Monstro de Quatro Olhos




Lentes de contato.
Pensei nelas e vieram à mente recordações de outro tempo quando usava óculos.
Vesti-os à primeira vez galgando larga timidez. Um dos meus maiores medos na vida era o de ser rejeitado. Os óculos, a meu ver, decretariam que pertencia ao campo dos rejeitados, dos inválidos, dos incapazes e dos excluídos.
O uniforme do colégio era amarelo de doer os olhos. Tudo amarelo. Lembro da minha mãe se esforçando para tingir as meias e os tênis Conga. Às vezes dava errado e o calçado ficava parcialmente manchado, como uma vaca malhada. Não queria usar aquele tênis, mas usei. Os meninos satirizavam, a coordenadora da escola olhava, pensava, meditava se aquilo era ou não amarelo e deixava passar. Com o tempo acostumaram ao meu Conga manchado.
Mas será que se acostumariam com os óculos?
Fiquei embaraçado.
Minha mãe era general sem banda:
  • Você tem que usar o tempo todo na cara para ficar bom.
Definido estava que eu não sendo bom, era mau. Acreditei que aquela imperfeição me afastaria derradeiramente de todos os meus sonhos. Como seria bonito de óculos? Como conquistaria um grande amor? Como seria um astro do futebol? O Tostão parou de jogar bola por causa de um problema nas vistas e logo associei ao meu caso. Eu não teria vistas, nem amor, nem nada. Eu era mau porque meu olho era mau. Fim de papo.
Desci do carro da minha mãe com aquela armação grossa e ridícula na cara. Senti o tapa das primeiras risadas me atropelando. Pensei em tirar.
  • Não tira! - Ela gritou do carro. Teria lido meu pensamento?
Assim que entrasse na escola estava resolvido a retirar aquela insolvência da cara. Muitos risos me atacavam. Usar óculos naquele tempo era apetrecho destinado aos néscios. A alcunha de Quatro Olhos seria terrível e já me atormentava. Queria morrer azul a usar óculos. Logo que entrei a professora me consolou abraçando:
  • Tadinho... de óculos. Não se preocupe, ficou lindo! - E me deu um beijo que guardei para sempre embora soubesse que era mentira.
Os meninos abriam caminho à minha passagem zombando. Subia-me um calor, uma indignação. Fiquei amargurado o dia inteiro e soube que era vigiado:
  • Não tira. Sua mãe mandou vigiar.
Foi difícil tirar para jogar bola, mas o bom senso venceu e durante os 30 minutos de recreio me sentia vivo novamente. Foram 18 meses de agonia até que um exame médico me libertou:
  • Você foi curado!
E uma luz se abriu na minha vida determinando que poderia realizar e alcançar todos os meus sonhos. Nem tudo saiu como idealizara, mas, pelo menos, já não era mais um limitado Quatro Olhos preso ao estigma daquelas hastes. Hoje temos lentes de contato. Lentes que poderiam ter-me salvado de uma agonia, de uma fase da vida em que quase me anulei, mas quem sabe se aquela fase não me salvou fazendo-me mais humano, sensível.
Não havia lentes de contato, não havia telefone, celular, computador, somente tínhamos aquelas lentes grossas e pesadas que me sulcaram os sonhos e trouxeram pesadelos que até hoje me perseguem ao ver o mundo me dando as costas e rindo, rindo dos meus Quatro Olhos...