RELÓGIO ANTIGO

Na parede central da velha oficina de relógios, havia um que se destacava dos demais. Era uma peça rara, em forma de oito. O mostrador, já amarelado pelos passar dos anos, continha desenhos prateados que realçavam a cor preta dos ponteiros finamente trabalhados. A madeira torneada, das duas caixas, era trabalhada em marchetaria finíssima e continham incrustações de madre pérola, demonstrando que a peça havia sido fabricada por um artista de rara inspiração. O pêndulo, na caixa menor, brilhava como a luz do sol em contraste com o fundo escuro.

Uma etiqueta, escrita à mão, com letras de antiga caligrafia, informava que a peça estava à venda ao preço de R$ 5.000,00.

Seu Lourenço era da terceira geração de relojoeiros que se instalara no centro da cidade desde o início dos anos 900. Assim como seu avô e seu pai, todos chamados Lourenço, ele não tinha pressa para devolver o relógio depois de consertado. Eram no mínimo dois meses de experiências para dar o relógio como pronto.

No trabalho minucioso e detalhista, a máquina era desmontada e as peças lavadas, polidas, lubrificadas e depois, guardadas em caixas forradas com papel absorvente, para o repouso que podia demorar semanas. Só então, eram examinadas, para detectar desgastes ou empenos que pudessem de alguma forma, prejudicar o perfeito funcionamento do relógio. Uma a uma, as peças eram avaliadas sob a lupa e medidas, com ajuda do paquímetro ou micrômetro, trazidos da Suíça pelo primeiro Lourenço.

- A máquina de um relógio é como o organismo humano. Não se pode avaliar só o lugar da dor. Tem que examinar o corpo todo. O tic-tac de um relógio é a cópia do pulsar do coração. Assim como o ser humano precisa de alimento e amor para ter uma vida saudável, o relógio precisa de corda e carinho para ter vida longa. O relógio conta o tempo, faz parte dele e sabe a sua história. Para indicar as horas, qualquer porcaria importada da China serve. Para contar o tempo e fazer parte da família, somente um relógio que conhece a mão que maneja a chave da corda e aciona o pêndulo que embala, no seu movimento de vai e vem, o nascimento, vida e morte dos nossos entes queridos e também dos nossos inimigos. Venha buscar seu relógio na semana da festa da padroeira.

- Mas seu Lourenço, hoje é dois de junho. O senhor vai levar seis meses para fazer o relógio voltar a funcionar? Papai disse que deve ser somente sujo. É só limpar.

- É minha filha. Como eu lhe disse eu não conserto relógios, eu acordo eles para viverem outra vez.

- E o senhor sabe quem possa consertar em menos tempo?

- Qualquer um por ai faz. Mas saiba que vão matar de vez o seu relógio.

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Os preparativos, para a festa dos trinta anos de casados de Celso e Neidinha, estavam a pleno vapor. As filhas, os genros e os netos empenhados para que nada faltasse na comemoração, que prometia ficar na história.

O trabalho era tanto que, muitas vezes, as pessoas se desentendiam por não querer abrir mão de um detalhe por mais insignificante que fosse.

Até Homero, marido de Salete, a filha mais velha, considerado a ovelha negra da família, estava integrado nos preparativos. Homero era falastrão, boa pinta, amigo de todos, conhecedor das escrituras bíblicas que fazia questão de incluir em qualquer conversa, mas não conseguia manter-se em nenhum emprego porque, quase sempre, estava envolvido em trampolinagens.

A festa seria no salão da igreja, logo após o culto do domingo.

Na quinta feira, quando Celso estava colocando na pasta, os papeis necessários às visitas aos clientes do dia, Homero bateu na porta de vidro. Com visível desagrado, Celso abriu a porta para o genro entrar. Sentado na cadeira do interlocutor em frente à mesa de trabalho do sogro, Homero disse fingindo grande intimidade:

- Sente-se aqui, meu sogro favorito.

- O que você quer Homero? Tenho um cliente marcado daqui a meia hora e você sabe que sou muito honesto e cumpridor de meus horários.

- Sim, eu sei disso! E é justamente por conhecer sua honestidade, sua conduta, sua respeitabilidade, que vim lhe pedir socorro. (olhando para os lados como quem procura alguém) Estamos sós?

- Sim, você sabe que nesses últimos dias estão todas envolvidas nos preparativos da festa. Que história é essa de socorro? O que foi que você aprontou dessa vez?

- Bom, o senhor sabe que nós homens gostamos muito de mulher e que somos capazes de tudo por um rabo de saia...

- Aonde você quer chegar com essa conversa?

- É que seu Lourenço tem um relógio oito, daqueles bem antigos, enfeitado com madre pérolas para vender por R$ 9.000,00 e eu preciso comprar esse relógio e quero que o senhor me dê o dinheiro.

- Ainda que eu tivesse essa quantia disponível, eu não lhe daria dinheiro algum. Homero você é um irresponsável, não tem trabalho fixo. Quase todo mês eu tenho que complementar a despesa da sua casa, porque você gasta quase tudo com as mulheres que arranja. Eu só dou por causa da minha filha e do meu neto. Por mim, você podia passar fome, ser despejado, ter a luz cortada...

- Peraí seu Celso. Vamos conversar como gente civilizada.

- Você já me tomou muito tempo. Eu não tenho esse dinheiro todo e já disse que não dou.

- Mas o banco tem e o senhor pode fazer um emprestimozinho.

- Não. Definitivamente não.

Dizendo isso, Celso abriu a porta e fez sinal para o genro sair.

- É lamentável que uma festa tão bonita vá terminar tão mal...

- Por que você está dizendo isso?

- Porque se o senhor não me entregar esse dinheiro até sábado, eu faço questão de levar dona Patrícia e as crianças para assistirem ao culto das bodas do pai deles. (e em tom de deboche) eu acho que minha sogra e dona Patrícia não vão gostar nada de saber da existência uma da outra, mas também pode ser que fiquem amigas, afinal elas têm o mesmo marido... Trinta anos com uma e quinze com a outra. Como é mesmo que se chama a comemoração? São bodas de quê?...

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- Pronto seu Medeiros. Cá está o relógio que sua senhora tanto queria. O dinheiro que o senhor me deu foi a conta certa.

- Rapaz! Você é um grande amigo. Tirou-me de uma enrascada daquelas. Eu já não sabia mais o que fazer para reconquistar minha mulher. Ainda bem que você se lembrou desse relógio velho porque ela sempre quis ter um e, R$ 12.000,00 para mim é merreca.

- Claro que ela vai lhe perdoar o deslize. Afinal ela e o senhor se amam. Aquela menina foi só um caso passageiro e o aborto tinha que ser feito mesmo. Agora o senhor vai me dar licença porque é a festa de trinta anos de casados dos pais de minha esposa e o meu sogro, é mesmo que ser um pai para mim. Nós temos muito amor e respeito um pelo outro e, tenho certeza, ele ficaria muito triste se eu não comparecesse para dar-lhe um abraço. Fique na paz do senhor, irmão...