ACONTECEU NA QUARESMA

Era tempo de quaresma e o respeito imposto pela tradição religiosa metia medo. Os caboclos não se ousavam a desafiar os preceitos repassados pelo velho padre, que uma vez por mês, se deslocava da cidade e vinha para a celebração da missa no pacato povoado plantado naquele ermo sertão.

Viajando léguas, montando o alazão da paróquia, trazendo na cabeça da sela sua maleta com o cálice e as hóstias. Não mais que duas centenas, aja visto que os sertanejos espalhados pela redondeza, não atingiam este numero.

A missa nem sempre era celebrada no domingo, como costumava acontecer nos vilarejos mais populosos. Coronel Venâncio o manda chuva da região decretava feriado, liberando os agregados e exigia que seus colegas fizessem o mesmo. Naquela época o mêdo do capeta e o temor a Deus eram a grande arma utilizada pela igreja para arrebanhar fieis meter medo e amansar os sertanejos chucro, sem instrução, muitos dos quais nem eram batizados.

Por ser quaresma, muito atarefado na paróquia, o padre marcou a celebração para a sexta-feira que antecedia a semana santa. Assim poderia retratar um pouco o significado da simbólica comemoração. A Capela era pequena, mas acolhia bem aquela gente, de certo modo ordeira e respeitadora.

Momento antes da celebração apareceu um cavaleiro bem vestido de traços elegantes, amarrou sua montaria na gameleira da pequena praça, e adentrou para assistir a missa.

Todas as atenções se voltaram para o estranho elemento. Atraídos pelo seu riquíssimo e reluzente traje. Após a leitura do evangelho o padre pregou um sermão alertando os fiéis sobre a necessidade de se penitenciar na quaresma, ser caridosos e atinar por bons comportamentos.

Na quaresma é a época em que o demônio esta solto, e vem como lobo disfarçado de cordeiro. É o temível e lendário lobisomem, concluiu ele em sua pregação. Suas palavras fizeram com que o estranho recebesse um bombardeio de olhares de todos os presentes, mas indiferente ele permaneceu firme, indiscreto, e portou com naturalidade até o final.

No momento da coleta, as moedas ofertadas por aquela pobre gente, tilintaram umas nas outras atiradas na sacola. Terminada a celebração, o padre se assustou com um embrulho muito estranho entre as moedas coletadas. Intrigado quis saber qual o elemento que o colocou, mas o coletor não soube explicar. A filha do coronel que não tirou os olhos encantada com o estranho, logo afirmou tê-lo visto colocando o pacote na sacola.

Assustado o padre, pediu ajuda ao coronel. Um pouco temerosos abriram o embrulho. Uma vultosa cifra em contos de réis quantia jamais vista por aquela gente. O fato despertou a curiosidade coletiva e ninguém arredou pé do local. Procuraram pelo estranho ninguém o viu, desapareceu misteriosamente. Boquiabertos com o acontecimento começaram a contar o dinheiro, eis que derrepente deparam com um bilhete dobrado entre as cédulas.

No bilhete a seguinte mensagem: - caros conterrâneos sou filho desta terra daqui eu parti há trinta anos ainda criança, levado na grande cheia do rio, que arrastou o rancho de meu pai, o João das gamelas, quando perdeu a vida junto a minha mãe. Não sei se por sorte ou asar me salvei agarrado num tronco de madeira, levado pela corredeira do rio indo esbarrar numa barraca de ciganos muitas léguas abaixo. Todos acreditaram que eu estaria morto. Um casal de ciganos me acolheram. Criaram-me com muito carinho, mas a vida de nômade não estava meu sangue, como eles a carregam nas veias. Então em passagem por uma grande cidade, decidi fugir. Cresci na marginalidade praticando todos os tipos de roubos, assaltei bancos, igrejas e todas as instituições que encontrei pela frente.

Ao me desencarnar, abatido numa grande operação policial, nem cogitei bater a porta do céu, fui direto falar com o porteiro do inferno, mas lá também tem regras, e eu não sabia. Mandou-me devolver o dinheiro roubado das igrejas e de orfanatos, escondido por mim, em baixo de um viaduto. Disseram-me que só assim eles iam fazer um julgamento, se aceitariam ou não meu ingresso na corporação infernal. Caso eu não consiga ser aprovado terei que perambular eternamente na escuridão o que é muito pior que o inferno. Façam com este dinheiro uma instituição para acolher as pobres crianças que são abandondas, para que não sofram a mesma desventura que sofri. E assim acontecendo,talvez daqui a milhões de anos, eu possa ter pelo menos um pouco de luz!

Geraldinho do Engenho
Enviado por Geraldinho do Engenho em 18/04/2011
Reeditado em 20/08/2020
Código do texto: T2915610
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