O FALSO SANTO.

Baseado na história “O Retirante Malandro” de Donizete M. Freitas.

Corriam os anos setenta. Os Estados Unidos andavam metidos numa tal de guerra fria com os Soviéticos. Aqui no Brasil era o contrário, a coisa estava era fervendo com a danada da ditadura. A todo instante chegavam notícias de que o fulano jornalista foi preso, o beltrano estudante de direito foi morto, etc. e tal. Sair às ruas e pra encontrar com os amigos era perigoso. Mais de duas pessoas juntas, já era considerado um ato subversivo. A polícia não alisava ninguém e na mesma hora o pau cantava em lá maior por cima do lombo dos inocentes.

Tanto nas grandes capitais quanto nas pequenas cidades do interior o terror e o medo tomavam conta do povo. Nem lobisomem assustava tanto quanto farda de soldado.

Em batalha, pequena cidade do sertão de Alagoas, a merda dava no meio da canela, ou seja, estava pior. Não sei se por conta do nome da cidade ou por possuir dentre seus moradores uma dezena de estudantes universitários e vários coronéis, alguns deles até de patentes duvidosas que poderiam ser presos a qualquer momento. O fato era que as ruas estavam sempre bem freqüentadas por um bando de samangos andando pra cima e pra baixo exibindo seus fuzis e os temidos cassetetes escuros. Uma lapada daquela ferramenta no meio das lascas das costelas doía mais que sete quedas de escadaria abaixo sem direito a segurar no corre-mão.

Alheio a tudo isso a seca e a fome castigavam o sertão velho. A coisa andava tão feia que cachorro matava cachorro pra não ter que dividir o calango. As únicas coisas verdes que ainda se viam em Batalha eram: a tinta da parede da farmácia de seu Agenor e o pano da mesa de sinuca do bar de Ioiô.

Há um dito popular conhecido pelos sertanejos: “Enquanto houver cuscuz e charque na face da terra o nordestino não se acaba”. Mais a situação não estava boa pra seu ninguém, muito menos para o milho do cuscuz. Quem tinha algum dinheirinho, ia morar em Maceió. Quem não tinha, vendia tudo que possuía a troco de bananas e ia embora pra o Rio de Janeiro ou São Paulo em busca de melhores dias.

Dos que se foram poucos voltaram. A maioria preferiu ficar por lá, mesmo depois de passado aquele período de seca medonha. Dizem até que se os alagoanos que vivem no sudeste do país voltassem pra suas cidades de origem Alagoas não ia caber de tanta gente.

No embalo dessa fervorosa migração o nosso amigo Donizete também não ficou pra trás. Fez a mãe vender as duas únicas vaquinhas magras que possuía e se preparou pra enfrentar a longa jornada rumo a são Paulo. Não era uma empreitada fácil. Emprego e moradia eram coisas incertas, mas era preciso enfrentar estes obstáculos a fim de tentar melhorar a vida da família.

Fazer versos e cantar emboladas ele sabia fazer, mas lá na paulicéia isso não valia de nada. Todos os dias desembarcavam na rodoviária mais de mil nordestinos com o mesmo talento. Tinha mesmo era de pegar no pesado se quisesse ganhar alguns trocados.

Cismou que era pedreiro e danou-se atrás de emprego em tudo quanto era canteiro de obras. Como já tava sem dinheiro nem pra comprar um pão seco, acabou aceitando uma vaga de servente na construção de uma igreja. Foi ai que o coitado aprendeu pra que foi feito o xarope Vick. Padre é um bicho danado de ruim de se tirar dinheiro. Por mais que trabalhasse e fizesse horas extras, o dinheiro mal dava pra pagar a comida e o quarto fedorento da pensão onde morava no bairro da Mooca.

Andava com uma ferida aberta do tamanho de um bife no ombro direito, de tanto carregar latas de areia e cimento escada a cima e escada a baixo. Não entendia o porquê de se fazer uma torre tão alta pra colocar a peste de um sino. Pra conseguir mandar uns trocados pra mãe era preciso fazer um regime alimentar forçado. Nada de três refeições diárias, no máximo uma por dia. Assim, nos dias em que almoçava, não jantava e quando tomava café nem almoçava nem jantava. Pra considerar sua vida igual a de um cachorro ela ainda tinha de melhorar muito.

Os dias naquele inferno chamado construção civil pareciam ter umas trinta horas. O sol aparecia por volta das cinco e meia da madrugada e só se punha por volta das oito da noite.

Depois de um ano levando cimento na cara ele resolveu colocar um fim naquele sofrimento. Pediu as contas e tomou coragem de volta pra casa. Dois dias depois acertou as conta com o seu Targino o dono da pensão. O velho tinha um bafo infeliz. Parecia que bebia água da fossa. Comprou a passagem na rodoviária e o restante do dinheiro gastou numa roupa nova, um gravador portátil e um rádio.

Ao chegar à sua querida cidade percebeu as coisas ainda mais feias. A família passando por todo tipo de necessidades esperava por ele e seu dinheiro pra minimizar a miséria, mas o coitado voltara mais liso que sabonete Lux. O jeito era inventar alguma coisa pra tirar a família daquela situação de penúria.

Certa manhã andando pelos arredores da cidade ele tropeçou em um tronco escondido por baixo de umas folhas secas. Quase fica sem a cabeça do dedão do pé. A dor foi tanta que o infeliz viu o cão pela brecha dos olhos. Ficou deitado no chão por cerca de meia hora esperando a dor passar. Enquanto isto ele pensou em pegar um machado e reduzir aquele pedaço de madeira em um monte de lenha pra alimentar o fogão de sua casa.

_ Pode esperar que tu vai virar cinzas seu desgraçado - gritou ele com o tronco como se ele pudesse ouvi-lo.

Horas depois estava ele de volta com um machado pronto pra cumprir sua promessa. Na primeira machadada arrancou logo um pedaço da casca seca do tronco e ele pode ver algo estranho. Por dentro a madeira era escura, quase negra como carvão, porém bastante brilhosa.

_ Você quer ser mais preto que São Benedito seu merda? Gritou Donizete enquanto armava a segunda machadada.

_ Toma Benedito, toma Benedito, dizia enquanto aplicava outros golpes na madeira.

Depois de uns quinze minutos de trabalho ele parou pra descansar. Enxugou o suor do rosto e olhou pro sol como quem pede uma trégua na temperatura. A vista escureceu e ele sentiu-se tonto. Sentou-se e ficou por alguns segundos de olhos fechados até sentir-se melhor. Quando abriu os olhos começou a perceber que o tronco depois de levar vários cortes do machado estava com a forma de um corpo humano.

O que vou contar agora preste bem atenção e não queira fazer em casa!

Como a madeira era quase preta, Donizete teve a idéia de esculpir uma imagem em tamanho real e dizer ser de São Benedito. Pra incrementar ainda mais a mentira ele fez um buraco por dentro da escultura e adaptou o alto-falante de seu gravador. Em seguida correu a cidade dizendo ter achado uma imagem milagrosa que falava com as pessoas.

Como no sertão a vida é só sacrifício, o povo é muito religioso e acredita em tudo quanto é santo. Ha santo pra fazer chover, pra fazer casamento, pra curar frieira, carrapato em gado, dor de parto, pra crescer pé de feijão, tirar galinha do choco e tudo mais que for coisas possíveis e impossíveis de imaginar há de ter um santo.

Quando a notícia se espalhou a casa de Donizete virou ponto de peregrinação. O lugar vivia cheio de gente rezando e tocando na imagem colocada bem na entrada da sala. Junto dela o safado colocou também uma tigela de louça pras pessoas deixarem ali algum dinheirinho em agradecimento as graças alcançadas.

Com a voz disfarçada ele gravou algumas mensagens pra serem usadas na hora da visitação. Ele ficava escondido no quarto junto da sala e com um espelho instalado estrategicamente, ele via as pessoas tocando no santo. Lá de dentro ele apertava o botão do gravador e o santo ganhava voz. Era um verdadeiro milagre.

_ Deus te guie minha filha, dizia a voz quando alguém colocava dinheiro na tigela.

_ Deus te dê em dobro, dizia ele quando outro trazia uma outra doação qualquer como uma galinha, um peru, um porquinho, uma cuia de farinha, e coisa e tal. Em pouco tempo a dispensa da casa de Donizete estava lotada de mantimentos. Parecia um armazém da Conab. No quintal já tinha mais galinhas que a granja Carnaúba. A carteira do safado antes vazia, agora parecia a de um banqueiro do jogo do bicho.

A mãe sempre dizendo: "quem engana os pobres vai acertar as contas com Deus", mas ele nem ligava. Respondia que a igreja sempre enganou o povo e nunca teve um de seus membros na cadeia.

Pra não cansar o santo as visitas só eram permitidas de segunda à sábado. Domingo era descanso. Neste dia, ele gravava e ouvia o que bem queria em seu gravador. Nas fitas haviam suas musicas preferidas de Roberto Carlos, as puías, aboios de vaquejadas e até piadas indecentes, que o faziam rir até se embolar pelo chão.

Certo domingo por volta das onze da manhã ele estava ouvindo uma fita com as piadas do Costinha e tomando uma caninha com limão. De repente ouviu alguém batendo na porta e foi atender com cara de irritado. Aquilo não era hora pra ser perturbado por ninguém, pensava ele.

Ao abrir deparou-se com uma senhora negra, bem vestida e bonita. Aparentemente devia ter uns quarenta e poucos anos. Junto dela um senhor também negro, um pouco mais velho, porém bem forte e com quase dois metros de altura.

_ Disseram que aqui tem um santo milagreiro, indagou a mulher.

_ Tem sim senhora, mas as visitas são até sábado, respondeu Donizete.

_ É que estou doente meu filho e só um milagre pode me curar

_ Sinto muito senhora, mas só amanhã ele pode receber visitas.

_ Tenha misericórdia eu vim de longe. Saí de Juazeiro da Bahia só pra ver este santo.

Puta merda! Eu não vou estragar meu domingo com esta demente moribunda, pensou Donizete.

_ Eu posso lhe recompensar bem se você deixar minha mulher ver o santo, disse o homem.

_ Sinto muito senhor, mas normas são normas e as visitas são de segunda a sábado, disse Donizete já empurrando a porta pra fechá-la.

Com uma das mãos, quase do tamanho de uma pá de coveiro, o homem pegou na maçaneta e o impediu de fazer tal gesto.

_ Acho bom o senhor deixar minha mulher entrar ou vou quebrar esta porta e entrar a força.

Donizete sentiu que não ia ter como impedi-lo. Teria de se apressar e colocar a fita no gravador pro santo falar o que tinha de melhor praqueles dois.

_ Tudo bem entrem o santo fica logo aqui na sala, mas, por favor, não digam a ninguém que eu deixei vocês entrarem em pleno domingo.

Enquanto os dois rezavam ajoelhados junto à imagem Donizete retirou a fita que estava escutando no gravador e ficou procurando a outra com as mensagens do santo.

_ Todo mundo diz que este santo fala com as pessoas. Porque ainda não falou com a minha esposa? Perguntou o marido com um tom irritado.

_ Ele fala já meu senhor, fala já, respondeu aflito lá de dentro do quarto onde acabara de derrubar um monte de fitas empilhadas sobre o criado mudo. As fitas se espalharam pelo chão. Muitas delas até caíram fora das caixas e ele as guardou apressadamente. Quando finalmente achou a que procurava enfiou ligeiro no aparelho e apertou o botão.

_ Vamos ali minha gostosa fazer amor comigo. Você é a minha popozuda. Vem que eu quero te lamber todinha, disse a voz de dentro do santo.

Nesta hora Donizete percebeu que havia colocado a fita errada. Nervoso ele tentou a todo custo fazer o gravador parar, mas apertava sempre o botão errado e o danado do santo tome a falar putaria.

Depois de ouvir a imagem chamar sua esposa de Vagaba, Piriguete e Cachorrona insaciável, o homem entrou no quarto e arrastou nosso amigo pelo pescoço até o meio da sala. Deu-lhe um murro tão seguro na tábua do queixo que valeu por dez coices de toro de rodeios. A dentadura do coitado voou a uns oito metros de distancia caindo lá na calçada da casa já dividida em doze pedaços. A porrada foi como um anestésico. Donizete desmaiou na hora e não sentiu mais nada.

Quando acordou todo quebrado de cacete resolveu se vingar do santo. Arrumou um monte de madeira, meteu o santo no meio e tocou fogo. Quando restaram só as cinzas ele ainda não satisfeito, jogou o pó na linha do trem.

Hoje nosso amigo se endireitou na vida e trabalha honestamente como cronista esportivo numa rádio local. De quebra ainda tem uma Kombi de som em estado razoável de conservação onde exibe as propagandas do comercio local.

Mesmo passados muitos anos do acontecido, toda vez que Donizete se lembra do soco que levou do negrão, sem mais nem menos perde o equilíbrio e cai no chão.

Pra tirarem um quarto de hora com a cara dele, os amigos dizem que é a fraqueza das pernas, outros mais empolgados falam que é uma lembrança genética adquirida. Em tom de brincadeira ele sempre responde dizendo que foi um trabalho de macumba que um preto velho fez pra ele lá na Bahia.

Herivaldo Ataíde
Enviado por Herivaldo Ataíde em 10/05/2011
Código do texto: T2961965
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