Zeca e Tenório

Zeca e Tenório

Passaram margeando a Gruta dos Bugres e caminhavam em direção à Serra do Corvo Branco, que na época era uma picada em direção a Grão Pará. Calados. Não se sabe se por falta de assunto ou por medo da escuridão. Ouviram histórias pelas bandas de Água Branca, na parada que deram no Boteco do Euzébio.

Zeca, tocador de gado, peão de primeira e um grande devoto de Nossa Senhora. Tenório, capataz de fazenda, pegou fama de valente depois que salvou uma criança no Rio Pelotas, quando deu uma enchente. Viajavam em dupla por simples coincidência.

Zeca iria abaixo da serra pegar umas cabeças de gado e Tenório fazer serviços para o patrão. As histórias que ouviram foram a respeito de assombrações e aparições, no local que teriam que passar.

-Porque não esperei pra fazer esta empreitada pela manhã, pensava Zeca, enquanto Tenório reacendia a lamparina a querosene.

- Tenório, você acredita naquilo que nos contaram? Ele perguntou referindo-se às assombrações e aparições.

-Que é isso?... Não sou homem de ter medo, respondeu Tenório; mas levou a mão à cintura e apalpou o parabelo, um revólver de cano longo, calibre 45. Perguntou ao amigo:

-Por acaso estás com medo?...

-Não, não é bem isso, mas sempre é bom a gente se precaver. Eles disseram que é por estas paragens que aparecem fantasmas!

-Pois eu vou lhe garantir uma coisa meu amigo. Se um dito aparecer, vou pegá-lo pelas orelhas e olhar no olho, para ver de que cor é, e se tiver guampa, vou segurar num lado só pra ver o rodopio! E ademais, meu quarenta e cinco garante a gente!

Tenório falou tudo isso, levantando a voz.

-Não é bem isso, respondeu o Zeca, nós não somos nenhum engravatado da cidade, mas que este lugar faz qualquer vivente arrepiar, isso faz! Ainda mais que eles me contaram, enquanto o senhor estava arriando a montaria, que na última lua cheia o filho do Felício Machado chegou em casa batendo queixo e arrepiado. O pobre do homem ficou com a língua travada durante sete dias; no oitavo contou que tinha visto o dito e que tinha dado uma bofetada nele, chegando a cambalear. Felício Machado foi achar a montaria do filho lá pras banda de Vacas Gordas.

-É tudo história, parceiro. Comigo não pega. Garanto que pela manhã vamos tomar leite de apojo na casa de Turíbio, em Grão Pará, disse Tenório, dando um giro de 360 graus com a lanterna, continuando a andar.

Zeca ouviu calado e calado ficou.

Caminharam mais uns cinco minutos e ouviram o barulho de passos no mato.

Zeca se aproximou mais das costas de Tenório.

-Que é isso, homem? Estás com medo de novo? Não fica preocupado, não! Pode aparecer até o demo! Estou louco para empurrar duas azeitonas nas ventas. Ele vai sentir o coice das minhas balas. Estão novinhas, carreguei ainda esta semana. Quem colocou as espoletas foi o Nego Dadá.

Talvez Tenório quisesse mostrar sua valentia ou tranqüilizar seu companheiro, mas se Zeca pudesse ver o seu rosto, veria uma expressão de medo.

-Olha, seu Tenório, já vi muita gente metida a valente falar e depois esverdear de medo. Espero é que Nossa Senhora Aparecida acompanhe nossos passos e nos cubra com seu manto sagrado.

Zeca não viu que Tenório rapidinho se benzeu, e não ouviu quando ele disse: Amém.

Chegou a subida. A lamparina começou a pipocar, sinal que a querosene estava no fim.

A cada lampejo, Tenório sacudia a lamparina, fazendo com que a luminosidade aumentasse.

Não se ouvia qualquer outro barulho, a não ser o cantar dos grilos. Tenório olha para o céu. Está límpido. Visualiza varias estrelas e o cruzeiro do sul, confirmando a rota e a lua que surgia.

Pararam, colocaram querosene na lamparina e em seguida reiniciaram a caminhada. Não deram dois passos, ouviram um barulho estranho.

-Ouviu, seu Tenório?

Tenório ouviu, porém disse que não, mas seus olhos esbugalhados refletiam a luz da lamparina que carregava.

Os dois olhavam em volta e atrás. De repente, os grilos emudeceram e as folhas da beira da picada não balançavam mais com a brisa da noite. Um estropelo forte e ritmado, soando por todos os lados. Para complicar ainda mais este tétrico quadro, uma nuvem encobria a lua e as estrelas. O barulho de passos se aproxima cada vez mais. Zeca tremia, seu Tenório também. Tinham consciência que entraram numa furada. Seu Tenório, de arma em punho, entrega o pequeno lumeiro para o Zeca, aponta o parabelo para o nada e comanda a ação.

-Zeca! “Bota” a luz ali! Agora lá! Aqui, aqui! Aponta para onde achava que tinha alguma coisa. A pequena luminosidade provocada pela lamparina, em vez de encorajá-los, fazia sombras esquisitas por causa das árvores, provocando mais medo.

Sozinhos, quatro horas longe de um pouso seguro, estavam quase no meio da viagem.

Do nada, à frente na trilha, uma forma humanóide aparece, negra que nem virabosta, com um tamanho descomunal.

-Zeca! Te encosta no barranco e agacha!!...

A forma sinistra se aproxima dos dois, o velho quarenta e cinco dispara, o estampido ecoa no vale. A coisa continua, mais um estampido e novamente o eco dispersa repetitivo na mata. Mais dois disparos e aquilo não cai e nem pára; parte pra cima dos dois.

O dito, ou qualquer outra coisa que chamassem, passa por eles como nuvem e some na escuridão.

Zeca, acocorado com a cabeça no meio das pernas, rezava para que Nossa Senhora Aparecida lhe cobrisse com seu manto sagrado.

Tenório olhava o nada, sem nada entender. Ficaram ali por algum tempo. Não conseguiam se mexer. Zeca foi o primeiro a se levantar, para pegar algumas folhas e limpar as pernas.

Tenório em seguida catou alguns galhos de grimpa e queimou. Acenderam um pito e nada falaram.

Meio refeitos se puseram a caminho. Agora, quaisquer estalos no mato ou um pio de uma gralha faziam Tenório, alerta, apontar a arma na direção. Ambos sabiam que somente havia uma bala.

Neste misto de ansiedade e medo, repetiu-se o mesmo barulho, desta vez aumentado pelo estado de nervos em que se encontravam. Agora o barulho era apavorante.

-Virgem Santa! Gritou Zeca.

A poucos metros adiante, a sombra negra, com dois olhos faiscantes e focinho de cão.

Tenório não poderia errar. Colocou um joelho em terra e mirou bem no meio dos olhos daquilo. Zeca, como da primeira vez, acocorou e começou a rezar. Tenório sabia que não adiantaria correr. À direita, o paredão de pedras, à esquerda, o abismo, à frente aquela coisa! Ficaria ali mesmo até a última bala. E ele esqueceu que só havia uma no tambor.

Viu-se impotente ante algo desconhecido. Olhou rapidamente para o companheiro de infortúnio e viu que ele orava com fé. Seu rosto, iluminado pela lamparina, demonstrava serenidade.

A aparição permanecia imóvel à sua frente, a pouco mais de vinte passos.

Tenório começa a lançar desafios e a xingar. Zeca continuava a orar e pedir que Nossa Senhora Aparecida os cobrisse com seu manto sagrado.

Não houve um registro de tempo daquela cena horripilante; segundos pareciam séculos.

Lentamente, a forma negra começa a se mover e vai em direção dos dois. Tenório espera que se aproxime mais, cada vez mais. Quando tem absoluta certeza que acertaria no meio daqueles olhos demoníacos, atira. Zeca ouviu o click-click da arma e se preparou para morrer.

O tempo pára definitivamente. Nada, absolutamente nada acontece. O silencio é total.

Tenório, abraçado a Zeca, abre o olho devagar. Os dois não compreendem a situação; porém, tinham a certeza de que seus nervos tinham chegado ao limite. Saíram em desabalada carreira pela picada, que ora começava a descer. Uma corrida louca, desesperada. Seus gritos e as repostas tétricas do eco da montanha fizeram com que perdessem o raciocínio.

*******

No final da lida do campo, no boteco do Euzébio, dois peões conversavam com um viajante:

-É melhor o companheiro pousar aqui e viajar pela manhã, disse um deles, saindo com uma quarta de farinha nas costas.

-Por que, amigo?

-É que encontraram dois corpos lá perto da Serra do Corvo Branco, disse o que tomava dois dedos de cachaça.

-Foi algum crime? Indagou o viajante.

-Não se sabe, os corpos foram encontrados inteirinhos, sem furo de bala ou corte de faca. Um deles parecia que tinha visto o capeta.

-Tem um pouso para mim? Perguntou o viajante para Euzébio, que passava o avental no rosto suado.

-Amigo, em casa de serrano, ninguém dorme no relento. Pode se aprochegar, respondeu Euzébio, com ar de orgulho.

O viajante, após trazer as suas tralhas, senta-se para tomar alguma coisa. Um homem ao seu lado puxa prosa.

-Vai pousar esta noite aqui?

E sem esperar a resposta prosseguiu falando:

-Imagine, "seu"... Como é mesmo a sua graça?

-Gumercindo Conceição, a seu serviço!

-Conceição? O Senhor é parente do padre Bernardo?

-Sim, senhor, ele é meu irmão.

-Pois fique sabendo que irmão de padre Bernardo também é irmão meu, Muito prazer, eu sou Sebastião Stopazzolla.

Como bom italiano, o homem não parava de falar.

-Olha, “seu” Gumercindo, o que é a vida. Padre Bernardo me casou e batizou meus filhos. Daqui a pouquinho, depois de molhar a goela, vou pegar a estrada para Grão Pará, porque amanhã às dez horas o padre Bernardo vai estar batizando a criançada. A mulher do meu filho mais novo que está morando lá, teve um rebento mês passado.

Gumercindo Conceição pensou na oportunidade de reencontrar o irmão, que não via desde o natal passado. Ao mesmo tempo, o novo acompanhante na viagem chamou seu Euzébio, que estava enchendo de querosene os lampiões da bodega.

-Seu Eusébio, não “carece” mais eu ficar por aqui, muito obrigado pelo pouso.

A dupla prepara as montarias. Gumercindo pergunta:

-Seu Sebastião, me permite ir puxando?

Referia-se ao fato de ir à frente. Na época, era sinal de respeito os mais idosos tomarem a dianteira em uma estrada, mas Gumercindo notou que Sebastião estava um pouco alto. Precavia-se de cair em alguma vala ou atoleiro. Mais tarde, ele trocaria de lugar.

Tudo transcorria normalmente. A lua cheia no céu testemunhava o caminhar dos dois e a tagarelice de Sebastião. Gumercindo, quando muito, dizia: -Sim senhor, sem olhar para trás.

Madrugada fria, o vento caia cortando os beiços dos animais. Cada passo formava uma névoa. Na subida poupavam os cavalos, puxando-os pelas rédeas.

Estavam próximos da Gruta dos Bugres, onde um pequeno descampado se formara na grande enxurrada de fevereiro. Neste local se podia ver um pouco mais adiante.

Gumercindo vê de longe a silhueta de uma pessoa que vinha ao seu encontro. Estava sem montaria. Notou, porém, que ela caminhava muito devagar e trazia na mão uma luz amarela, provavelmente de uma lamparina. O cavalo estanca nas patas dianteiras e o de Sebastião foi contido com certo trabalho.

Na garupa, amarrada atrás da sela, a velha espingarda de dois canos. Fez menção de pegá-la, mas desistiu. Lembrou-se que os cartuchos estavam no alforje; não sabia se no direito ou esquerdo.

A poucos passos, o andarilho pára e grita:

-Calma amigos, sou de paz!

Sebastião é o primeiro a apear e ir ao encontro do desconhecido. Cumprimenta-o.

Gumercindo se apóia no pescoço de seu cavalo e lhe diz:

-Está vindo de onde, amigo?...

-Eu sou daqui mesmo! E vocês estão indo para onde?

-Vamos para Grão Pará, responderam os dois quase uníssonos.

O andarilho sai caminhando calmamente, passa por Sebastião, que levanta o chapéu em forma de cumprimento, e se encosta à beira do barranco, para passar pelos cavalos, que ainda estavam agitados. Ao passar, diz:

-Que Deus os acompanhe!

-A nós todos, responde Gumercindo.

Afastaram-se alguns passos. Gumercindo, agora atrás, volta a cabeça para olhar o andarilho. Ele estava parado. Gumercindo pergunta:

-Qual é a sua graça, amigo?...

-Zeca!

-Até um dia, seu Zeca!

-Até, amigos! Que Nossa Senhora guie seus passos e cubra vocês com seu manto sagrado!...