A moça vestida de cor-de-rosa

Lembrei-me de mais um causo. Segundo dona Alzira, um causo acontecido. Pra quem ainda não sabe quem é dona Alzira, vou contar. Era uma senhora que, há tempos, pra mais de quarenta anos atrás, lavava roupas em casas de família. Era alegre, bem humorada, quando não estava com ojeriza da meninada que a atrapalhava na lida com a roupa. Cumpria sua tarefa de um dia inteiro: separar, molhar, ensaboar, esfregar, pôr pra quarar, enxaguar e de novo, pôr pra quarar, enxaguar, torcer e estender a roupa para secar _ ufa!_ ela fazia tudo isso contando causos, segundo ela, acontecidos.

Ela dizia que, em tempos passados, nos dias de sábado, aconteciam bailes em casas de família, para onde iam as moças casadoiras ou não, dançar com os rapazes da região, ao som de alguma sanfona. Bom. Esse causo aconteceu numa casa que ficava perto da linha do trem que dividia o lugarejo em duas partes: a banda de baixo da linha e a banda de riba da linha.

Vamos lá. É agora que vou começar o causo. Já fazia pra mais de ano que todo sábado, fazendo chuva, fazendo frio ou calor, o baile acontecia numa casa que ficava na banda de baixo da beira da linha. Lá, o Dão da Rabeca que tocava suas modas até o primeiro apito da Maria Fumaça, que chegava de sua última viagem. Primeiro apito do trem? Isso mesmo. Quando o trem noturno dava seu primeiro apito, todo mundo corria pra casa. É que a Maria Fumaça vinha resfolegando e espalhando fuligem pra todo lado e ninguém queria sujar a roupa única para todas as saídas de casa.

Bom, como ia dizendo, era pra mais de ano que acontecia o tal baile, até que apareceu por lá uma moça de vestido cor-de-rosa, com flores de cetim rosa na cabeça, de tão bela, mais parecia um anjo. Por muitos sábados serviu de ciumeira pros pares constantes formados para as danças. Todos os rapazes queriam tirar a moça pra dançar e até apostavam sobre quem não daria, pelo menos, uma rodopiada na sala com ela.

Como o apito da Maria Fumaça dispersava a moçada e acabava com a festa, das primeiras vezes em que a moça foi ao baile, não se preocuparam em saber pra onde e com quem a moça ia depois da dança. Até que um dia, o Dão da Rabeca verteu uma conjuntura sobre quem seria a tal moça de cor-de-rosa. Especulou. Queria ele saber quem seria capaz de se oferecer pra levar a moça de rosa pra casa depois que acabasse a dança. Daí, aconteceu até aposta. Todos queriam acompanhar a moça, que dançava tão leve que mais parecia pisar em nuvens. Que falava tão baixinho, tão melodiosa, que mais parecia entoar cantiga de ninar. Na hora agá, o Dão da Rabeca caiu fora. Não quis entrar na porfia. Resmungou que tinha que carregar a sanfona de volta pra casa, que era de muito peso e que ele precisava subir morro, essas coisas........ Fizeram uma combinação, cada um dos moços deu um trocado e tiveram de tirar a sorte pra ver quem iria se aprochegar da moça. Se o ganhador do trato, no sábado que vem, contassse tudinho, nome da moça, onde morava, de onde viera, levaria a monta do dinheiro recolhido que ficaria na guarda do Dão da Rabeca. Se não viesse com notícia nenhuma, ah, isso quereria dizer que a moça não havia dado confiança pra ele! Ele não levaria nada e ainda ia perder o que havia pago. Ganhou o Regino da Santinha, que tinha fama de valentão e que vivia, de prática, metido em desavença por causa de mulher.

Na tal noite, já beirando o final do baile, Regino tratou de tirar a moça pra dançar. Na horinha em que ouviu o primeiro apitar do trem, ele ficou do lado dela. Disse-lhe que moça tão bonita não podia ir pra casa sozinha, que ia acompanhá-la. A moça insistiu que não precisava de companhia, que nem valia a pena ele tomar o trabalho de ir com ela. Peitudo, ele disse que ia com ela assim mesmo, ao que ela retrucou, que fizesse do jeito que quisesse. Mas que poderia se arrepender.

Bom, uma vez que estava só ele mais a moça de cor-de-rosa caminhando no escuro da noite, Regino da Santinha até achou que podia ganhar mais que uma dança. Há.. há... há... Não esperava ele que, ao tentar lhe furtar um beijo, ela retraiu. Esperou uns minutinhos, tentou passar o braço por riba dos ombros dela, ela recuou, dizendo que já estava chegando em casa. Ao ouvir isso, Regino até ficou satisfeito, crendo que não estavam chegando em casa nada, achando que poderia fazer mais uma tentativa de tirar umas casquinhas. Nessa hora, estavam beirando o muro do cemitério que era comprido e não havia nenhuma casa na vizinhança. Nesse caminhar, ele sentiu uma friagem percorrendo seu corpo todo. Quando deu fé, notou que a moça havia parado bem a frente do portão principal do cemitério. Nisso, ele sentiu um cheiro suave, que podia ser de flores, que podia ser de alguma água de cheiro e viu que, havia uma nuvem de fumaça de cor puxada pro rosa por cima da cabeça da moça. Então, ele escutou um balbucio, a mesma voz que parecia uma canção de ninar, dizendo-lhe que em tempo nenhum ele deveria se meter com pessoas desconhecidas, mesmo que fossem moças de boa aparência. Que era de valência pra ele, naquele momento, a medalha de Santa Rita, advogada das causas desesperadas, que ele, desde menino, carregava no pescoço. Nessa hora, o Regino da Santinha, numa tremura só, levantou os olhos pra olhar a moça e percebeu que as suas feições estavam que nem a nuvem de fumaça que ele vira escapar por cima de sua cabeça. O cheiro de flores foi ficando mais forte, mais forte e zuuuuum! A moça toda se desfez numa nuvem de fumaça cor-de-rosa.

De garantido mesmo, o que se sabe, é que o Regino da Santinha ficou arredio, desviando dos amigos na semana inteira. Quando começou o baile de sábado na casa da beira da linha, já passava de hora e meia que o Dão da Rabeca tocava a sanfona, o Regino chegou. Ele entrou assim de fininho, parecendo que não estava tomando gosto pela coisa. Há, há, há... Na hora em que os amigos o viram, se juntaram todos pra entregar a ele a monta da aposta que lhe cabia, que naquele tempo os homens eram de palavra. Estavam mais eram interessados, querendo saber o que ele havia feito com a moça de cor-de-rosa, que ainda não havia chegado. Encantoado, o Regino apertou a medalha de Santa Rita ao redor do pescoço e disse, de imprevisto, que não queria saber do dinheiro do trato e nem queria mais saber de desafios ou de brincadeiras. Nunca mais.

Naquele sábado e em todos os outros, ninguém mais viu a moça de cor-de-rosa como ninguém ficou sabendo de seu nome e de sua moradia. E o Regino da Santinha? Esse também tomou chá de sumiço. Dizem que namorou, casou e não nos convidou. Há, há........

Terezinha Pereira
Enviado por Terezinha Pereira em 17/11/2006
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