tenho exatamente quinze minutos pra fazer isso tudo, incluindo passar o batom e cuidar dos cabelos.

Em seguida virá o ônibus lotado, a faculdade, os professores e os amigos.

Mas o melhor do dia vem com certeza no meio da manhã: entre uma aula e outra dou um jeito de dar uma fugidinha para me encontrar com os colegas na lanchonete da escola e dividir o meu refri diet com a Thaís, jogar conversa fora com o Marquinho e relaxar. Sim, é disso que estou precisando hoje: re-la-xa-men-to! O dia de ontem foi mara – quer dizer – barra demais!

Talvez o mantra da colega da Psicologia ajude mesmo. Vou tentar de novo mais tarde para ver no que dá. Afinal, daqui a pouco são treze horas e tudo começará outra vez...

Mas, espera aí?!

Por que é que você está me olhando desse jeito? Está pensando o quê?!

Achou mesmo que era fácil a vida de uma estagiária de direito?! Não é mole não, meu irmãozinho, não é mole de jeito nenhum! Mas também é muito, muito mara mesmo!

Bye bye, então. Mais tarde a gente se encontra por aí...